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Dossier Alemanha – “O Século Da Eletrónica Kraut” (artigo de opinião)

21 de Julho 2000


Dossier Alemanha

O século da eletrónica kraut


Existe um elo a unir a música eletrónica alemã dos anos 70, 80 e 90. O krautrock cedeu o lugar à “neue deutsche welle” e esta aos atuais magos do “powerbook”. Os sonhos da “kosmische muzik” transformaram-se em pesadelos industriais e estes deram lugar a brincadeiras de crianças. Mas há quem nunca tenha perdido a última carruagem deste comboio. O PÚBLICO traçou o mapa dos principais músicos, conceitos, movimentos que ao longo das últimas três décadas, na Alemanha, desenvolveram novas relações entre o Homen e a máquina.



ANOS 70: O SONHO

Tínhamos ficado em meados dos anos 70, na Alemanha (ver “dossier” sobre Krautrock na edição do SONS de 7 de Maio de 1997). A eletrónica (pela via dos mestres “eruditos”, como Karlheinz Stockausen e Oskar Sala ou do space-rock-psicadélico excretado dos Pink Floyd de “Atom Heart Mother” e “Meddle”) mandava. Kraftwerk, Klaus Schulze, Tangerine Dream, Ashra, Faust, Can, Amon Düül II, Popol Vuh, Harmonia, Cluster, Yatha Sidhra, Mythos, Agitation Free, Eiliff, Wallenstein, Dzyan, Eroc, Achim Reichel, Embryo, Sand, Annexus Quam, Cornucopia, Brainticket, Cosmic Jokers viajavam pelos novos espaços abertos pelos osciladores e filtros LFO e VCF.
As palavras de ordem eram: Kosmische, freakout, psicadelismo, planante, cogumelos mágicos, jam, space rock, experimentalismo, zen, meditação, free rock, LSD, improvisação, alucinação, sintetizadores gigantescos usados também como elementos estéticos/decorativos, agit rock, romantismo, vida em comuna, underground, ficção científica…
Editoras principais: Ohr, Kosmische, Muzuk, Baccilus, Bellaphon, Brain, Kuckuk, Pilz, Sky.
Quando o punk rebenta em Inglaterra o krautrock agonizava já com o rock sinfónico e o hard rock FM de bandas como os Atlantis, Eloy, Birth Control, Message, Jane e Triumvirat. Os clássicos que resistiram e prosseguiram carreira traçavam o seu próprio caminho alheios aos movimentos e às correntes de estilo: os Tangerine Dream vendem milhões e batizam a new age; Klaus Schulze troca de equipamento e regula pela 346ª vez os seus sintetizadores para tocar o mesmo tema na sua viagem sem fim pelo cosmos; os Can hipnotizam-se a eles próprios e Holger Czukay é o único que se mantém acordado; os Popol Vuh meditam numa igreja; os Embryo descobrem o jazz e a world music; os Faust entram num período de hibernação de 20 anos; os Kraftwerk transformam-se em robôs e inventam o som da modernidade.
Mas era necessário fazer a transição do krautrock para os anos 80, acompanhando as novas revoluções da tecnologia, da sensibilidade e das ideias. Os principais transmissores do testemunho foram – depois da papinha ter sido toda feita pelos Neu!, punks “avant la lettre” – os La Dusseldorf, os Cluster e os D. A. F. Os La Dusseldorf fizeram a adaptação germânica da “new wave”, a chamada “neue deustche welle”, colando-lhe a batida electro-rock conhecida como “motorika”. Os Cluster abriram caminho ao “dark ambient” e ao industrialismo; os D. A. F. foram militantes do “disco” na versão sadomaso/militarista, escancarando as portas da cultura das discotecas. Uma última palavra de novo para os Cluster, que teriam de esperar mais uma década para verem o sentido lúdico da sua obra-prima, “Zuckerzeit”, ser reconhecido como absolutamente fulcral para o desenvolvimento de grande parte da produção eletrónica europeia dos nossos dias. Não estavam sós nesse papel: Kurt Dahlke, enquanto Pyrolator ou com os Der Plan, fazia com dez anos de antecedência a eletrónica brincalhona dos anos 90.

