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Pascal Comelade – Entrevista a propósito de concerto em Lisboa

Pop Rock

1 de Novembro de 1995
ENTREVISTA A PASCAL COMELADE

MEMÓRIAS DE UMA BAILE DEGENERADO


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Pascal Comelade é único e inclassificável. A sua música gira em torne de géneros esquecidos ou menosprezados. “Música de baile degenerada”, como ele próprio a define. Embora não procure ser o “Jimi Hendrix do piano de brinquedo”, as suas notas remetem para um universo de magia e de anacronismos. Miniaturas musicais moídas por uma máquina de fazer café.

Os seus álbuns são colecções de gravuras cobertas pela “patine” de outras eras. Canções esquecidas de Robert Wyatt, Jonathan Richman, Tim Buckley ou dos Yardbirds encostam-se a uma partitura nostálgica de Nino Rota ou a um arrebatamento romântico de Consuelo Velásquez. Pascal Comelade folheou para o PÚBLICO as páginas do seu álbum de recordações.
PÚBLICO – Num dos seus álbuns, “Détail Monochrome”, há um tema intitulado “Petite mélodie”. O conceito de “miniaturização”, desempenha um papel central no seu método de criação?
PASCAL COMELADE – Imagino, como “miniatura”, uma certa forma de pequena arquitectura dos arranjos musicais, um certo despojamento (ir ao encontro do essencial) que pode ser encontrado na época dourada do rock’n’roll inglês, nos Kinks ou na sublime utilização das quatro pistas em “Sergeant Peppers”. Daí a minha tendência para compor temas muito curtos. Outra referência é uma compilação histórica, “Miniatures” [N.R.: organizada por Morgan Fisher], com peças que não ultrapassam um minuto, incluindo a esplêndida “História do rock’n’roll”, por um elemento dos XTC. Há ainda o famoso mal-entendido do “minimalismo”. Dever-se-á falar de “minimalismo” a propósito da pré-história do rock’n’roll, em que era utilizado um mínimo de instrumentação (baixo, guitarra, bateria reduzida)? E quando se toca com um mínimo de notas? Houve alguém – Satie? – que disse: “Pode fazer-se tudo com um ‘fá’!” Refiro ainda a escola de “minimalismo” inglês, na época da série “Obscure”, de Brian Eno, com os primeiros registos de Gavin Bryars, Harold Budd, Michael Nyman, etc. Esquece-se facilmente também o trabalho de Moondog sobre o jazz e a música clássica. E John Cage, evidentemente. Enfim, pode pôr-se em prática um “resumo musical”, através da digestão, depois de uma filtragem? Música para máquina de fazer café?
P. – A mesma ideia está presente num título como “Haikus de Piano”, o “haiku” entendido como miniatura poética que ultrapassa a simples lógica racional. Serão as suas canções “haikus” musicais?
R. – Existe efectivamente uma influência literária mas, mais do que o “haiku” japonês, trata-se de um paralelo com o leitor que não leria mais do que a primeira ou a última página de um livro, o resumo, o prefácio ou o título…
P. – E a utilização de instrumentos de brinquedo, tem de facto necessidade da sua sonoridade? A música não sobreviveria sem eles?
