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Amália Rodrigues – “Coimbra Homenageia Lisboa, No Casino Estoril – Amália, Doutora Do Fado”

Secção Cultura Segunda-Feira, 07.10.1991


Coimbra Homenageia Lisboa, No Casino Estoril
Amália, Doutora Do Fado


Coimbra homenageou Amália, nomeando-a doutora “honoris fadus”. A serenata de homenagem deu para tudo: espetada de lagosta, Mozart, “topless” e fado. O fado é que induca, a lagosta é que instrói, lá diz o povo. Amália soube, como sempre, ser rainha, na noite em que trocou o xaile pela capa estudantil.



Noite de gala, anteontem à noite, no Casino Estoril. Noite do “doutoramento” de Amália Rodrigues, distinção que lhe foi concedida pelos estudantes de Coimbra, mais concretamente pela Associação Académica desta cidade. O fado de Coimbra prestava assim tributo ao seu congénere lisboeta, na voz e na pessoa da sua pironisa. A festa incluía jantar, meninas em “topless” a dar vivas a Mozart, e fado, como não podia deixar de ser.
Animaram-se os espíritos, logo à entrada do auditório do casino, ao depararem com um grupo de gentis meninas de Coimbra que, de saia negra e curta, distribuía simpatia e os convidados pelos respectivos lugares. Coimbra dos amores, diz a canção. Caso para dizer: amores platónicos, os quais, como tónicos que são, servem para abrir o apetite.
Satisfeitos os olhos, foi com uma enorme dose de curiosidade que nos preparámos para enfrentar o segundo ponto do programa: “jantar” (o primeiro tinha sido uma “bebida de boas vindas”). O dito consistiu num prato de lagosta mais outro de carne de vaca. Durante a refrega com os comestíveis, um agrupamento de música de câmara, primeiro, e a orquestra privativa do casino, depois, fizeram-se ouvir suficientemente alto para disfarçar o ruído da mastigação. Faça-se-lhes justiça: tinham menos nervo que a carne. O contraponto líquido cumpriu o que geralmente se lhe pede nestas ocasiões: alegrar os espíritos e avermelhar as bochechas. A propósito, o Presidente da República era suposto estar presente. Se estava, não deu de si. Pelo contrário, foi notada a presença de outro presidente, da Federação Portuguesa de Futebol, o dr. João Rodrigues, aparentemente sem problemas de regressar a Lisboa a tempo de votar.
Seguiu-se o show “Viva Mozart”. Muita luz, excelente coreografia, o assassínio sistemático e bem-humorado da música daquele compositor e, sobretudo, muitas maminhas ao léu, ao nível das melhores exposições artístico-anatómicas que o “Moulin Rouge” ou as “Follies Bergères” têm para oferecer. A maminha nacional é, de resto, como o resto do país – abana, mas não cai. Destaque para dois quadros realmente fora-de-série: um em que um corpo de mulher se metamorfoseia em diversos instrumentos musicais, manuseados pelo seu parceiro masculino. Outro, composto por um ser monstruoso que se contorce sobre o palco, assumindo formas grotescas entre o fálico, o intestinal e o cano de esgoto.

“Quem Me Dera Estar Contente”