ANOS 80: A ENERGIA

Desbravado o território, o cinzento e o niilismo dos anos 80 abateram-se com violência sobre os novos “eletrónicos” alemães. A música industrial (preconizada de forma exemplar na década anterior pelos Kluster/Cluster, em todos os álbuns até “Cluster II”, pelos Kraftwerk até rolarem na auto-estrada, e por Conrad Schnitzler na solidão da sua obra a vermelho, em “Rot”) foi rapidamente assimilada e posta em prática, como sempre acontece com a maior parte dos músicos alemães, na sua vertente mais radical e experimentalista. Como os Einsturzende Neubauten e a sua declaração de intenções de destruição não só do rock como de toda a música em geral, à frente de todos os outros. Ao lado deles, Dieter Moebius, em paralelo com o seu trabalho nos Cluster, punha igualmente em funcionamento a sua própria indústria de metalurgia, com o auxílio da eminência parda Conny Plank.
Mas outros nomes emergem como pilares da eletrónica que vingou até aos nossos dias. Holger Hiller, vindo dos Palais Schaumburg, assina um trabalho, tão pioneiro como genial, de manipulação dos samplers. Holger Czukay investe com mais moderação na mesma área que corta a golpes de “dub”. Asmus Tietchens e Peter Frohmader perfilam-se ao lado de Conrad Schnitzler na elaboração de músicas sombrias que combinam as arquiteturas e o imaginário gótico com a maquinaria industrial e um ambientalismo do inferno que era o negativo da “cosmic music”. Michael Rother percorre a década a desenhar modelos românticos, adaptando a “motorika” a um “neo-easy listening” que mal se adivinhava nos dois principais grupos a que pertencera, os Neu! e os Harmonia. O segundo Cluster, Hans-Joachim Roedelius, hesita entre o piano impressionista, o ambientalismo de Eno e sonoridades mais experimentais.
Com menor projeção internacional, mas representativos de uma originalidade assumida a cem por cento, destacam-se ainda: Klaus Kruger (considerado por alguns o Brian Eno alemão), H. N. A. S. (Hirsche Nicht Aufs Sofa), Die Krupps, Die Todliche Doris (lançaram uma edição composta por sete minúsculos discos de brinquedo, onde esses discos podiam ser tocados…), Propeller Island, Hubert Bognermayer & Harald Zuchrader, Camera Obscura, Cranioclast, Michael Obst, Peter Schaefer, Sträfe Für Rebellion, Jörg Thomasius, Uludag, Harald Weiss, Die Vögel Europas.
Palavras de ordem: industrial, teatro, cabaré, maquilhagem, sintético, disciplina, uniforme, tecnologia, motor, bandeira, eletricidade, metal, vida na cidade, heroína, bizarro, máscara, homem-máquina, sampler, apocalipse.
Principais editoras: Ata Tak, Badland, Erdenklang, Innovative Communications, Sky, Warning, Zick Zack.

ANOS 90: O PRAZER

Tudo se vai, literalmente, misturar, nos anos 90. Logo no início da década, em 1991, os Kraftwerk cumprem pela última vez o seu papel de profetas, com o lançamento de “The Mix”. Pela primeira vez na sua música, a eletrónica, que durante duas décadas fora ensinada a emancipar-se no seio da música popular, nasce do reprocessamento e reciclagem de material antigo. Não é um ato de preguiça mas um ato de visão. Os Kraftwerk remisturavam os Kraftwerk. A música dos anos 90 remistura e remistura-se “ad infinitum”. Ralf Hutter e Florian Schneider tinham completado a sua obra. A partir daí o futuro deixaria de lhes pertencer.
O computador, utensílio musical por excelência da década de 90, mostrava nesse álbum o seu rosto de grande reciclador, produtor de clones infinitos, enumerador, arquivador, programador. A música abandonava o conceito de colagem (de que o sampler fora o derradeiro e absurdo instrumento musical humanista) para se abandonar à ideia de síntese.
Sínteses múltiplas de todas as músicas e de todas as tradições. É a era das “remixes”, das fusões outrora impossíveis, da aglutinação das experiências eletrónicas acumuladas nas quatro décadas anteriores. Trautoniums e theremins juntam-se aos Macs e PCs. O pós-rock junta os Moogs e ARPs analógicos às aparelhagens digitais. No fim, o powerbook (computador portátil) tudo domina e concentra nas suas mãos. Os grupos são alter-egos de um-músico-só. A eletrónica torna-se manipulação pura. Virtual. Mas haverá quem resista.
Ao grandes armazéns e fábricas dos anos 90 vem substituir-se o escritório. A eletrónica alemã, uma vez mais, vai tão longe quanto pode. “Grupos” como os Oval e Microstoria tomam conta dos sistemas de ar condicionado, dos scanners e das fotocopiadoras para criarem a banda sonora, já não dos “novos edifícios em colapso” dos Einsturzende Neubauten, mas de edifícios doentes, infetados pela poluição digital. Os suíços The User tomam o conceito à letra e compõem uma sinfonia construída a partir dos sons processados das entranhas de fotocopiadoras de agulha em funcionamento.
Mas, à semelhança do que aconteceu nas décadas de 70 e 80, a eletrónica alemã diverge em vários ramos. Três editoras em particular representam outras tantas tendências em vigor: a-musik, Mille Plateaux e a mais recente Storage Secret Sounds. No site da Mille Plateaux encontramos catalogações de estilo como “clickhouse”, “electronic listening”, “abstract hip hop”, “Elektroakustik”, “Noise” e “Musique concrete”. Pratica-se uma estética abstrata, conceptual, sistemática. Não sobram motivos de diversão nem para sorrir, mas , ao invés, para sofrer e ter medo. É a casa dos “powerbooks” de cenho fechado, dos estalidos de estática, das frequências puxadas até ao limite do inaudível, das programações sem piedade. No seu catálogo da net a música de um dos álbuns dos “operadores de escritório” Microstoria (de Markus Popp e Jan St.Werner) é definida simplesmente como “digital processing”, de resto um dos “géneros” preferenciais desta editora. A música já não como obra composta mas como o próprio processo “a priori”. A Mille Plateaux tirou a camada de tinta de cima da “man machine” dos Kraftwerk até deixar à vista apenas a estrutura de metal, como acontecia a Arnold Schwarzenegger em “O Exterminador Implacável”, título que poderia bem aplicar-se aos propósitos ideológicos e musicais da Mille Plateaux.
Principais nomes desta editora: Microstoria, Curd Duca, Gas, Terre Thaemlitz, SND, Porter Ricks, Christian Vogel, Pluramon.
A este reino do terro contrapõe-se a a-musik, uma tendência que ameaça tornar-se dominante. Aqui a eletrónica redescobre o prazer do som, das brincadeiras infantis, das programações Lego, das “private jokes”, das carícias dos ritmos e das melodias de carrossel. E do prazer que deriva, não da manipulação, mas do “velho” ato de “tocar”. Alguém na a-musik tinha guardados em casa “Zuckerzeit” dos Cluster e “Wonderland” dos Pyrolator e com esses dois discos construiu um mundo.
A a-musik surgiu na sequência da fusão de dois projetos: o coletivo de música industrial Kontakta, do qual faziam parte Christian Schulz e Frank Dommert, dos H.N.A.S., e a editora Erflog, fundada, entre outros, por Schulz, Dommert e Marcus Schmicker, dos Oval. Com a intenção de fazer “música industrial sem as imagens de atrocidade”, “techno sem o funk”, “new wave sem os penteados ridículos” e “eletro-acústica” sem a acústica”.
Principais nomes desta editora: F.X. Randomiz, Holosud, L@n, Sator Rotas, Schlammpeitziger, Felix Kubin.
Esta faceta lúdica é levada às últimas consequências na Storage Secret Sounds, no seio da qual artistas como Feliz Kubin (fica aqui melhor instalado do que na a-musik…), Nova Huta e Mikron 64 de deliciam a brincar numa cerca para bebés com plasticina, ursos de peluche e carrinhos de corda, e a ler histórias aos quadradinhos. A única regra é a do passeio pela feira popular. Feliz Kubin faz desenhos animados acústicos, histórias de BD para os ouvidos. Os Nova Huta (de Oleg Kostrow que não é alemão mas russo…) embrulham o easy-listening na banda sonora de um filme-negro e acompanham com uma orquestra sinfónica. Os Mikron 64 apanham o automóvel a technopop e programam melodias infantis em microcomputadores da primeira geração.
Outros nomes importantes: Arovane, Atom Heart, Bernd Friedmann, Bluthsiphon, Fetisch Park, Funkstörung, Konrad Kraft, Pole, Rechenzentrum, Sack & Blumm, Schneider TM, Sciss, Soul Center, Tele:Funken, Thomas Köner, Tied+Tickled Trio, Workshop.
Na Áustria cabe um papel importante aos Orchester 33 1/3, agora separado nas suas duas principais parcelas: Christian Fennesz e Christof Kurzmann, este último sob o pseudónimo B. Fleischmann. A editora que fundaram, a Plag Dich Nicht, transformou-se na Charhizma, para onde também gravam os Shabotinski.
No meio da confusão, alguns dos “velhos” continuam imperturbáveis: os Faust, ressuscitados pela mão de Jim O’Rourke, tornaram-se ainda mais os maus da fita, destruindo e incendiando os palcos por onde passam. Moebius prossegue nos Ersatz o seu percurso inigualável. Roedelius compõe sinfonias de eletrónica bizarra. Os Neu! e os La Dusseldorf fundiram-se na entidade coletiva dirigida por Klaus Dinger sob o genérico La! Neu?. Holger Czukay continua a esburacar. O espírito do “krautrock” revive nos Space Explosion, supergrupo formado por Moebius (Cluster), Mani Neumeier (Guru Guru), Jürgen Engler (Die Krupps), Chris Karrer (Amon Düül II) e Zappi Diermaier e Jean-Hervé Peron (ambos dos Faust). Quanto aos Einsturzende Neubauten, garantem que o silêncio é sexy e compões canções de amor…

