Arquivo da Categoria: Críticas 1991

Vários (Delerium, Hans-Joachim Roedelius, Holger Hiller, Kraftwerk, O Yuki Conjugate, Ad Vielle Que Pourra, Catherine-Ann MacPhee, Hamish Moore & Dick Lee, Les Nouvelles Polyphonies Corses Avec Hector Zazou, Ron Kavana) – “Os Melhores Do Ano – Electrónica + World”

Pop-Rock Quarta-Feira, 31.12.1991


OS MELHORES DO ANO

ELECTRÓNICA
O ANO QUE PASSOU FOI DE TRIUNFO PARA OS ELECTRÕES. A ELECTRICIDADE SEMPRE FOI UM BOM CIRCUITO DE INFORMAÇÃO. Os sinais não enganam: passado e futuro tocam-se e confundem-se. Na Europa, sobretudo, de novo se constrói a torre de Babel.


Delerium
Stone Tower
(Dossier)

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Produto típico da alanegra dos pseudomagos que apostaram em car cabo das nossas cabeças, por dentro e por fora. Neste caso não há agressões psíquicas abaixo dos 2Hz ou acima das “frequências caninas”, nem grandes rituais de sangue provocados pelo rebentamento de tímpanos. Pelo contrário, embora na capa proliferem as habituais imagens de corpos em agonia, caveiras e arquitecturas de pesadelo, os Delerium, facção “ambiental” dos Front Line Assembly, enveredam pelas religiosidades obscuras, abrindo paisagens de sombra e labirintos por onde divindades pagãs aproveitam para se infiltrar. Longos mantras etno-demoníacos que incluem na versão CD cerca de meia hora extra de hipnose. Um tratado de necromancia que pode provocar habituação à paranoia. Para ouvir de noite, com cuidado.

Hans-Joachim Roedelius
Der Ohren Spiegel
(Multimood)



Dividido entre a devoção ao piano, a Erik Satie e Alban Berg e a nostalgia das explorações electrónicas de antanho realizadas com Dieter Moebius, nos Cluster, Roedelius consegue aqui o equilíbrio perfeito entre duas pulsões contraditórias, a simplicidade e o barroco. Exorcizado o espectro das teclas de marfim em “Piano Piano”, para piano solo, Roedelius revela-se como um arquitecto de sons visionário, ombreando com Brian Eno na construção de estruturas tímbricas e harmónicas (no seu caso bastante mais complexas que as do autor de “Discreet Music”) que parecem desafiar a gravidade. “Reflektorium”, o tema mais longo do CD, tem o esplendor, os reflexos matizados e o requinte de pormenor de um candelabro de cristal.

Holger Hiller
As Is
(Mute)



Antigo membro dos Palais Schaumburg, autor de óperas sobre “calças” e auditor atento de Stockhausen, Faust, Einstuerzende Neubauten e de música pop num rádio a pilhas mal sintonizado, Holger Hiller produz música dourada a partir de detritos e excrescências sonoras a partir de excertos de Wagner. Diverte-se a misturar pedaços de sinfonias, de ruídos, de vozes e melodias incertas no seu cadinho de alquimista louco – o “sampler”, máquina mágica onde nada se perde e tudo se transforma. À semelhança dos geniais “Ein Bundel Faulnis in der grube” e “Oben im Eck”, “As Is” é “como é”, um programa musical, na aparência sem sentimento, mas onde a cada segundo o som dispara em direcções surpreendentes, das refracções “dub” à pop do outro lado do espelho. O discurso da esquizofrenia tem a sua lógica própria.

Kraftwerk
The Mix
(EMI)



Ralf Florian e Florian Schneider não vão atrás da Europa, a Europa é que lhes segue no encalço. Os dois alemães vestiram de novo as fardas de humanoide, carregaram baterias, ligaram os interruptores do estúdio Kling Klang e procederam como cirurgiões-robot especializados, com bisturis laser e uma ironia não menos cortante. Operaram maravilhas de cirurgia plástica nos clássicos da “techno-pop” industrial gerados pela maquinaria do Rur e polidos no paraíso de cristais de quartzo e fibra óptica de “Silicon Valley”: “We Are The Robots”, “Computer Love”, “Autobahn”, “Radio Activity”, “Trans Europe Express” – binários e insinuantes como sempre, e agora mais dançáveis que nunca. Regresso em forma ao futuro.

O Yuki Conjugate
Peyote
(Multimood)



Alinhados com os Light In A Fat City, afilhados de Jon Hassell e das músicas do “quarto mindo”, atentos às pulsações das culturas e dos mitos africanod e aborígenes, os O Yuki Conjugate desenham os contornos de um “realismo fantástico” que povoam de monstros projectados pela tecnologia electrónica. “Peyote”, como o anterior “Into Dark Water”, sendo mais um produto representativo da grande síntese do final do milénio, tendência “novo primitivismo”, avança por alamedas laterais, por via da alucinação, abolidas as noções tradicionais do espaço e do tempo. Música intuitiva, elemental, naturalista por essência e ambígua na condição de ícone da nova idade das trevas. Se “Into Dark Water” era a escuridão do fundo oceânico, “Peyote” é a miragem do deserto, a vibração desfocada, o retorno ao incriado.

