Arquivo de etiquetas: Chick Corea

Chick Corea + Andrew Hill – “Chick Corea e Andrew Hill Ao Vivo Em Novembro” (concertos / antevisão / jazz / notícias)

(público >> cultura >> jazz >> concertos)
sábado, 13 Setembro 2003


CHICK COREA E ANDREW HILL AO VIVO EM NOVEMBRO

Grandes figuras do jazz mundial, entre os quais os lendários pianistas Chick Corea e Andrew Hill, e o saxofonista Sam Rivers, vão atuar em Portugal nas próximas semanas, nos festivais de jazz do Porto, Seixal e Angra do Heroísmo. O 13º Festival de Jazz do Porto é o primeiro a arrancar. De 27 de Setembro a 18 de Novembro, em datas avulsas, atuam o Jimmy Scott Quartet (27 de Setembro), Rosário Giuliani Quartet (3 de Outubro), Edward Simon Trio (4 de Outubro), Perfect Houseplantas (17 de Outubro), Maria Viana e The Brian Ervine Ensemble (18 de Outubro), Pedro Guedes Quinteto e Liam Noble Group (1 de Novembro) e Chick Corea Trio (18 de Novembro). A vinda de Corea é um acontecimento. Corea tocou com Miles Davis em “In a Silent Way” e “Bitches Brew” e é por muitos considerado o mais importante pianista do jazz atual, a par de Keith Jarrett. O seu álbum de 1982, “Trio Music”, acaba de ser reeditado pela ECM.
De 1 a 4 de Outubro decorrerá em Angra do Heroísmo, Açores, o 5º Angrajazz. Contando nos dois primeiros dias com o Sexteto do Hot Clube, a Orquestra Angrajazz e o quinteto do vocalista Karrin Allyson, o festival encerra com as presenças, no dia 3, do quarteto do saxofonista tenor Scott Hamilton e do guitarrista francês Philip Catherine, também em quarteto e, a 4, de Martial Solal, pianista de referência do jazz francês, em trio, e da violinista Regina Carter.
Um autêntico manjar de música improvisada aguarda todos os que se deslocarem, entre 23 de Outubro e 1 de Novembro, ao SeixalJazz 2003. Logo na abertura, atuará Sam Rivers, um dos expoentes do “free”, saxofonista, flautista, compositor e dos poucos “true originals” visionários do jazz contemporâneo. A seu lado terá o trio do pianista do momento, Jason Moran. O quarteto de Pedro Madaleno atua a 24 e, no dia seguinte, entra em cena o trio de outro grande pianista, Kenny Werner. Ted Nash, saxofonista e fundador do Jazz Composers Collective, atua em quinteto no dia 30, e os The Schulldogs, do baterista George Schuller, tocam no último dia de Outubro. A 1 de Novembro, outra lenda do piano: Andrew Hill, solista e compositor da estatura de “monstros sagrados” como Tatum, Powell ou Monk. Gravou em 1964 a obra-prima “Point of Departure” e o seu novo álbum, “A Beautiful Day”, foi considerado um dos melhores álbuns de jazz de 2002.
Uma chamada de atenção ainda para o concerto de fecho do Festival da Alta Estremadura, entre 19 deste mês e 4 de Outubro, na Marinha Grande, pelo trio do saxofonista, clarinetista e flautista Chris Potter. João Paulo, Paulo Curado, Bruno Pedroso, Mário Laginha, Bernardo Moreira, Rodrigo Gonçalves, Filipe Melo e Bernardo Sassetti são alguns dos músicos portugueses presentes.

Ben Webster – “Soulville” + Bill Evans – “Alone” + Chick Corea – “Rendezvous In New York” + Shirley Horn – “May The Music Never End” + Ella Fitzgerald & Louis Armastrong – “Again”

(público >> mil-folhas >> jazz >> crítica de discos)
sábado, 28 Junho 2003

O amor e a solidão, nos seus mais diversos cambiantes, foram tocados e cantados pelos mestres. Bill Evans, Ben Webster, Ella Fitzgerald e Louis Armstrong disseram-nos que podem ser felizes.