10 álbuns dos anos 80

D.A.F. Gold und Liebe (1980)
EINSTÜRZENDE NEUBAUTEN Halber Mensch (1985)
HOLGER CZUKAY On the Way to the Peak of Normal (1980)
HOLGER HILLER Oben im Eck (1986)
KRAFTWERK Computer World (1981)
MOEBIUS & PLANK En Route (1986)
DER PLAN Es Ist ein Fremde und Seltsame Welt (1987)
PROPELLER ISLAND The Secret Convention (1988)
PYROLATOR Wonderland (1984)
DIE VÖGEL EUROPAS Best Before (1989)

20 álbuns dos anos 90

B. FLEISCHMANN Pop Loops for Breakfast (1999)
ERSATZ Ersatz II (1992)
FUNKSTÖRUNG Appetite for Destruction (2000)
F. X. RANDOMIZ Goflex (1997)
HANS-JOACHIM ROEDELIUS Sinfonia Contempora No. 1 (1994)
HOLOSUD Fijnewas Afpompen (1998)
KONRAD KRAFT Alien Atmospheres (1996)
KREIDLER Appearance and the Park (1998)
L@N L@n (1996)
MICHAEL ROTHER Esperanza (1996)
MOUSE ON MARS Iaora Tahiti (1995)
ORCHESTER 33 1/3 Orchester 33 1/3 (1997)
SCHLAMMPEITZIGER Spacerockmountainrutschquartier (1997)
SHABOTINSKI (B)ypass (K)ill (1999)
TELE:FUNKEN A Collection of Ice Cream Vans vol.2 (2000)
THOMAS KÖNER Nunatak Gongamur (1990)
TIED & TICKLED TRIO EA1 EA2 (1999)
TO ROCOCO ROT CD (1996)
WORKSHOP Meiguiweisheng Xiang (1997)