WORLD
1991 foi sobretudo o ano de reedições em CD, de parte de discografias importantes – dos Planxty, Chieftains, Malicorne, Milladoiro e Steeleye Span. Tudo importações, claro. Outras “novidades” chegaram ao mercado nacional pelo menos com um ano de atraso, razão por que não puderam constar da presente lista.


Ad Vielle Que Pourra
Come What May
(Green Linnet)



Originários do Canadá, os Ad Vielle Que Pourra pretendem “unir o caldeirão de influências americano às raízes europeias”. Aliam o virtuosismo, ecletismo e magia, um pouco à maneira de uns Blowzabella mais extrovertidos. Há na música dos Ad Vielle uma energia contagiante, resultante da correcta assimilação e articulação da tradição francesa, e em particular da bretã, com a música de realejo, as valsas palacianas ou a canção de cabaré, em combinações instrumentais, ora frenéticas, ora bizarras, da bombarda e da gaita-de-foles flamenga, da sanfona, do violino, do acordeão e do bouzouki… Música para “viajar pelo mundo ou pelo interior de nós próprios”.

Catherine-Ann MacPhee
Chi Mi’n Geamhradh
(Green Trax)



Catherine canta em gaélico as habituais histórias da história escocesa, às quais e maistura das brumas célticas com as névoas não menos poéticas do “whisky” retira um pouco de credibilidade. Mas a falta de rigor científico e o tom pueril de canções como aquela que narra os desgostos amorosos de “um jovem vendo a rapariga que ama abandoná-lo, para casar com outro, o que lhe parte o coração [ao jovem, não ao outro]” são compensados pela excelência do canto. Entre um acompanhamento instrumental invulgar, a harpa cintilante de Savourna Stevenson garante por si só o sortilégio.

Hamish Moore & Dick Lee
The Bees Knees
(Green Linnet)



Caminho difícil e excitante, o da fusão das sonoridades tradicionais com o jazz. John Surman (“Westering Home”), Ken Hyder’s Talisker ou Jan Garbarek (“I Took up the Runes”” e “Rosensfolle”, este com Agnes Buen Garnas), do lado do jazz, já o haviam tentado com sucesso. Do “outro lado”, registe-se a fase inicial dos Gwendal, de “À vos Désirs”, os suecos Filarfolket, em “Smuggel”, os ex-jugoslavos Zsarátnok, em “Holdudvar”, June Tabor em “Some Other Time, Savourna Stevenson, em “Tweed Journey”, e aproximações pontuais da malograda Sandy Denny. “The Bees Knees” vive do diálogo / confrontação entre a gaita-de-foles e o “tin whistle” tradicionais de Hamish Moore, e os saxofones e clarinete-baixo de Dick Lee. Os puristas poderão franzir as sobrancelhas. Mas as pulsações do coração e as pernas nem por isso deixarão de acelerar.

Les Nouvelles Polyphonies Corses Avec Hector Zazou
Les Nouvelles Polyphonies Corses
(Philips)



Sensível ao poder do eixo que liga a pedra e a terra ao céu, Hector Zazou, num exercício que acaba por se assumir como ponto culminante e corolário lógico de “Géographies” e “Géologies”, soube manter os computadores à distância exacta da religiosidade e do arrebatamento do canto corso, deixando-lhes o espaço necessário à oração e à elevação. Os sons electrónicos ou da profusa instrumentação utilizada neste projecto não interferem com a energia do canto, antes lhe servem de alavanca de apoio, facilitando-lhe a ascese e constituindo um estímulo adicional ao discurso da alma. A constelação de “figuras” presentes – Ryuchi Sakamoto, Ivo Papasov, John Cale, Steve Shehan, Manu Dibango, Richard Horowitz, Jon Hassell – participa e assiste fascinada à cerimónia.

Ron Kavana
Home Fire
(Special Delivery)



Permanecendo de certo modo à margem do círculo “folk” britânico tradicional, Ron Kavana é um rebelde apostado em dotar a música irlandesa de uma carga política que tende, por vezes, a ser menorizada, em detrimemto do seu lado poético-mitológico. “Home Fire” recusa o perfeccionismo de estúdio que, nos últimos anos, tem vindo a retirar muito da espontaneidade que caracterizou o grande “boom” da década de 70, traduzido no aparecimento de grupos como os Planxty, Bothy Band, De Danann e Five Hand Reel, entre outros. Solução de compromisso entre as sonoridades mais marcadamente célticas das danças e dos instrumentais, e a importância dada às palavras, nas baladas de tom intervencionista. Mil vezes mais eficaz que Billy Bragg e infinitamente mais rico em termos musicais.