Terminada a paródia passou-se ao lado sério do espectáculo, justificativo da designação “Serenata a Amália”. Altura para se cantar o fado de Coimbra. Feito silêncio, gemeram as guitarras e as violas, a acompanhar as vozes de Almeida Santos, Luís Góis, Camacho Vieira e Costa Brás, entre outros, vestidas de negro, trespassadas de saudade. Abriu-se o espaço em outro espaço, num beijo furtivo, na serenata à silhueta recortada contra a janela da noite.
Dona Amália subiu por fim ao palco, no momento por todos ansiado.m Cheia de medo, como é seu hábito – “dá-me vontade de chorar, não posso continuar”. Mas continuou, agradeceu, balbuciou e cantou o fado, o seu fado. Cantou primeiro um fado de Coimbra, receosa – “vocês têm todos melhor voz” – com a letra a ser-lhe segredada no próprio instante ao ouvido. Depois um fado lisboeta, da cidade que lhe é alma e destino.
Antes foram as cerimónias e a praxe académica. Amália, nomeada doutora “honoris fadus”, “punida” em seguida, na condição de “caloira estrangeira”, com as palmadas de uma colher de pau, por não ter vestido a capa segundo as regras e por ter sorrido ao venerável presidente da Associação. Por dentro dos sorrisos, invisíveis aos olhos ofuscados pela euforia e pelo ritual dos gestos, sentimentos mais profundos, que as palavras de Almeida Santos inscritas no programa sintetizam: “Nesta homenagem à grande Amália há, implícita, uma homenagem a tudo o que Amália simboliza: as almas sensíveis, os corações generosos, a Lisboa e o Portugal que nela se revêem”. Amália, em noite de serenata, acabou a cantar em conjunto com estudantes e doutores a “balada da despedida”: “Quem me dera estar contente, enganar a minha dor”.

Rita Guerra, Lena d’Água e Helena Vieira – “‘Canções Do Século’ No Estoril – Alegres Panteras”

cultura >> sexta-feira, 05.11.1993


“Canções Do Século” No Estoril
Alegres Panteras



RITA GUERRA, Lena d’Água e Helena Vieira passaram em revista, nas noites de sexta e sábado no salão Preto e Prata do casino do Estoril, as canções que fizeram a história da música ligeira deste século. Durante cerca de duas horas, as três cantoras, sempre vestidas de negro, quais panteras de garras afiadas e alegria felina, interpretaram a solo ou em conjunto as canções que ficaram na memória. De “Tea for two”, “Summertime” e “The Lady is a tramp” ao “Timpanas”, “Maldita Cocaína” e “A mula da cooperativa”. De “My funny Valentine”, “La vie en rose”, “My fair lady”, “The dock of the bay” e “Satisfaction” a “Tintarella di blu”, “Desfolhada” e “Ó José aperta o laço. Couberam todas. Como couberam todos os artifícios e pequenas vaidades do “jet-set nacional”, que voltou a marcar presença no casino, embora em menor número do que é habitual neste tipo de galas.
As canções, claro, eram o que toda a gente estava à espera. Mas primeiro era preciso confortar o estômago. Para tal, foram convidados artistas de outra estirpe que davam pelo nome de camarões (com maionese de ervas finas) ou – mais “raffinés” – “suprêmos [com acento] de pato estufado com laranja” e “bavaroise” de morango. O espectáculo propriamente dito, que incluiu projecção de “slides” sobre e ao lado do palco, teve direcção de Pedro Osório e apresentação de Júlio César. Este, em contraste com o negro dos vestidos das cantoras, fazia sobressair de um fraque branco a sua voz bem modelada pelo espectáculo de que faz parte, inspirado em Salvador Dali e que tem vindo a decorrer nesta mesma sala (o lado interior da entrada no salão foi transformado na célebre boca vermelha de Mae West). Já na parte final das “Canções do Século”, as três vozes femininas interpretaram temas de José Afonso, em homenagem a este autor, e uma rapsódia bem recheada de composições de outros artistas portugueses, entre eles, Fausto, Carlos do Carmo, José Mário Branco, Trovante, Rui Veloso, Heróis do Mar, Sétima Legião e Xutos & Pontapés.
Ainda houve tempo para uma sessão de “karaoke” – um entretenimento por cá agora muito em voga e que consiste em qualquer pessoa poder cantar ao microfone músicas conhecidas, com acompanhamento de “playback” instrumental – feito por algumas figuras conhecidas presentes na assistência (Raul Solnado, Fernando Pereira, António Sala…), como forma de matar o tempo enquanto as três estrelas da noite mudavam de fato. A fechar, um dueto improvisado de “Menina estás à janela”, entre Helena Vieira e Rita Guerra e, em pé no meio das mesas, Paulo de Carvalho e Carlos do Carmo. Uma festa, com toda a gente a sair satisfeita do “Preto e Prata” pela boca de Mae West.
Agora é só esperar até ao ano dois mil por novas canções. Se ainda houver.