O amor feliz

Ella Fitzgerald Louis Armstrong

BEN WEBSTER
Soulville
Verve
10 | 10

BILL EVANS
Alone
Verve
7 | 10

CHICK COREA
Rendezvous in New York
2xCD Stretch
8 | 10

SHIRLEY HORN
May the Music never End
Verve
7 | 10

ELLA FITZGERALD & LOUIS ARMSTRONG
Again
2xCD Verve
9 | 10

Todos distri. Universal



Seis meses antes de Bill Evans, Oscar Peterson abrira o caminho, com uma sessão de piano em solo absoluto, algo que até então não fazia parte das tradições mais comuns do jazz. Com “Alone”, de 1968, o autor de “Waltz for Debby” procurou atingir a “sensação do absoluto no ato de tocar sozinho”. Provavelmente atingiu-a. Para trás ficara, como confessou, o medo e a impressão que sempre tivera, de que sempre que um pianista tocava sem acompanhamento as pessoas não prestavam atenção e se entretinham a beber, a comer (se num bar) ou a conversar. “Música para jantar” não é certamente o caso de “Alone”, um álbum cuja delicadeza e nostalgia, habituais em Evans, a par das figuras de estilo e da elegância das modulações harmónicas, se sustentam numa sólida arquitetura matemática, menos intuitiva e bastante mais racional do que seria de supor, sendo o próprio pianista a acentuar a importância da estrutura e do “ratio” matemático. Rigor que não impede, antes liberta, o fluxo musical que, no formato típico do trio com contrabaixo e bateria, se confina a regras bastante mais rígidas. Claro que haverá sempre alguém disposto a utilizar esta música como fundo musical para a degustação de um bife (embora, na nossa opinião, ela ligue melhor com peixe fresco) o que, afinal, até se poderá considerar como um complemento daquele estado de “rêverie” que a música de Bill Evans tende a provocar no auditor. Embora seja lícito duvidar de que os 14 minutos e as constantes oscilações de registo de “Never let me go” possam constituir um bom auxiliar da digestão. Ao alinhamento original, a presente reedição remasterizada adiciona seis “takes” alternativos. “Alone” transporta-nos para a nossa própria solidão.
Será portanto aconselhável contrabalançar tal estado com outros menos acabrunhantes. O novo de Chick Corea, “Rendezvous in New York”, duplo CD gravado no formato de Super Audio CD com recurso ao DSD, tecnologia que recorre a “software” Pyramix (garantia de um som piramidal) associado aos processadores Pentium da nova geração, serve às mil maravilhas este propósito. Gravado ao vivo no Blue Note de Nova Iorque em Dezembro de 2001, os dois discos oferecem um “digest”, em várias combinações, do pianista, que vão do “concerto” clássico ao “free jazz”, com pouco espaço para a fusão.
No primeiro CD Corea aparece em duo com Bobby McFerrin, num triplo número de malabarismos vocais, em trio com Roy Haynes e Miroslav Vitous (na “Matrix” de “Now he Sings, Now he Sobs”, aqui recenseado recentemente), com Haynes, Joshua Redman, Terence Blanchard e Christian McBride (numa mnemónica da banda de Bud Powell que é o grande momento deste trabalho), em duo com o vibrafonista Gary Burton (recuperando o mágico “Crystal silence” gravado para a ECM) e com a sua Akoustic Band, num “Bessie’s blues” solto na tradição.
Do “outro lado”, de novo a Akoustic Band, mais “Armando’s tango”, tanguero q.b. mas não tanguista, na companhia dos Origin (Avishai Cohen, Jeff Ballard, Steve Wilson, Steve Davis e Tim Garland). Clarinetes quentes. Movimentos melódicos ainda mais. Notável o “Concierto de Aranjuez”, diálogo de pianos com Gonzalo Rubalcaba, que “riffa” com raro vigor nas mãos esquerdas do “hard bop” e se constrói em plena comunhão.