Rococós

Começou por ser o nome de uma galeria de arte de Berlim, dirigida pelos irmãos Ronald e Robert Lippok, antes de se tornar o nome de um dos grupos mais interessantes e criativos da nova eletrónica alemã: To Rococo Rot. Os dois decidiram começar a fazer música chamando um terceiro elemento, Stefan Schneider, de outra banda recém-formada, neste caso oriunda de Dusseldorf, os Kreidler. Da primeira sessão realizada pelos três resultou o álbum “CD”, de 1995, uma coleção de sons eletrónicos plenos de força e originalidade, onde eram detetáveis as influências dos Can e de Dieter Moebius, dos Cluster. Ronald Lippok integrava ao mesmo tempo os Tarwater enquanto o seu irmão se dedicava a trabalhos de remistura e djing. Em “Veiculo”, segundo álbum dos To Rococo Rot, o som e as batidas tornam-se mais suaves, numa transição semelhante à dos Kraftwerk, de “Ralf and Florian” para “Autobahn”. Colaborações com Move D, da Source Recods, e D, da Soul Static, culminam na participação do DJ I-Sound numa das faixas do terceiro álbum da banda, “The Amateur View”.

Marcianos

Entre os inúmeros nomes da nova escola eletrónica alemã destaca-se o dos Mouse on Mars, dupla composta por Andi Toma (natural de Colónia) e Jan St.Werner (Dusseldorf). Cedo abandonaram a cena techno para se concentrarem na produção de sonoridades eletrónicas mais abstratas mas não menos desprovidas de “groove” que alternam o paisagismo alucinado e programações ora raivosas ora subliminares, nas quais são percetíveis as marcas deixadas pelos Cluster e pelos Kraftwerk. Eles gostam de citar igualmente os Can e os Neu!, com os quais dizem ter aprendido a “usar instrumentos ‘vivos’ como a guitarra, o baixo e a bateria”. Mas quem já os viu atuar ao vivo pode verificar que os instrumentos “vivos” que Andi e Jan utilizam estão mais de acordo com o espírito dos anos 90: um emaranhado de circuitos e dispositivos eletrónicos dispostos sobre uma mesa de trabalho a partir dos quais os dois alemães constroem uma barreira sónica que vai da hipnose ao massacre, do minimalismo brutal a cadências “clusterianas” em suspensão. Para ouvir com urgência são os álbuns “Vulvaland”, as danças mentais do novo “Niun Niggung” e, sobretudo, o disco que entrará para os anais do novo electrokraut, “Iaora Tahiti”.

NOTA (do SONS – dia 28 Julho): Algumas correções relativas ao texto “Um Século de Eletrónica Kraut” publicado na última edição do Sons. É Markus Popp o mentor dos Oval e não Marcus Schmickler, elemento dos Pluramon e “alter ego” dos projetos Wabi Sabi e Sator Rotas. Os The User compuseram uma sinfonia eletrónica, não para fotocopiadoras, mas para impressoras de agulha. Finalmente, Oleg Kostrow não faz parte dos Nova Huta.



Música Portuguesa, Que Futuro?

[…]

Vitorino – “Se pudesse, gostava de cantar em sérvio, ou em gaélico. Em inglês é que não… Por isso é que comecei a cantar em castelhano [num álbum recente, “La Habana 99”, com reportório cubano e a presença do Septeto Habanero]…”
“Os textos em inglês que muitas bandas cantam estão sintacticamente errados.”

Amélia Muge – “Nada do que o Fernando Pessoa escreveu em inglês o impediu de escrever o que escreveu em português. E o Eça teve um cargo importante no consulado em Paris. Eu canto em português, porque é a maneira de resolver, em mim própria, influências que recebo de muitos sítios. Fazer uma canção com a mesma matéria, a mesma língua, com que penso. Um poema é, antes de mais, uma base de trabalho sonora”

Miguel Cardona – “Escrevo em português e em inglês. Quando é um ‘rapport’ autobiográfico, escrevo em português. É a única via para ser sincero comigo mesmo. As coisas não me acontecem em inglês. Nas quando aio da minha vida, já posso recorrer ao inglês.”

Jorge Dias – “Está associada a quem canta em inglês uma ideia de antipatriotismo. É uma estupidez completa. Não há coisa que mais me entristeça do que poder absorver uma islandesa como a Björk, uns judeus belgas ou uns tipos franceses, todos a cantar em inglês, e não conseguir ver ninguém do meu país a conseguir vingar lá fora, a conseguir mostrar que em Portugal se fazem coisas tão actuais e tão interessantes como no resto da Europa, sem ser remetido para a categoria do exotismo.”

Rui Reininho – “Os brasileiros apropriaram-se da linguagem de computador e já falam em ‘downlodar’ ou ‘browsar’.”
“No outro dia reparei num cartaz de uma ‘rave’. É impressionante como se faz uma solicitação destas sem uma única palavra em português. É uma tentativa de globalizar. Em Atenas ou no Senegal seria a mesma coisa. É tudo a mesma tribo.”
“É importante a defesa da língua portuguesa. Aprendi um bocado isso com os nossos amigos galegos. Não lhes passa pela cabeça cantar em inglês. E, se calhar, em certos aspectos, até são mais modernaços do que nós.”

Miguel Cardona – “Os espanhóis dobram tudo. Tem a ver com uma certa ideia de nação. Nós, enquanto artistas, reportamo-nos muitas vezes a coisas exteriores. Um guitarrista fala do seu ‘amp’, num som de “Rhodes”, há toda uma linguagem corrente em inglês.”