Peter Hammill – “The Fall Of The House Of Usher”

Pop-Rock Quarta-Feira, 18.12.1991


A QUEDA DA CASA DE HAMMILL

Peter Hammill
The Fall Of The House Of Usher
2XLP, CD, Some Bizarre, import. Contraverso



Há quase vinte anos que os incondicionais de Peter Hammill ouvem falar da célebre ópera. Esta chegou finalmente, e com ela o sabor da desilusão. O perfeccionismo, a tentativa de deixar para a posteridade um testemunho definitivo do seu génio foram fatais para o antigo vocalista dos Van Der Graaf Generator. Aprisionado num estilo que no passado frutificou nas obras-primas “Pawn Hearts”, “In Camera”, “Over”, “The Future Now” ou “A Black Box”, Hammill revelou-se, a partir deste último disco, incapaz de ultrapassar as suas próprias contradições, arrastando-se em “In A Foreign Town” e “Out of Water” numa agonia que nem a experiência com computadores de “Spur of the Moment” conseguiu sarar.
A famigerada ópera parte da narrativa de Edgar Allan Poe, “A Queda da Casa de Usher”, adaptada a “libreto” por Chris Judge Smith. Escolha óbvia de enquadramento para as paranoias do músico: a incomunicabilidade, a hipersensibilidade mórbida, a tendência para a autodestruição. Hammill incarna, como não podia deixar de ser, a figura do nobre alucinado Roderick Usher, que vive aprisionado nas paredes – as suas paredes, o seu pesadelo – de uma casa doente. Andy Bell é o amigo, Montresor. Lene Lovich, a irmã, Lady Madeline, enterrada viva por Usher. Herbert Grönenmeyer, o ervanário. Não falta o coro, à maneira das tragédias gregas, interpretado por uma só voz, de Sarah-Jane Morris, e as “vozes da casa”, desempenhadas por Peter Hammill.
A história da maldição, loucura e decadência, que conduzem à ruína final, não podia ser melhor escolhida para traduzir o universo estético-existencial do ex-Van Der Graaf. À música, infelizmente, falta o fulgor e o génio de que este foi pródigo em obras anteriores. A insistência sistemática nas texturas orquestrais realizadas por computador procura, ao nível da paleta tímbrica, associações com a grandiosidade deseperada da sequência “Gog / Magog” de “In Camera”, mas a repetição dos registos de cravo e a tirania das cordas, interrompidas por uma ou outra ousadia pontual, acabam por tornar monótona a audição.
Como novidade, apenas os jogos vocais e a presença de vozes femininas, inéditos na obra do compositor. Dos seis actos em que se divide a ópera, da descrição da paisagem desoada que rodeia a casa maldita à derrocada final, destacam-se o tom sinistro das sobreposições vocais de Hammill em “Architecture”, síntese de uma das suas obsessões de sempre, a fobia dos espaços fechados e a simbiose edifício-homem, evidente em temas anteriores da sua discografia como “A House with no door”, “(In the) black room” e “A louse is not a home”, e o diálogo Usher / Montresor em “Leave this house”, dilaceração de Roderick Usher entre o apelo do amigo para abandonar o ventre do monstro e a consciência de um destino trágico a cumprir no seio da casa. O ancestral combate entre as forças do bem e do mal, entre os anjos e os demónios que vivem dentro de cada um de nós, que Hammill já gritara no emblemático “Killer”, de “H to He, who am the only one”.
Temas como “One thing at a time” ou “The herbalist” dir-se-iam escritos por Meat Loaf. Na maioria dos casos, a música contenta-se sem servir de contraponto às palavras. Faltam sobretudo ideias, uma dinâmica diferente, de maiores contrastes, que sublinhasse com outra força o desenrolar da tragédia. Não era Hammill (e neste “era” ressoa a mágoa da oportunidade perdida) o pai de todos os excessos? (6)

Egberto Gismonti – “Infância”

Pop-Rock Quarta-Feira, 18.12.1991


EGBERTO GISMONTI
Infância
CD, ECM, distri. Dargil



O pecado de Egberto Gismonti é querer parecer europeu. Em “Infância”, o músico perde muito da magia a que nos habituara em trabalhos anteriores à fase ECM e parte do fulgorbita ainda obras já gravadas com o selo alemão. Aqui a intuição dá lugar a um discurso mais analítico, mesmo quando títulos como “A fala da paixão” ou “O amor que move o sol e outras estrelas” parecem sugerir o contrário. Álbum de progressões lentas e de assumida contenção, “Infância” prova que o reconhecido virtuosismo instrumental de Gismonti, ao piano ou na guitarra acústica, por si só não chega para entusiasmar, soando forçado e perdendo-se não poucas vezes em exercícios de estilo destituídos de chama interior, como acontece nas danças finais, nºs 1 & 2, ou na construção dos edifícios harmónicos com o violoncelo de Jacques Morelenbaum, falhos de originalidade e de inspiração. Bastante mais compensador é escutar Gismonti em “Kuarup” – reeditado ao mesmo tempo que esta “infância” desvalida que até vai buscar, na capa, um poema de Pessoa – encontro do músico com as raízes e o mistério da tradição e cultura do povo Xingu da Amazónia. Onde as águas e o génio fluem com a naturalidade que só a convivência com a verdade permite. (6)