R. – Os brinquedos são utilizados pela sua sonoridade, misturados ou não com instrumentos convencionais. Não tenho, à partida, qualquer teoria para justificar a sua utilização. Tento tocar num piano de brinquedo como se fosse um piano a sério. Para um pianista limitado, como é o meu caso, torna-se um exercício físico bastante interessante. Mas não há uma utilização sistemática. O mais importante é a prática musical, o tratamento e o resultado final. Não procuro ser o Jimi Hendrix do piano de brinquedo.
P. – O “El Primitivismo” de outro dos seus álbuns?
R. – Primitivismo, no sentido de uma prática instintiva, de ouvido, de amadorismo, de autodidactas ou de situações ligadas ao acaso. Trata-se simplesmente da utilização intemporal de músicas populares de todos os tempos, sem a perspectiva de coleccionismo nem a triagem de um esteta: jazz antigo, rock’n’roll dos anos 60, músicas de filme, canção italiana, por exemplo, mas sem me limitar a um passado nostálgico.
P. – A denominada “música mecânica”, das caixas de música e dos realejos, faz parte do seu imaginário musical?
R. – A influência maior verifica-se ao nível das percussões. A “música mecânica” ancestral não é mais do que Kraftwerk acústico! As músicas de feira, de circo ou de fanfarra têm a capacidade de poetizar o instante.
P. – A sua música é inseparável dos títulos. Há alguma ligação directa entre ambos, ao nível da composição?
R. – Puro método de paranóia-crítica! [N.R.: uma invenção do surrealista Salvador Dali.]
P. – “Bel Canto” é o título de um dos seus álbuns e a designação do seu grupo actual, apesar de a sua música ser quase exclusivamente instrumental. É o gosto pela ironia e pelo paradoxo?
R. – É isso exactamente! A vingança de um afónico perpétuo!
P. – Embora camuflado, o rock’n’roll também integra o lote das suas referências, ou trata-se ainda aqui de um paradoxo?
R. – Tento não passar a vida a acumular citações. Procuro fabricar artesanalmente a minha própria linguagem. As referências e os gostos pessoais não são forçosamente influências e vice-versa. De qualquer forma, não é um paradoxo, sou de facto um velho fã de rock’n’roll, de Elvis a Alan Veja, dos Pretty Things aos MC5. Por outro lado, gosto dos músicos que souberam criar um discurso individual, idiossincrático e único, como Thelonious Monk, Sun Ra, Captain Beefheart ou Robert Wyatt.
P. – Por que motivo grava tantos álbuns de uma compilação que, em última análise, não o são, uma vez que mistura temas antigos com originais e novas versões? Para o público, pode ser um bocado confuso…
R. – Aprecio bastante essa noção de “confusão”. Eu próprio sou confuso! Há muito tempo que deixei de analisar ou teorizar sobre a minha prática musical. Os únicos aspectos em relação aos quais permaneço crítico são a encenação, as leis do espectáculo e de distribuição da mercadoria. Não sou um cínico, mas procuro distinguir o “bom” momento do “melhor” momento. Dá muito trabalho, não dá? Enfim, não me preocupo em saber o que é novo e o que é velho.
P. – “Traffic d’ Abstractions”, ainda o título de um dos seus álbuns, pode ser um resumo perfeito de toda a sua música. Concorda?
R. – Os títulos dos álbuns são, em cada caso, uma tentativa de qualificar a tal prática musical que, no fundo, não é mais do que música de baile degenerada. Daí “Traffic d’ Abstractions”, “Cabaret Galactique”, “El Primitivismo” ou “Détail Monochrome”…