No pacote das remasterizações da Verve, dois clássicos, ambos de 1957. O primeiro chama-se “Soulville” e tem a assinatura de um dos maiores mestres de todos os tempos do saxofone tenor, Bem Webster. A balada de “blues” de abertura revela-se um daqueles momentos de luz absoluta que qualquer amante de jazz deve utilizar para converter os descrentes ao jazz. O saxofone fala diretamente ao coração (porque sai diretamente dele), respira no nosso peito, obriga-nos a enfrentar, sem defesas, a própria essência do “blues” e a penetrarmos nela. Sensualidade é a ideia que estamos a tentar fazer passar. Com a presença, não menos sublime, do piano de Oscar Peterson – o espírito. “Late date” sua a sexo puro. O lado mais rugoso e lúbrico do tenor segundo Webster num enlace em que o piano acerta na certeza de que o “blues” é o balanço perfeito. Quem se deixa apanhar, ou se casa ou se vicia. Quem sabe escutar os conselhos do pai do jazz tem a sabedoria do seu lado. E que dizer de “Lover, come back to me” ou “Where are you?”? Não há quem resista à força e ternura desta sedução, abraço trémulo, jazz do continente interior. Tenor-amor. Sensação em estado puro, sem intermediários. “Soulville”, podendo ser saboreado por todos os que retiram do jazz o sumo, faz transbordar (e chorar) de felicidade o epicurista para quem a música é o néctar oferecido pelos deuses. “Makin’ whoopee”. É o que apetece fazer.
O outro clássico, do mesmo ano de 1957, também tem a ver com quem sabia lidar com a felicidade, o que nem sempre é fácil: Ella Fitzgerald e Louis Armstrong juntaram-se em “Again”, depois de um primeiro encontro em “Ella and Louis”. Ou, como alguém comentou, “a match made in heaven”. “Makin’ whoppee”, de novo, claro, volta a entrar no alinhamento, instando-nos a fazer o mesmo. O grupo de músicos é praticamente igual ao de “Soulville”: Oscar Peterson (piano), Herb Ellis (guitarra), Ray Brown (baixo). Só o baterista é diferente, Louis Bellson, em vez de Stan Levey. Encontramo-nos com o património da balada na sua vertente mais lúdica. Ella e Louis cantam com a inocência (curioso verificar como o registo vocal de Armstrong foi moldado por Tom Waits na forma das cabeças que fecham de dia mas estão abertas toda a noite…) própria de quem não chegou a morder a maçã dada por Eva a Adão, mas mesmo assim guarda a sabedoria, “standards” como “Don’t be that way”, “Stompin’ at the Savoy”, “These foolish things”, “Love is here to stay” ou “I get a kick out of you”. Ella não esconde nada, embora cada uma das notas que canta seja uma lição de vida. Dele, Louis, “Satchmo” não conseguimos desligar a voz do sorriso. “Comes love” soa como algo que se desaprendeu de ouvir dizer e de dizer ao outro. Ella sabia-o. Ele sabia-o. E quando os ouvimos, sabemos também, milagrosamente, que o amor nem sempre vem para magoar.
Mas quando magoa, pode matar. Di-lo outra cantora de que não se pode desviar. Shirley Horn, de regresso com um novo disco, “May the Music never End”. Escutar no momento errado a sua versão de “Ne me quitte pas”, de Jacques Brel, na adaptação inglesa, “If you go away”, é sufi ciente para fazer o Verão terminar prematuramente. Shirley canta como uma contadora de histórias, estendendo o tempo, sempre lento, como um tapete às palavras, tão cantadas como declamadas. Roy Hargrove (trompete) e Ahmad Jamal (piano) são os convidados especiais desta coleção de “torch songs”, tão suaves que deixam no ar a esperança.