FM – O presente, parte 2. As editoras são as bruxas da história, porque só promovem o produto que vem de fora. Os “media” são vilões, porque só escrevem sobre música chinesa. O Estado não apoia. Há preconceitos e barreiras a romper.
Miguel Cardona – “O rock cantado em português não sofre da mesma injecção de espuma que o inglês. É possível ler nos jornais ‘revivals’ de Bob Dylan ou Pink Floyd, com a cumplicidade de toda a gente, que não passam de meras manobras de promoção de limpeza de fundo de catálogo. Com certeza que não vão buscar os NZZN ou os Tantra e promovê-los na América…”

Vitorino – A rádio não passa música portuguesa, enquanto as percentagens de música anglo-americana são brutais. O Ministério da Cultura só dá força ao cinema. Tem que começar a apoiar a música portuguesa. Os Beatles foram condecorados pela Rainha.”
Jorge Dias – “As bandas que cantam em inglês também não passam na rádio. Não por cantarem nesta ou naquela língua, mas porque não têm o apoio de uma grande campanha de ‘marketing’. Não há critérios de avaliação. As pessoas limitam-se a colar-se a modelos de sucesso. Como, com raras excepções, não se consegue criar cá nenhum desses modelos, ninguém liga. Quem está nos centros de decisão pertence à geração do Rui, dos que conquistaram para a música a língua portuguesa, mas que, de repente, fecharam os olhos. Existe hoje um caciquismo, entre aspas, nos ‘media’ e, sobretudo, nas editoras. Apresenta-se uma banda a cantar em inglês e é recusada só por esse facto, nem sequer chegam a ouvir.”

Rui Reininho – “Tenho pena de que ninguém tenha rompido aquela barreira do meio milhão de discos. Toda a gente encravou nos 300 mil. É uma barreira psicológica.”

FM – O futuro. Globalizar ou resistir. O que é que podemos fazer?
Talvez socializar.

Amélia Muge – “As coisas que vêm do Norte têm uma conotação de tecnologicamente mais avançadas, enquanto o étnico estaria umbilicalmente ligado a um certo terceiro-mundismo. A imagem da música, da cultura portuguesa, enquanto for passivamente vendida sob estas conotações de mercado, tem que submeter-se à máxima do ‘quanto mais étnico ‘ melhor. Se calhar o circuito que vende os Madredeus não é o mesmo que vende a música tradicional portuguesa, no seu sentido folclórico.”

Vitorino – “Há uma grande música deste século, a música anglo-americana dos anos 60 e 70, conotada com um movimento social universal. Depois entrou numa decadência horrível, quando começou a ficar visual, a ouvir-se através dos ‘clips’. Subverteu-se a escuta. No Midem latino de Miami as estatísticas afirmavam que nos últimos três anos a música anglo-saxónica já tinha perdido no mundo um espaço de 6 por cento para as músicas de expressão castelhana. A única possibilidade que temos de exportar uma música cantada em português no mundo é fazer uma aliança com os brasileiros, como os espanhóis têm com toda a América Latina e as Caraíbas. Infelizmente os brasileiros fecharam-se a nós nos anos 60, coincidindo com a ditadura.”
“A salvação é a socialização dos meios. Dentro de uns dois anos eu ou o Rui Reininho podermos gravar em casa sozinhos. Os anglo-saxónicos inventaram os ‘media’ e nós vamos aproveitar e socializá-los.”

Dossier: Música Electrónica Portuguesa

14.01.2000
Dossier
Música Electrónica Portuguesa

“Tenho que lhe dizer o quanto apreciei o seu álbum ‘Plux Quba – Música para 70 Serpentes’. Considero-o um dos mais originais e maravilhosos trabalhos que alguma vez ouvi. Delicio-me com cada momento do disco, terno e humano e, contudo, caracterizado por uma linguagem muito própria. A partir do momento em que o ouvi fiquei com vontade de conhecer mais música sua. Escreveu algum material novo desde essa altura? Tem planos para um novo disco? Caso esteja interessado gostaria de gravar alguma da sua música na minha editora.”
(excerto de uma carta endereçada a uno Canavarro por Cristoph Heeman, músico alemão, ex-Coil e actual elemento dos H.N.A.S. e Mimir.)

LINK

Música Electrónica Portuguesa em Análise
O Ovo da Serpente
Christoph Heeman adorou o disco de Nuno Canavarro, prontificando-se a gravar mais material deste músico português. Por cá é mais difícil. Fizemos o retrato do estado actual da música electrónica no nosso país, convidando os músicos a pronunciarem-se.