PASCAL COMELADE COM BEL CANTO ORCHESTRA, SÁBADO, DIA 4, TEATRO DE SÃO LUIZ, LISBOA, 22H00



Future Sound Of London – Entrevista

Pop Rock

14 de Junho de 1995

Future Sound of London explicam “Lifeforms”

“Não é a tecnologia em si que é importante”


fsol

“Lifeforms” e “ISDN” são dois mosaicos significativos da música electrónica actual por um dos seus criadores mais ambiciosos, os Future Sound of London. Entre as actividades do grupo, contam-se um programa de televisão de genérico Ensinamentos do Cérebro Electrónico, onde valorizam o poder da palavra escrita e falada. Na ligação da electrónica aos meios de informação vêem o expoente máximo do entretenimento para os anos 90. Enquanto chamam uns aos outros “gelatina invertebrada”.

Garry Cobain explicou ao PÚBLICO a biologia das “Lifeforms” que o grupo elabora em estúdio, os processos dessa mesma criação e as implicações, estéticas e morais, que dela resultam. Os Future Sound of London querem ser algo mais que um simples grupo de música e transformar-se num sistema global de informação.
PÚBLICO – As imagens desempenham um papel tão importante como o da música na estética global dos Future Sound of London?
GARRY COBAIN – Sim, vão até um pouco mais longe. Se ouviu o álbum “ISDN”, saberá que a música foi transmitida via rádio para vários pontos de globo. Neste momento estamos a fazer transmissões de televisão e a desenvolver um programa chamado Teachings from the Electronic Brain [Ensinamentos do Cérebro Electrónico].
P. – “Lifeforms” sugere processos biológicos, formas de vida criadas no computador…
R. – O que queríamos dizer com “Lifeforms” tem mais humor do que isso, embora tenha começado como uma coisa séria. Tínhamos deixado para trás o circuito dos clubes e passámos a prestar mais atenção a nós próprios e ao que nos rodeava. Numa perspectiva como que microscópica. Ao ponto de tudo o que observávamos, em nós ou no estúdio onde gravávamos, ganhar características próprias, como em “Spineless jelly”, nome que demos a uma determinada forma de vida. Passámos a chamar-nos uns aos outros “spineless jellies” [geleia ou gelatina sem espinha, invertebrada] sempre que algum de nós dava qualquer sinal de fraqueza. “Hey, you, spineless jelly!” O disco não trata exactamente de formas de vida do exterior, mas mais uma analogia sobre formas de vida sintéticas que criávamos no meio restrito em que nos movimentávamos.
P. – São lícitas as comparações entre a música do grupo e o som das bandas cósmicas alemãs dos anos 70, como os Tangerine Dream?
R. – Quando começámos a “samplar” sons, o que continuamos a fazer, ouvíamos bastante música além da electrónica. O nosso som relaciona-se com toda a história da música. Aproveitamos todos os “momentos de grande som”, seja na televisão ou sons naturais, de rock ou de jazz, ou do psicadelismo dos anos 70. Nesta perspectiva, somos bastante mais livres que um grupo como os Tangerine Dream.
P. – Por falar em psicadelismo, o uso de drogas facilita de alguma maneira a percepção da vossa música?
R. – Digamos que encorajaria qualquer pessoa a experimentar seja o que for desde que isso a ajudasse a diversificar o mais possível as suas opiniões e a sua própria consciência. Mesmo se isso significar algo tão horrivelmente “careta” como levar o pensamento analítico a um extremo. As drogas são apenas um meio para fazer estremecer o sistema de cada um. Acho isso bastante positivo.
P. – Não se dará o caso de estarmos a viver tempos perigosos para as viagens psicadélicas? É que a poluição em redor é muita, mesmo a nível mental…
R. – Sim, demasiado pensamento, demasiadas “head trips” podem ser perigoso. Por exemplo, resultarem em algo como “Lifeforms” [risos]. Mas é uma matéria complexa…
P. – Concorda que a música tecno ou “house” – com a utilização “científica” de determinadas pulsações rítmicas e mensagens subliminares – pode servir de ferramenta para a manipulação dos jovens que se deixam possuir pelo transe da dança nas discotecas?
R. – Nos Future Sound of London chegámos a uma fase em que nos interessamos bastante pela palavra falada, pela palavra com um ritmo. É uma forma determinada que faz parte de uma evolução constante. Agora que estamos a fazer televisão, estamos a aplicar a nossa criatividade em fazer passar mensagens através da palavra. E, na “net web”, através da palavra escrita. Também estamos a escrever um livro. Todas estas coisas tornaram-se muito, muito poderosas. Vivemos numa cultura que cada vez mais aceita e integra a música instrumental. De tal forma que tanto a palavra falada como a palavra escrita estão, de uma forma quase subliminar, a ganhar cada vez mais poder. É neste aspecto que estamos a investir actualmente, na programação de discursos.
P. – Acabou de se referir a uma “evolução”. Qual é o objectivo último dessa evolução?
R. – O objectivo, no nosso caso, é tornarmo-nos um sistema de transmissão global que esteja receptivo e, ao mesmo tempo, exponha as nossas ideias e os nossos modelos. Um sistema que projecte a “sopa electrónica” a uma audiência maciça. Acreditamos que a ligação da música electrónica a outros “media”, como a rádio, a televisão ou as superauto-estradas da informação, é verdadeiramente o meio de entretenimento mais forte dos anos 90. Acreditamos que podemos atingir algo que fique para a História, um momento crucial no campo do entretenimento. Não é a tecnologia em si que é importante. Quando a tecnologia se torna demasiado importante é porque algo correu mal.
P. – Qual é o lugar, nesse sistema, para a alma humana, se é que acredita na sua existência?
R. – Sim… Somos bastante crentes nesse aspecto. Damos a ver as nossas almas de muitas maneiras diferentes. É bastante interessante, como se revelássemos centenas de almas, em vez de uma só. Podemos jogar com centenas de opiniões, centenas de contradições, centenas de vozes e rostos diferentes. Na chamada idade da experiência, é o mais interessante que pode haver.



