Arquivo de etiquetas: James Newell Osterberg

Iggy Pop – “A Fera Amansada” (concertos / coliseus)

Pop-Rock 27.02.1991


A Fera Amansada

“Sou o rapaz ignorado pelo mundo, aquele que só tenta destruir” – palavras de Iggy Pop, de seu verdadeiro nome James Newell Osterberg. Hoje já não será tanto assim, alargada a distância entre o homem e o mito. Sexta-feira, em Lisboa, sábado no Porto, o fundador dos Stooges regressa, passados dez anos, a Portugal, para duas actuações nos Coliseus (ditos de recreio), onde normalmente se exibem as feras.



Iggy Pop representa (ou representou) o lado mais niilista da música rock. Recusou sempre o supérfluo, as modas, a facilidade. A sua vida (que em parte se confunde com a obra) tem sido uma montanha-russa em que normalmente o carro se solta dos carris. Sobreviveu às sucessivas quedas. Eleito padrinho pelos punks, gostava de se autoflagelar e cortar com lâminas ou cacos de garrafa. Não seria da nossa conta se não o tivesse feito sobre o palco. Orgulha-se do corpo que tem e exibe-o sem vergonha, também sobre o palco. Mesmo sem querer, acaba sempre por dar espectáculo.

O Retorno A Si

Recentemente actuou em Inglaterra, na Brixton Academy em Londres e na Escócia, na Glasgow Barrowlands, ao lado dos That Petrol Emotion, em concertos que a crítica louvou e onde o público delirou. Aparentemente a pose mantém-se inalterável: o corte de cabelo de sempre, olhos desmesurados, o tronco nu e cicatrizado enfiado numas “jeans” rotas e desbotadas que teimam em querer escorregar pelas pernas abaixo.
E as canções, claro, as antigas e as novas, do recente “Brick By Brick”. Canções ternas e duras: “Raw Power”, “Loose”, “Dirt”, “No Fun”, “I Wanna Be Your Dog”, “Lust For Life”, “China Girl”.
“Brick By Brick”, gravado para a multinacional Virgin, quebra a tendência “clean” de “Blah Blah Blah”, funcionando como catarse autobiográfica do “anarquista rock” por excelência, como lhe chamou há anos Lester Bangs em artigo publicado na “Village Voice”. Apoiaram-no no empreendimento, entre outros, Slash e Duff McKagan, dos Gun ‘n’ Roses, Kenny Aronoff, da banda de John Cougar Mellencamp, John Hiatt e a vocalista dos B-52’s, Kate Piersen. Sobre a sua nova atitude perante a vida são esclarecedoras as declarações que então proferiu, relativas a “Something Wild”, uma das canções do disco: Trata-se da “história de um tipo que se sente tudo menos confortável sobre as suas responsabilidades como adulto. É o equivalente humano a um animal selvagem recém-domesticado que não quer ficar no quintal. Às vezes quer, outras não. Isto exprime bem como me sinto actualmente. Estou no quintal, mas não tenho a certeza de quanto tempo vou ficar. Provavelmente até fico, mas a luta é enorme”. Significativo.

Anjo Maldito

Iggy Pop nasceu em Detroit, filho de uma família típica da classe média americana. Fez parte de um grupo de escuteiros. Depois descarrilou. Com os Iguanas ganhou o epíteto que nunca mais o abandonaria. Quando “Fun House” e “Raw Power” rebentaram como bombas na cena pop anglo-americana (respectivamente em 1970 e 1973, em pleno período áureo dos “sinfonismos” progressivos), o rock ‘n’ rol nunca mais voltou a ser o mesmo. Seis anos antes de os punks ensaiarem os primeiros passos, já Iggy dominava o ruído, a velocidade e a distorção, aplicando-os à música e ao corpo por igual.
Era a época dos excessos, a todos os níveis – entre a dor e o prazer máximos -, do consumo desenfreado de ácool e heroína. Os Stooges não aguentaram o andamento e abandonaram. O que tinham a dizer, disseram-no em pouco tempo. Iggy Pop perdeu todos os contactos que o ligavam aos antigos companheiros, com os quais, afirma, nada tem hoje em comum, apelidando-os de “gordos, bêbedos incontinentes e dependentes da metadona”, o que aconteceu, de resto, a quase toda a gente com quem trabalhou. “Os velhos tempos morreram” – como gosta de dizer.
Talvez não o pudesse ter dito se não lhe tivesse aparecido um anjo da guarda na altura certa. Esse anjo apareceu e chamava-se David Bowie. Anjo, também ele com problemas de droga – no caso a cocaína. Só que Bowie tinha a capacidade de se inventar e libertar da própria pele, como se fosse ele afinal o verdadeiro iguana. Libertou-se e libertou o amigo, anjo como ele mas da casta dos malditos. Foi buscar Iggy ao hospital psiquiátrico onde apodrecia e, se calhar, tirando-o do inferno. Partiram juntos para Berlim e daí para França, onde, em 76, gravaram “The Idiot”, primeiro trabalho de Iggy Pop sem os Stooges. Depois seriam obras fundamentais como “Lust For Life” (77), “New Values” (78) e, dez anos mais tarde, “Instinct”, de 88. Pelo meio ficavam “Soldier” (80), “Party” (81), “Zombie Birdhouse” (82), “Blah Blah Blah” (86) e o “pirata” “Metallic K.O.” (74, registo ao vivo do derradeiro concerto dos Stooges, no Michigan Theatre de Detroit).
Muits histórias haveria ainda para contar, das mais sórdidas às sublimes. Enfrentando a década de 90 com o entusiasmo e a energia que sempre o caracterizaram, Iggy Pop parece finalmente ter aprendido a crescer, assumindo a paternidade de um filho nascido de uma relação antiga com uma “groupie” e recusando de vez os consumos ilegais. Refere-se à presente fase da sua carreira como “acessível”, “compreensiva” e “adaptável” e a si próprio como “homem casado que paga os seus impostos e faz o seu trabalho cuidadosamente”. Em todo o caso, talvez seja melhor desconfiar.