Editado pela Ama Romanta, em 1988, em paralelo com “Música de Baixa Fidelidade”, de Tó Zé Ferreira, “Plux Quba” acabou por ser reeditado em CD no ano passado, mas pela editora norte-americana Moikai, de Jim O’Rourke, um dos gurus do pós-rock. Acrescente-se ainda o facto de Chrstoph Heeman e Jan Saint-Werner (Mouse on Mars, Microstoria) admitirem a influência de “Plux Quba”.
Mas, como santos da casa não fazem milagres, muito menos se os fizerem música electrónica e ainda menos se viverem em Portugal, por cá, este e outros trabalhos são sistematicamente ignorados e mal apoiados pelos “media” e recusados pelas grandes editoras. Aos poucos, contudo, criou-se em Portugal um circuito paralelo, no qual tanto a música electrónica como outras rotuladas de “alternativas” conquistaram um pequeno mas merecido espaço. Editoras/distribuidoras como a Ananana, a Áudeo e a Symbiose arriscaram produzir e editar álbuns nacionais que escapam aos esquemas do “mainstream”.
É verdade que a música electrónica não tem grandes tradições em Portugal, se exceptuarmos obras de compositores eruditos como Jorge Peixinho, Constança Capdeville ou Emmanuel Nunes. Na música popular, no auge do rock progressivo foi preciso esperar que o actual maestro Miguel Graça Moura trouxesse de Londres o primeiro sintetizador Moog ouvido em Portugal. O então teclista dos Pop Five Music Incorporated formou, especialmente para o efeito, em honra do aparelho, os Smoog, cuja estreia ao vivo teve lugar no Coliseu dos Recreios em Lisboa, na primeira parte de um concerto de B. B. King. Depois disso os músicos portugueses não se interessaram muito pela tecnologia electrónica então emergente. Os Moogs, A.R.P. e Korgs eram caros, era preciso mandar vir de fora, e saía mais em conta adquirir um bom órgão Hammond ou Farfisa ou um piano eléctrico Fender Rhodes ou RMI…
Os Anar Band, de Jorge Lima Barreto e Rui Reininho, foram outros dos pioneiros na utilização do sintetizador em Portugal, com uma música artesanal que misturava a electrónica e o free-jazz. Na pop era mais raro escutar-se o Moog com uma excepção honrosa: o álbum “10.000 Anos depois entre Vénus e Marte” de José Cid, um dos marcos da pop progressiva nacional. Alguns anos mais tarde também os Tantra, considerados os Genesis nacionais, usaram e abusaram dos sintetizadores.
Chegados aos anos 80, assistiu-se à explosão da electropop, representada em Portugal pelos Street Kids, de Nuno Rebelo e Nuno Canavarro, pelos Corpo Diplomático, de Pedro Ayres e Paulo Gonçalves, antes de formarem os Heróis do Mar, e pelos Ocaso Épico, de Farinha. Era a época de ouro dos sequenciadores e das caixas-de-ritmo. Mas a pedrada no charco foi atirada, nessa mesma década, pela editora Ama Romanta, de João Peste, com o lançamento simultâneo de dois álbuns fundamentais: o já citado “Plux Quba”, de Nuno Canavarro, e “Música de Baixa Fidelidade”, de Tó Zé Ferreira, dois músicos de formação na área da electrónica erudita, mas com uma sensibilidade pop. “Sagração do Mês de Maio”, composto por Nuno Rebelo para um desfile de moda, é outro objecto incontornável da electrónica portuguesa. Jorge Lima Barreto, agora na companhia de Vítor Rua, ex-GNR, formara entretanto os Telectu, continuando a experimentar novos sintetizadores e fórmulas musicais como o minimalismo.
Nos anos 90, com a democratização e progressivo compactamento e acessibilidade da tecnologia electrónica digital (“Power stations”, “sampler”, computador, etc.), tornou-se mais fácil e menos dispendioso criar música electrónica em Portugal. Proliferaram os grupos, num leque de estilos que vai da música industrial dos Bizarra Locomotiva à música cinemática do veterano Luís Cília (em “Bailados”), da new age inteligente de Carlos Maria Trindade (a solo, em “Deep Travels” e, com Nuno Canavarro, no clássico “Mr. Wollogallu”) à electrónica “noise” dos No Noise Reduction, da colagem estruturalista de José Pedro “Discmen” ;oura à visão mais lata e universalista de Nuno Rebelo, Vítor “Freefield” Joaquim e António Emiliano. Para os lados da electrónica erudita João Pedro Oliveira, Carlos Zíngaro e os Miso Ensemble experimentam, por seu lado, as possibilidades e novos horizontes de uma música que marcará, decisivamente, as sonoridades e a sensibilidade artística do novo milénio.

Electro-Reparadora Lusitana
Carlos Zíngaro, Tó Zé Ferreira e Miguel Sá (dos ZZZZZZZZZZZZZZZZP!) responderam a um questionário sobre o estado actual da música electrónica portuguesa e sobre a música electrónica em geral. A reparação possível.
FM – É possível a criação de um circuito regular de música electrónica (edição de discos, espectáculos, seminários, etc.), em Portugal? Em que moldes? Quais os principais obstáculos?
CARLOS ZÍNGARO – Apesar de algumas fronteiras se diluírem, continua a existir uma diferença determinante entre o que é comercial e de consumo e o resto (margens?). Como tal, deixando de lado a discoteca ou a “rave”, pergunto: onde estão os locais para a apresentação das “live electronics” contemporâneas, experimentais, interactivas, etc., com um mínimo de regularidade e condições económicas e técnicas? Onde estão os editores minimamente interessados na publicação/divulgação destas músicas? Ainda, quais as instituições vocacionadas para a organização de seminários temáticos? (Em abono da verdade, o CCB organizou um em 1998, comigo e com o Richard Teitelbaum – desconheço outras iniciativas do género.)
A música electrónica sofrerá exactamente dos mesmos problemas daquelas áreas no nosso país. Por um lado, um eruditismo formal(izador), fechado, institucional e museológico da chamada “obra” – nos casos das músicas contemporânea e electroacústica -, por outro, a quase total marginalização e mesmo boicote para com todas as outras…
Principais obstáculos? Sendo [certo] que o público existe (já o comprovei repetidas vezes), só poderá ser a ignorância, incultura, reaccionarismo e analfabetismo generalizados de quem decide, divulga e organiza… – apenas para ser elegante na linguagem.
TÓ ZÉ FERREIRA – Se pensarmos em termos da existência de produção ou de obras que deveriam ser difundidas ou divulgadas, é claro que existe um pequeno mundo em Portugal à espera de ser ouvido. Posso citar a actividade do músico-compositor Miguel Azguime com o seu festival (anual) Música Viva. Estou ciente das dificuldades de logística em termos de organização. Para além da questão financeira, há a questão de pessoal técnico motivado. Um primeiro passo seria a produção de um calendário dos eventos que se realizam pelo país e sem restrições de géneros ou estéticas, talvez nos moldes da Electronic Music Foundation.
Um dos maiores problemas é que, paradoxalmente, para um país tão pequeno – não em termos físicos, mas no número de praticantes – se saiba tão pouco das actividades dos músicos, compositores, intérpretes, DJ, etc. Creio que um melhor contacto entre “almas gémeas” seria um bom catalisador de eventos. A mencionada Electronic Music Foundation organizada por Joel Chabade dispõe na Internet de calendários, glossários, informações diversas e CD. O próprio festival Música Viva na edição deste ano promove um concurso de obras electroacústicas a nível nacional.
MIGUEL SÁ – Visto Portugal ser um país periférico, apenas com um súbito e não muito provável florescimento de novos projectos, o surgimento de uma publicação especializada de qualidade e um significativo incremento nos concertos / ciclos de música electrónica, que promova o encontro com e entre músicos internacionais, se pode alimentar uma cena electrónica consistente, que abra caminho a uma edição discográfica estimulante e regular.