Um Debate Sobre Música Portuguesa – “O Futuro, Já!” – Artigo + Entrevista

Pop Rock

8 de Novembro de 1995

Um debate sobre música portuguesa

O FUTURO, JÁ!


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Há 20 anos havia uma bandeira e um exemplo a seguir, o de Giacometti, que recuperou para um país o rosto perdido da sua identidade. Hoje, há trabalho feito e um futuro que começa a ser trilhado com segurança. Foi a obra pioneira do musicólogo corso, nos anos 60, e dos grupos de recolha como o GAC, Almanaque, Brigada Victor Jara ou Raízes, na década seguinte, que permitiu avançar até aos resultados que hoje se conhecem, materializados em discos como “Terreiro das Bruxas”, dos Vai de Roda, “Todos os Dias”, de Amélia Muge, “Traz os Montes”, de Né Ladeiras, “Danças e Folias”, da Brigada, e “Invasões Bárbaras” dos Gaiteiros de Lisboa. Discos capazes de romper com o medo de avançar e de situar a “folk” nacional ao lado dos melhores da Europa. Um presente risonho para a música portuguesa de raiz tradicional que promete prolongar-se pelos tempos mais próximos, nos álbuns, já anunciados, dos Realejo, Cramol, O Ó que Som Tem, bem como nos novos dos Vai de Roda e de Amélia Muge. O PÚBLICO decidiu convidar alguns dos protagonistas desta nova idade de ouro da MPP para fazerem o ponto da situação. Acorreram à chamada Amélia Muge, José Martins (companheiro musical de Amélia e O Ó que Som Tem), Tentúgal (Vai de Roda), José Manuel David (Almanaque e Gaiteiros de Lisboa) e Carlos Guerreiro (Gaiteiros de Lisboa). Disparou-se o tiro de partida com a memória de Giacometti para se chegar à conclusão de que, se há já alguma obra feita, outra tanta está ainda por fazer. Pelo meio desfizeram-se algumas ilusões e lançaram-se alguns ataques. Melhor ainda: preconizaram-se soluções. Bom sinal: num cenário em que até há bem pouco a estagnação predominava, separaram-se as águas, já há os bons e os maus. Sinal de que a tradição está viva e de armas na mão

“DIFÍCIL CANTAR POR CIMA DE UMA DEBULHADORA MECÂNICA”

