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Hector Zazou – entrevista

Pop Rock

28 de Setembro de 1994

“COMO UM ESTUDO GEOLÓGICO”

Hector Zazou regressa a Portugal. Desta vez, trazendo consigo Harold Budd e a ex-vocalista dos Passions, Barbara Gogan. Autor de uma obra diversificada, Hector Zazou explicou ao PÚBLICO o sei interesse por toda a espécie de mestiçagens musicais.


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PÚBLICO – Os seus primeiros discos – “Barricades 3” e “Traité de Mecanique Populaire”, com os ZNR – são bastante diferentes de tudo o que fez depois. Como encara hoje esses trabalhos?
HECTOR ZAZOU – São dois discos um pouco desajeitados mas têm o seu “charme”. O que se pode chamar obras de juventude. “Barricades 3” é muito amador. Ao segundo ouvi-o recentemente e encontrei, lá dentro, coisas interessantes mas que, em comparação com o que se fazia na época, soa demasiado acústico e trabalhado.
P. – A entrada para a editora belga Made To Measure implicou mudanças na sua direcção musical?
R. – Os discos que gravei nessa editora [“Reivax au Bongo”, “Géographies” e “Géologies”] são todos diferentes. “Géographies” e “Géologies” deveriam fazer parte de um tríptico cuja terceira parte não existe nem existirá. A ideia era partir dos instrumentos acústicos para chegar à electrónica. Em “Géographies”, praticamente não existem sintetizadores. “Géologies” já mistura os sintetizadores com os instrumentos clássicos. O terceiro volume deveria ser completamente electrónico, com alguns, poucos, elementos clássicos.
P. – Nas capas de “Géographies” e “Géologies”, pode ler-se respectivamente « feito à medida para eliminar a teoria do pós-modernismo” e “feito à medida para um estudo de estratos de sentimentos”. Estava a brincar ou a falar a sério?
R. – É uma brincadeira em “Géographies” e talvez algo mais sério em “Géologies”. Gosto da palavra “strate”, sinónimo de “couche” [“camada”, “leito”] como num estudo geológico, quando nos apercebemos, ao escavar, de diferentes estratos do solo que permitem determinar a sua idade. Era isso que me interessava, ter uma camada de instrumentos acústicos, uma camada de instrumentos electrónicos e, desta maneira, escavar e penetrar um pouco no passado.
P. – Há uma faceta cinematográfica no seu trabalho. Fellini, Antonioni…
R. – Sim, embora não tenha qualquer relação directa com o cinema. Adoraria ter composto música para Fellini mas ele já tinha o Nino Rota, que o fazia decerto melhor que eu… Não há nenhum outro realizador que me faça desejar trabalhar com ele. Talvez o único seja Hal Hartley, um jovem cineasta americano, algures entre Jim Jarmusch e Jean-Luc Godard.
P. – “Reivax au Bongo” é a mais estranha das suas experiências com a música africana…
R. – É, de novo, um disco de misturas – no fundo, o que me interessa: a mestiçagem. Encontrar portas de comunicação. Em “Reivax”, tratou-se de misturar “Noir et Blanc” e “Géographies”, num lado, e, no outro, a música electrónica, algo na linha do que poderia ser a terceira parte da tal trilogia, com uma cantora clássica.
P. – Não acha que, em comparação com esse ou “Noir et Blanc”, dois dos discos que gravou com Boni Bikaye, “Guilty”, um disco de música de dança, soa bastante maia vulgar?
R. – É preciso ter em conta que a dupla Zazou-Bikaye começou por um acaso. “Noir et Blanc” é um disco totalmente espontâneo. Em seguida, Zazou-Bikaye tornou-se um grupo com actuações ao vivo. Verificámos que as pessoas se levantavam e dançavam. O grupo começou progressivamente a incorporar ritmos cada vez mais evidentes na música, que, deste modo, se foi tornando progressivamente menos interessante. Por essa razão, decidi que o grupo devia terminar. “Guilty” é um disco que deve muito a artistas como Prince, que, nessa época, tinha acabado de editar “Sign of the Time”, um disco que adoro. Tentei encontrar na produção um som e texturas parecidas…
P. – Como conseguiu juntar tanta gente importante no projecto “Nouvelles Polyphonies Corses” e, posteriormente, em “Sahara Blue” [a lista é interminável: Cale, Sakamoto, Jon Hassell, Ivo Papasov, Manu Dibango, Sammy Birnbach, Khaled, Tim Simenon, Bill Laswell, Sussan Deyhim, etc]?
R. – Estavam todos interessados e já conheciam a minha música. Nas polifonias corsas, em que a regra é o canto “a capella”, toda essa gente quis participar a acrescentar vários acompanhamentos instrumentais. Dei-lhes toda a confiança.
P. – Como nasceu a ideia de musicar Rimbaud, em “Sahara Blue”?
R. – Foi uma proposta do Ministério da Cultura, que organizou uma exposição no centésimo aniversário da morte de Rimbaud. A partir daí, comecei a trabalhar com Ryuichi Sakamoto e David Sylvian. Quando a exposição terminou, como gostámos bastante do que tínhamos feito, perguntámo-nos: “Porque não continuar e fazer um disco com mais gente?”
P. – A troca de David Sylvian pelos Dead Can Dance, por razões contratuais, na segunda versão de “Sahara Blue” foi uma solução de recurso?
R. – Não! Tenho uma lista de todas as pessoas com quem quero trabalhar!
P. – Harold Budd faz, evidentemente, parte dela?
R. – Claro! Vai tocar piano e dizer poemas. Vão estar comigo também um saxofonista e clarinetista, Renault Pion, e a cantora Barbara Gogan, que fará sozinha a primeira parte e, na segunda, irá cantar provavelmente dois temas de “Sahara Blue”.