Simone – “Simone Actuou No Casino Do Estoril – ‘Tem Um Guardanapo Que Me Empreste?'” (concerto / casino do estoril))

Cultura >> Domingo, 12.07.1992


Simone Actuou No Casino Do Estoril
“Tem Um Guardanapo Que Me Empreste?”



SIM, É verdade: “Ter saudades é bom. A alma renasce, o corpo inquieta-se. O amanhã parece nunca mais chegar. É afinal o desejo feito de mil sentidos, apurados até à vertigem”, anunciava o anúncio do Casino, a propósito de mais uma vinda de Simone a Portugal. Estávamos cheios de saudades e sentimos nitidamente a alma renascer e o corpo todo numa inquietação, à beira da vertigem. E o amanhã que nunca mais chegava!… Simone, essa, chegou e triunfou.
No cardápio da noite de sexta-feira, por 12 mil escudos e traje recomendado – fato escuro -, a lista era a seguinte, por ordem de entrada: música ambiente, misto de fumados com molho de rábano, medaçhões de vaca Pompadour, torta de laranja com molho de baunilha, café, Simone, aplausos. Vinhos: garrafeira Estoril-Sol. Os doze contos da entrada não incluíam o “show” de maminhas de Mozart. Em termos de qualidade, Simone apenas terá sido ultrapassada pelos vinhos da garrafeira Estoril-Sol, vencendo facilmente a torta, os fumados e os medalhões.
Um sax muito “downtown”, estilo “Nova-Iorque fora de horas” serviu de cenário à entrada triunfal da cantora. Vestida, como sempre, de branco, com um longo vestido decotado que lhe dava um ar de sereia, Simone lançou-se de imediato na interpretação dramática de “Sou eu”, não fosse alguém confundi-la com a Gal ou a Betânia. Depois, até ao fim, foi só amor. Quarentona bem conservada, a cantora mostrou que continua em forma. Mantém uma aparência óptima e um razoável jogo de braços, exemplificado na largueza dos gestos e numa imitação de maestro em que fingiu dirigir os músicos da banda. O “potencial erótico” em que é exímia é que nem por isso esteve em grande evidência, limitando-se, neste campo, a limpar o suor do pescoço, voltada de costas para a assistência, e a sacudir várias vezes a farta cabeleira (as artistas brasileiras gostam todas de sacudir a farta cabeleira). Sensual, continua a voz. Com o “coração na graganta”, como dizem que tem, não admira.
Numa sequência de 17 canções, qual delas a mais romântica, distinguiram-se os diálogos da voz com a guitarra acústica de Luís Xapim, nas interpretações intimistas de “Eal e eu” e numa fabulosa “Jura secreta”. Ao nível poético, as letras recorreram aos jogos estruturalistas que a língua portuguesa autoriza, sobretudo se tiver sotaque brasileiro: “eu te amo”, “eu vou te amar”, “eu te amei”, na conjugação amorosa de todos os tempos possíveis do verbo.
A “overdose” de amor tinha entretanto instalado no salão “Preto e Prata” do Casino uma atmosfera de calor humano que, juntamente com a excitação, o fumo e a digestão dos fumados e medalhões, tornava o ar quase irrespirável. A certa altura acendeu-se numa das mesas uma estrelinha (antes só dois tímidos isqueiros tinham dado um ar da sua graça), simbolizando o brilho dos corações e a ternura imensa que nessa altura fluía já num imenso mar de amor por toda a sala. Foi belo, muito belo.
Depois, já no “encore”, com “Será” em miscelânea, tudo acabou em samba e carnaval – os corpos ergueram-se e dançaram em apoteose que culminou no êxtase colectivo e no ritual de agitar os guardanapos. Alguém que durante o jantar deve ter limpo a boca às mãos, implorava à mesa do lado, numa excitação: “Tem um guardanapo que me empreste?”