Escolhidos alguns tópicos, seleccionámos, de uma longa conversa, as declarações que nos pareceram mais significativas de cada um dos cinco músico presentes. A ideia é relançar a discussão sobre o passado, o presente e o futuro da música tradicional, ou de raiz tradicional, portuguesa. Com a figura exemplar de Michel Giacometti a servir de inspiração e pano de fundo.
P. – O espólio de Giacometti. Há ainda trabalho de arqueologia por fazer ou será tempo de trabalhar esse mesmo espólio, revitalizá-lo, manipulá-lo como ponto de partida para experimentações sobre os materiais tradicionais?
Carlos Guerreiro – Quando chega a altura de trabalhar a música tradicional portuguesa é ao Giacometti que as pessoas vão. O seu trabalho não só e importante por aquilo que conseguiu gravar e recolher, como pelas pistas que forneceu. Houve muita gente, como o José Manuel David ou o José Alberto Sardinha, dos Almanaque, ou eu próprio, que agarrava num gravador manhoso e ia por aí fora só pelo prazer de ouvir as pessoas cantar. Descobrimos que havia outras vias, coisas que ainda estavam vivas, formas estranhas de cantar a música portuguesa, não poluídas.
José Manuel David – Foi também um escape para os músicos urbanos, que, de repente, descobriram que havia música portuguesa diferente nas diferentes regiões do país. Hoje em dia, como as coisas estão, para fazer recolhas é preciso ter alguma formação, não basta ter um gravador, quando se sabe que há musicólogos que trabalham em África e aprendem as línguas nativas. Nós nunca fizemos bem isso, sabíamos que o Giacometti tinha estado nos sítios e íamos com a nossa boa vontade e ingenuidade ouvir o que as pessoas tinham para nos mostrar. Tudo isto implicou uma mudança, em termos sociais, em pessoas como nós, que começaram a ouvir música com os Beatles.
P. – Hoje o trabalho de recolha faz tanto sentido como duas décadas atrás?
José Manuel David – A música tradicional não é um objecto estático. Como tal, evolui, embora dentro de determinados parâmetros. Sociais e musicais. Por exemplo, um tocador de cavaquinho que toca um instrumento que, se calhar, nem afina bem, mas encontra um construtor que constrói melhor, melhorando desta forma o som. O que Giacometti e outros como ele fizeram foi um corte sincrónico na realidade, na tentativa de descobrir comos as coisas estavam num determinado momento. Hoje já não se canta nem toca da mesma forma que no tempo de Giacometti. Estou a lembra-me, por exemplo, da gravações da Ti Chitas, feitas pelo Giacometti, em que ela canta de uma maneira, nas mais antigas, enquanto em gravações mais modernas já canta de outra.
Amélia Muge – Essa mudança tem que ver com a música, com as pessoas e connosco próprios. Aquilo que o Giacometti poderá ter representado para nós há dez anos se calhar já não é a mesma coisa que representa hoje. A minha primeira ligação foi com as músicas em si, só muito mais tarde é que consciencializei o facto de haver um senhor por trás que fizera as recolhas. Era a necessidade de perceber onde é eu a nossa música se insere em relação a um arco mediterrânico, um arco céltico, ou mesmo um arco Índico.
Tentúgal – Como eu dizia há uns tempos, há que retirar as aspas ao folclore. Lembro-me do tempo do “serviço cívico” no qual o trabalho de recolhas foi feito pelo Giacometti. Uma semente que foi deitada e hoje poderia ter alguma continuação. Aliás, não é só o espólio de Giacometti, falta deitar cá para fora o espólio do Virgílio Pereira. E onde é que está o espólio do Armando Leça? Não se sabe! Coisas do Artur Santos, porque é que não se reeditam? E o material de Ernesto Veiga de Oliveira, fechado no Museu de Etnografia?
P. – As recolhas de Giacometti libertaram os músicos de uma geração, que é a vossa, da responsabilidade de fazerem eles próprio esse trabalho, de manter viva a memória de um povo? Há ainda o paradoxo dos grupos novos que fazem “recolhas” a partir das gravações dos grupos mais velhos…
Tentúgal – Posso dar um exemplo bastante concreto. Houve um grupo, do qual não vou dizer o nome, que há alguns anos editou um trabalho em álbum onde canta um malhão exactamente igual ao que se encontra no primeiro disco do Vai de Roda. Chegaram ao cúmulo de dizer que era recolha, metendo a mesma selecção de quadras que eu fiz, o mesmo “intermezzo” que eu criara e não existia na recolha [Amélia Muge, num aparte: “Enganaste-os bem!”], as mesmas pausas do bombo!… O problema está em que não existe o tal espólio arquivado, quer em partitura quer em áudio, ao qual qualquer pessoa possa ter acesso. Só assim se poderá distinguir entre o que é tratamento ou adulteração e o que é genuíno.