Chick Corea – “Now He Sings, Now He Sobs” + Chick Corea – “The Complete ‘Is’ Sessions”

(público >> mil-folhas >> jazz >> crítica de discos)
sábado, 14 Junho 2003

Na antecâmara do “jazz rock”, Chick Corea montou um jogo de ilusões onde a realidade do jazz não é o que parece. E afirmou e estendeu os seus limites quando toda uma geração se ligava à eletricidade.


CHICK COREA
Now He Sings, Now He Sobs
8 | 10
The Complete “Is” Sessions
2xCD
9 | 10
Blue Note, distri. EMI-VC


Chick na Matrix


Pianista de múltiplas facetas — do “latin jazz” ao free jazz, do “cool” ao “hard bop”, da música brasileira e das espanholadas ao jazz rock, passando pelo tecido impressionista e a improvisação, Chick Corea tem sido uma espécie de “rival” de Keith Jarrett, inclusive no bigode.
O homem que em meados dos anos 60 substituiu Horace Silver no quinteto de Blue Mitchell, no Verão do Amor de 1967 marcou presença no quarteto de Stan Getz e, dois anos mais tarde, entrou para o quadro de honra de “In a Silent way”, de Miles Davis (tirando o lugar a Herbie Hancock), é o mesmo homem que, já na década de 70, cedeu ao sol e aos aromas de maresia da música brasileira (com os Return to Forever), cometeu o pecado do funk e da fusão (se “Romantic Warrior” e “The Leprechaun” são queridos mesmo dos apreciadores de rock progressivo, já coisas como “My Spanish Heart” e “Music Magic” são pastilhadas dificilmente tragáveis…) e, finalmente, sacudiu o rock do capote, redescobrindo na ECM e na GRP a luz e os prazeres do jazz.
Mas, em 1968, o jazz corria ainda como jazz, embora as correntes de energia do rock estivessem prestes a infiltrar-se. “Now He Sings, Now he Sobs”, lançado nesse ano pelo pianista em trio com Miroslav Vitous, no baixo, e Roy Haynes, na bateria, é um clássico coreano. Ao contrário do vinilo, com selo Solid State, com apenas cinco faixas, a presente reedição em CD reúne a totalidade dos 13 temas da sessão original. Em remasterização de 24-bits.
Percetível o gosto do pianista pelas ornamentações impressionistas e um fraseado onde a extrema precisão do “touching” se alia a um timbre cristalino. “The law of falling and catching up” prima pelo experimentalismo, com Corea a percutir as cordas do piano e Vitous e Haynes a pulverizarem o tempo, dando sequência a um fabuloso “Samba yantra”, onde o “hard” serve tanto o brasileirismo já latente nas suas conceções como um misticismo recorrente (outro ponto em comum com Jarrett…). “Fragments”, em regime “free”, joga com a aceleração, os círculos, a secura e um fantástico trabalho de pontuação de Haynes, enquanto “Windows” regressa à pura sedução da melodia e às tonalidades “cool”. Um original de Monk, “Pannonica”, e “My
one and only love” permitem vislumbrar por detrás da cortina os olhares de Bud Powell, Bill Evans, Hancock e McCoy Tyner, sublimados por uma síntese visionária.



“Now He Sings, Now he Sobs”, no seu movimento dialético de aproximação e distanciamento da Beleza (“Clinging to beauty; clinging to ugliness”), apresenta ainda um curioso toque de profetismo, na faixa “Matrix”. “O vento sopra sobre o lago/E agita a superfície da água/Assim se manifestando os efeitos visíveis do invisível”, pode ler-se no emblema zen da capa. Ocultação/desocultação, realidade e aparência. Como é a própria estrutura, toda ela ilusória de “Now He Sings, Now He Sobs” (o disco foi montado a partir de fragmentos sabiamante colados e improvisações estruturadas “a posteriori”). “Matrix” que, de entre todos os temas onde o jazz se torna realidade a partir de jogos, é o único tema composto de forma tradicional. Corea, 30 anos antes de Neo, penetrara já no programa de “Matrix”.
Igualmente disponíveis em reedição remasterizada da Blue Note estão “The Complete ‘Is’ Sessions”, gravadas em 1969 em Nova Iorque, por Corea, Woody Shaw (trompete), Hubert Laws (flauta, “piccolo”), Bennie Maupin (saxofone tenor), Dave Holland (baixo), Jack DeJohnette (bateria) e Horace Arnold (bateria e percussão).
Corea integrava então o grupo que gravou com Miles Davis o álbum “Filles de Kilimanjaro”, com DeJohnette e Dave Holland. Período de excitação e descobertas. “Estávamos constantemente a forçar, a tocar de uma maneira completamente livre, à espera que Miles nos dissesse alguma coisa. Como não dizia nada, forçávamos ainda mais.” “The Complete ‘Is’ Sessions” reflete esta liberdade, constituindo um complemento perfeito para a música da fase elétrica do trompetista. Woody Shaw já inoculara no pianista a adrenalina e o veneno da fusão. Maupin delira no “free”. Laws confere lirismo e floreados progressivos. Corea passa grande parte do tempo agarrado ao piano elétrico, continuando as explorações encetadas com Miles, a abrir caminho para a entrada em cena de grupos como os Soft Machine e Nucleus (“Sundance” antecipa obras como “Third”, “42 e 5”, dos Softs, ou “Elastic Rock”, da banda do trompetista Ian Carr). Miles preparava a ogiva nuclear “Bitches Brew”. Os Lifetime de Tony Williams abriam trincheiras com arame farpado. John McLaughlin recebia instruções do seu guru para formar a Mahavishnu Orchestra. Wayne Shorter e Joe Zawinul tinham aprendido, ainda com Miles, os fundamentos que dariam origem aos Weather Report. Na época em que o “jazz rock” se preparava para virar o jazz do avesso, tudo se movia e transformava. Corea, curiosamente, relia os manuais do “hard bop” e do “free”, firme no meio da confusão e excitação que se instalara. Quando o “jazz rock” o agarrou, por fim, o tempo das descobertas, o seu tempo, tinha passado. “Is” é, paradoxalmente, a afirmação da tradição levada ao paroxismo e às fronteiras de um futuro que se revelaria glorioso ou letal para todos os “jazzmen” que ousaram dar o passo em frente.