O Paradigma Aphex Twin
FM – Nesta transição de milénio, o termo “electrónica” impôs-se” como “médium” universal. Qual o ponto da situação na relação entre uma electrónica mais conceptual (com “background” na música contemporânea, música industrial, minimalista, ambient, kozsmischerock, etc.) e a música de dança.
MIGUEL SÁ – A música de Richard D. James (Aphex Twin, Poligon Window, entre outros disfarces) é o paradigma da difícil definição de fronteiras na actual música electrónica e vital para a compreensão dos géneros musicais que circundam a música de dança urbana. Quem acompanha a sua obra tem assistido à quebra regular de regras formais. Trabalhando com gira-discos, mesas de mistura, computadores e “instrumentos” por ele criados através da modificação dos circuitos electrónicos das suas máquinas, e usando como matéria-prima fontes sonoras processadas de LP, CD, ficheiros de computador, fontes acústicas e eléctricas.
CARLOS ZÍNGARO – Não poucos praticantes da música de dança foram buscar, manipular, referir, elementos experimentais e divulgados nas áreas mais conceptuais, assim como também se assiste ao inverso: a entrada do DJ, do beat e de outras preponderâncias da dance nos conceptualismos mais alargados. Convém, no entanto, assinalar que este tipo de mestiçagens se verifica em realidades mais abertas e universalistas. Em Portugal, o que é pop continua orgulhosamente a sê-lo e o sério permanece de costas voltadas para os outros sons, cada um no seu minúsculo cubículo…
TÓ ZÉ FERREIRA – No limite, qualquer gravação, da captação à difusão, digam o que disserem os puristas da música acústica, está dependente de meios electrónicos. Existem. Simplificando, duas atitudes: uma de engenharia, em que o sistema deve ser o mais neutro possível e outra em que a cor do sistema é causadora de estímulo para a criação; no extremo, o sistema gera o próprio som.
Distinções entre géneros de músicas são cada vez mais difíceis de concretizar. Impulsionados pela sua própria actividade, os criadores de música de dança acabam por se ligar a uma corrente pluralista electroacústica. Certas peças de dança lembram-me formalmente algumas experiências da música concreta dos anos 60.

“ À espera que o ‘load’ funcione”
FM – O computador e o “software” composicional são factores de normalização. Um músico como Paul Schütze recusa liminarmente a utilização de “software”, alegando que o resultado sonoro denuncia o programa utilizado.
CARLOS ZÍNGARO – esa afirmação de Schütze é muito relativa. Talvez fazendo um “blindfold test” às diversas composições alegadamente assistidas por computador, chegássemos a conclusões interessantes… Quando o “software” é denunciado na composição, estaremos talvez a referir a sua utilização mais primária e “democrática”… São infelizmente raros aqueles que sabem ou se interessam por perverter/subverter as máquinas ou os programas! Em contrapartida, a tecnologia permitiu que o compositor se tornasse mais num “performer”/intérprete. Com alguns riscos… Se nos antigos concertos de electroacústica passávamos horas a olhar para uma série de colunas de som num palco, agora encontramos alguns senhores sentados atrás de um computador, com um ar geral de erudito enfado, carregando em teclas que não vemos e à espera que o “load” funcione.
TÓ ZÉ FERREIRA – Como alguém com experiência em programação, compreendo o ponto de vista acima apresentado. É verdade que a implementação de uma ideia sobre a forma de programa reflecte escolhas e a habilidade de quem o faz. Um determinado programa ou processo tem sempre um “som” próprio. É de facto no campo de organização dos sons que a utilização de programas se pode tornar problemática. Mas tal só acontece se o aceitarmos como aquilo que não são – “soluções” universais para problemas de composição. Solução óbvia seria implementar-se programas escritos pelo próprio compositor.
FM – O “sampler” – muleta, fábrica de sons, arquivo… Veio democratizar a criação electrónica, vulgarizando-a ou, pelo contrário, desafiar a criatividade dos músicos?
CARLOS ZÍNGARO – Esta apregoada democratização veio colocar diferentes questões aos que querem fazer música. Todos sabemos que basta carregar num botão para fazer música… E vivam as benesses das facilidades consumistas! Continuo a tocar um instrumento tão antiquado como o violino e, apesar de fazer electrónica há mais de 20 anos, continuarei a ser cuidadoso (cínico?) em relação às “novas descobertas”, que são fáceis, baratas e dão milhões…
MIGUEL SÁ – O “sampler” permitiu um novo olhar sobre o passado, colocando todos os sons do mundo ao alcance de quem os manipula, deixando deste modo de ser determinante o modo de reproduzir o som. Hoje em dia, a música pode ser feita em casa, mas sem prescindir do conhecimento e da intuição.