Carlos Guerreiro – Já experimentei mostrar as recolhas do Giacometti aos meus alunos e eles “vomitam”! Aquilo é inaudível para um miúdo que liga o rádio e ouve coisas cheias de som, rock e não sei quê. Nós, no tempo em que começámos a pegar nas recolhas do Giacometti a trabalhá-las, deparámos com uma coisa de tal maneira nova que até para nós era um mergulho no desconhecido. O nosso sentimento era de máximo respeito. Inclusive, nos nossos primeiros trabalhos, dávamo-nos ao luxo de nos enganarmos nos mesmos sítios, de tocar mal muitas vezes aquelas coisas feitas em instrumentos imperfeitos, meio desafinados. Depois houve tentativas de tornar a coisa mais digerível, mas sempre com grandes preocupações de pureza.
P. – Existirá um ponto de não retorno, nesse movimento de afastamento dos espécimes originais? Um ponto em que o termo “tradicional” se poderá tornar abusivo? Estamos a lembrar-nos dos discos dos Gaiteiros, da Né Ladeiras, mesmo do Ó que Som Tem…
Amélia Muge – Eu própria me interrogo muito sobre o que é genuíno ou não. Ponho em causa uma série de coisas a esse nível. Sinto-me a viver numa época onde, se é verdade que há uma enorme preocupação e descoberta disso que é o “tradicional”, há também uma enorme abertura ao mundo. Porquê recusar as novas tecnologias? Temos a liberdade de ser pertença dos mundos onde queremos estar. E a responsabilidade.
José Martins – Eu traria para aqui uma questão talvez mais técnica. Vou ouvir um tema recolhido pelo Giacometti. OK. O que é que está ali, o que é que eu posso fazer perante aquilo? Posso achar que é um tema maravilhoso e apetecer-me tocá-lo, exactamente como ele é. Ou então digo assim: espera lá, eu conheço música da Europa, ou de África, mas isto não conheço, é diferente de tudo. O que é que é diferente? Será pela combinação das harmonias, pelo tipo de linhas melódicas, pela interpretação que é dada ou pelos ornamentos? Esses aspectos que caracterizam a música portuguesa, da qual determinada recolha é um exemplo, é que me podem servir para fazer uma composição, que já não tem nada a ver com aquilo, mas onde se encontra o tipo de ritmos que lá está, a mesma forma de cantar, idêntico esquema de relação entre a melodia e a harmonia. Aí pode dizer-se que é música moderna, não tradicional, e, no entanto, música portuguesa de raiz tradicional, porque mantém as mesmas características musicais daquela coisinha ingénua cantada intuitivamente pela velha que ouviu cantar o pai ou o avô. É isto que faz a ponte entre poder-se continuar a evoluir, compondo, e dizer que é música portuguesa, porque se estão a desenvolver características que só existem aqui e em mais parte nenhum do mundo.
Amélia Muge – E há a liberdade para se poder fazer isso. A seguir ao 25 de Abril, havia um peso muito grande nos grupos. Dizíamos: alto lá! Há aqui coisas que as pessoas nunca ouviram, um lado da nossa cultura que é fundamental e é preciso dar a conhecer. Hoje estamos libertos de uma certa bandeira. Não quero dizer que a postura deva ser menos política, mão os ingredientes já não são os mesmos, estão despidos de circunstancialismos.
José Martins – É como um poeta que hoje em dia faz uma poesia que um estudioso reconheça como portuguesa. É evidente que vai estudar e ler Camões, mas não vai copiar os poemas. Se calhar, vai é apanhar a maneira como ele fala do amor, o tipo de rimas que usa, o aproveitamento do som da língua…
P. – Se o primeiro passo é o da interiorização do que é especificamente português, o segundo será o de estabelecer elos e encontrar relações com outras tradições do mundo?
Tentúgal – Mas mesmo esse primeiro passo ainda não foi dado!
José Martins – Até porque a nossa música é, como se sabe, um mescla de “n” culturas. A gente sabe, na Química, que a tabela de elementos é finita. No entanto, há milhares de compostos químicos diferentes. O tipo de combinação de ingredientes, neste caso culturais, que deu origem ao que chamamos cultura portuguesa é uma combinação particular, que, noutro país, resultou em algo completamente diferente. Aqui ao lado, em Espanha, também passaram os celtas, os vândalos ou os mouros, mas o resultado foi parar a outro sítio. Ninguém confunde a música portuguesa com a música espanhola, a não ser um chinês, que ouve um fado e acha que é parecido com uma sevilhana a chorar!…