A riqueza da “imprecisão”
FM – Digital ou analógico, eis a questão. O pós-rock recuperou os sintetizadores analógicos (Moog, ARP, Korg). E que dizer quando um antepassado dos próprios sintetizadores, como o theremin, ganha de novo protagonismo na produção electrónica mais recente?
MIGUEL SÁ – Desde 1906, altura em que foi criado o primeiro instrumento electrónico, o Telharmonium, e feita a primeira emissão via rádio, foram surgindo os meios para a criação electrónica: Ondes Martenot (1928), gravação estéreo (1930), sintetizador RCA (1955), “sampler” analógico mellotron (1965), sintetizador Moog (1965), gravador de pistas (1966), sequenciador digital Roland MC-8 (1977), “sampling keyboard” Fairlight CMI (1979), “compact disc” (1980), MIDI (1983). O “software” composicional, assim como os exemplo anteriores, veio expandir a capacidade de criação de novos recursos tímbricos. O seu surgimento em nada impede ema saudável coabitação com a invenção de 1920 de Leon Theremin.
CARLOS ZÍNGARO – É perfeitamente possível obter as mais diversas sonoridades analógicas com a recente tecnologia digital. O que se passa é que – como de costume com a música de consumo – mais uma moda atravessa inúmeras discussões técnicas e temáticas. A tecno descobriu os velhos monstros analógicos assim como “descobriu” formas de fazer música já praticadas há vinte e tal anos. Nada mais lógico que utilizar os mesmos meios, as mesmas máquinas, até porque sempre dão uma certa “patine” e “look”… Interessante ver superestúdios “hi-tech” com a mais sofisticada tecnologia digital, gastarem fortunas em periféricos digitais que irão dar uma “cor analógica” (inclusive ruído) à mistura final… O cúmulo dos “modismos” e outros “ismos”.
Pessoalmente continuo a manipular o meu velho ARP 2601, adquirido em 1978, e que tem agora um valor museológico acrescido. É uma dor de cabeça se comparado com a facilidade de tecnologias mais recentes, mas continua a ser um ruídos monstro sagrado!
TÓ ZÉ FERREIRA – Creio que é mais nostalgia do que qualquer impossibilidade dos sistemas digitais actuais. No entanto, existem talvez outras razões para o retorno da popularidade destes sistemas. Uma forma de onda triangular produzida por um gerador analógico é mais ou menos impura – com bastante harmónios adicionais – o que, combinado com os filtros, gerava os tão procurados sons. Conseguem-se representações mais controladas sob a forma digital, mas perde-se um pouco a riqueza da imprecisão. Mas claro que, com programação e sistemas digitais flexíveis, se conseguem também sons extremamente ricos e creio que quase todos os sintetizadores actuais são digitais de uma maneira ou de outra. Quanto o theremin, a sua expressividade como instrumento advém muito do seu interface, sendo necessário ter alguma prática, como, por exemplo, num violino, para poder retirar a sons e/ou gestos expressivos satisfatórios.
FM – Quais os discos de música electrónica que considera mais importantes ou que mais o influenciaram?
CARLOS ZÍNGARO – MEV (Musica Electronica Viva, com Richard Teitelbaum, Alvin Curran, Frederic Rzewski), John Cage, John Chowning, Charles Dodge, Pierre Henry, Max Matthews, Ilhan Mimaroglu, David Tudor.
TÓ ZÉ FERREIRA – As primeiras composições de Karl Heinz Stockhausen, como “Gesang der Junglinge” e, de Bernard Parmegiani, “De Natura Sonorum”. Como influência recente, as composições da jovem Natasha Barrett.
MIGUEL SÁ – Kraftwerk, “Autobahn” (1974); Negativland, “Escape From Noise” (1988); Oval, “Diskont 94” (1995). Nos Cluster, Coil e Aphex Twin, o brilhantismo reside no conjunto da sua obra.

10 DISCOS FUNDAMENTAIS
1.NUNO CANAVARRO: Plux Quba-Música para 70 Serpentes (Ama Romanta / Moikai, 1988)
2. TÓ ZÉ FERREIRA: Música de Baixa Fidelidade (Ama Romanta, ed. em vinilo, 1988)
3. CARLOS MARIA TRINDADE & NUNO CANAVARRO: Mr. Wollogallu (União Lisboa, 1991)
4. TELECTU: Evil Metal (Área Total, 1992)
5. JOÃO PEDRO OLIVEIRA: Electronic and Computer Music (Numérica, 1993)
6. CARLOS ZÍNGARO: Musiques de Scène (Ananana, 1993)
7. NO NOISE REDUCTION: The Complete No Noise Reduction (Moneyland, 1995)
8. NUNO REBELO: M2 (Ananana, 1996)
9. VÍTOR JOAQUIM: Tales From Chaos (Ananana, 1997)
10. ZZZZZZZZZZZZZZZZP!: Ficta 003 (Ananana, 1998)