Tudo o que tem sido dito é verdade, mas demora anos a pôr em prática. Para um jovem músico de hoje, menos paciente, que se interessa e quer tocar música portuguesa de raiz tradicional, essa aprendizagem poderá parecer exasperante e desmotivadora. Há outro lado por onde ele possa começar?
Tentúgal – Um conselho prático: varrer completamente os professores que têm! O problema, neste momento, é de mentalidades. Assiste-se hoje ao fenómeno dos “pimbas” e do “bicho”. A educação – como conjunto de escola, mais sociedade, mais pais – leva actualmente a uma situação de amorfismo galopante.
Carlos Guerreiro – Antes havia a tal bandeira. Depois, socialmente, estava tudo receptivo. Fosse o que fosse que a gente fizesse, as pessoas absorviam. Ainda por cima havia a Rádio Renascença ao serviço da classe operária, dos camponeses e do povo trabalhador, que passava tudo o que a gente fazia… Não tivemos de lutar muito para impor o nosso tipo de música ou uma determinada opção estética. Na altura era uma novidade para toda a gente. Sobretudo, nós estávamos imbuídos de uma grande missão. Deus tinha-nos imbuído da missão de salvar a música portuguesa. Estávamos mesmo convencidos disso! [Risos.] Era uma tarefa ciclópica, universal! Claro que não salvámos coisa nenhuma. Até porque a música tradicional não existe como bem de consumo. Que eu saiba, para aí há 50 anos, não havia ninguém numa aldeia que se sentasse simplesmente a ver um gajo a tocar e depois batesse palmas. A música tinha sempre uma função, ou era música de trabalho, ou religiosa, ou de dança, sempre com uma participação do colectivo. A partir do momento em que se introduz a maquinaria nos campos, torna-se difícil cantar por cima de uma debulhadora mecânica. No mínimo fica-se rouco. Há, portanto, coisas que começam a morrer naturalmente. Indivíduos como o Giacometti, digamos que tiraram uma alga de dentro da água e puseram-na cá fora a secar. Ela está liofilizada, para alguém, em qualquer altura, poder pegar nela e pô-la de molho outra vez, para ver como funciona. Mas sabe-se que, terminada a função, o órgão tem tendência para morrer. Resta-nos matéria-prima gravada. Não precisamos de ser botânicos para fazer uma salada de fruta.
P. – Não seria um trabalho interessante correr no sentido inverso? Procurar sensibilizar o jovem músico do campo para perpetuar a tradição?
Carlos Guerreiro – Tal acontecerá naturalmente se, na sua comunidade, ele tiver condições para isso. Por exemplo, parece que está a acontecer um ressurgimento da gaita mirandesa. Existem putos a construir gaitas, uns melhor outros pior, mas isso não vem da cidade, nem por decreto, nem dos discos que nós editamos!
José Manuel David – Vamos é ver o que eles vão fazer com elas, se não vão aparecer para aí outros Delfins, só porque um dos gaiteiros se chama Delfim! [Risos.]
Tentúgal – A esse nível, as melhores experiências estão a vir do interior. No caso da gaita, está a recuperar-se aquilo que se perdeu no século XV, quando a gaita-de-foles era o principal instrumento português e havia associações de gaiteiros com um reportório próprio. Onde é que isso pára? Era um bom estudo para se perceber como Portugal perdeu isso e outras coisas.
José Martins – O puto que vive na aldeia já tem acesso aos meios de comunicação [Amélia Muge, noutro aparte: “Meios de descomunicação!”]. Se calhar tem o seu “walkman” portátil. Ele ouve rock, pop jazz e clássico que passam na rádio e na televisão. Se houver uma produção de raiz portuguesa, mesmo afastada dos temas tradicionais, ele aí diz: “Olha, uma música tão porreira feita com este instrumento que eu tenho aqui ao lado!” Pode funcionar como “feedback” e fazer-lhe ver que, afinal, não se trata de uma velharia que o avô tinha guardado na arca do sótão. Depois ele poderá até tocar um tema dos Gaiteiros. Voltamos à questão da não estaticidade. Se calhar, daqui por dez anos, alguém que vá a essa aldeia fazer recolha já encontra um tipo de 50 anos a tocar temas em gaita-de-foles que ele diz serem tradicionais, mas que provavelmente foram compostos por um grupo chamado Gaiteiros de Lisboa.
Carlos Guerreiro – A maior parte do reportório de qualquer gaiteiro ou tocador de cavaquinho é composto por coisas da rádio. Então a seguir ao 25 de Abril, chegavas ao pé de um pastor que tocava a sua flauta e até ele deitar cá para fora qualquer coisa interessante, pura, original ou autêntica, tinhas que levar com desde as “Pombinhas da Catrina” até ao “Avante camarada!” e o “Companheiro Vasco”. Com a mesma técnica e entusiasmo. Como se aquilo fosse mesmo deles. Era uma força cultural, que eles ainda tinham, de conseguir absorver, assimilar e devolver tudo como se fosse música sua.