DIA 30, Aula Magna, Lisboa, 22h
DIA 1, Cinema do Terço, Porto, 22h
Primeira parte: Barbara Gogan



Frei Hermano Da Câmara – Entrevista

Pop Rock

21 de Dezembro de 1994
EM PÚBLICO

FREI HERMANO DA CÂMARA *


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Entre “O Nazareno” e este seu novo disco, “Missa Portuguesa” distam 16 anos. A que se deve um intervalo tão longo?
Deve-se sobretudo à fundação que eu fiz, dos Apóstolos de Maria, uma fundação com duas vertentes. Somos religiosos contemplativos e activos. Pela contemplação rezamos, temos uma via de adoração intensa. Pela acção, temos o nosso apostolado através da música. Como deve calcular, uma fundação nova dentro da Igreja dá sempre muito trabalho. Depois, as minhas gravações são quase todas com músicas compostas por mim e isso exigiu um reportório especial.

Até que ponto o novo disco é fiel às várias fases da liturgia?
Tem todas as características de uma missa. Segue o esquema do missal romano, nas suas partes invariáveis e variáveis. Tem o cântico de entrada, o “Kyrie”, o “Glória”, “Aleluia”…

Porque razão escolheu, em duas canções, textos das místicas Teresa de Lisieux e Teresa de Ávila?
Primeiro porque tenho uma grande paixão pelos grandes místicos, dos carmelitas como Teresa de Ávila, Santa Teresa do Menino-Jesus [Teresa de Lisieux] e São João da Cruz. Achei que Santa Teresa de Lisieux se aplicava ao Ofertório, porque fala de oferta – “os meus perfumes são para ti, Senhor” – e o de Santa Teresa de Ávila à Comunhão.

O disco surge numa altura em que outros, como o dos monges de Silos, estão a ter um enorme sucesso. Que razões encontra para este sucesso?
É um fenómeno que eu não sei explicar. Mas dá-me a impressão que as pessoas estão fartas daquela música que não acalma, que não serena, da chamada música pesada. As pessoas precisam de sossego e de calma.

Em vez de acordar as pessoas, adormecê-las… Não será isso uma fuga, um escape, um sedativo para os problemas do dia-a-dia, em última análise uma outra forma de alienação?
Não sei se o facto de as pessoas ouvirem uma música calma seja uma alienação dos problemas. Pelo contrário, acho que a pessoa, para tomar consciência desses problemas, tem que ter calma e serenidade. Não é neste ruído do mundo, nesta barulheira das “boîtes” e da música que se ouve na telefonia, que as pessoas têm tempo para pensar.

Mas não é possível criar o silêncio necessário no meio desse ruído? Afinal o tal acto contemplativo, mas fora das paredes do convento?
Repare no caso do Papa. O Papa disse numa entrevista que num primeiro momento a sua vocação surgiu para a vida contemplativa, mas depois de ter reflectido – é uma pessoa inteligentíssima, de grande categoria – percebeu que a vida dele não seria a contemplação, a vocação dele não era enfiar-se num convento. Então o que acontece é que o Papa vive a vida contemplativa, mas é um contemplativo do mundo. Mas isso não acontece com toda a gente. Repare, nós também somos contra sociedades contemplativas. A minha fundação é uma fundação contemplativa, mas temos, como já disse, uma vertente activa. De apostolado através da música em que fazemos espectáculos, gravações de discos e programas de televisão. Mas, além disso, todos aqueles que são sacerdotes exercem o seu ministério sacerdotal. Neste momento, estamos num chalé junto da basílica, onde celebro missa todos os domingos.

O Papa conhece os seus discos? Tem alguma opinião sobre a música?
Mandei de facto os meus discos ao Papa. Ele agradeceu imenso e enviou uma bênção. Mandei-lhe “O Nazareno” e outro disco, dedicado a ele, a “Serenata Mística”, que tem o atentado ao Papa, com tiros e tudo.

Porque é que utiliza sempre nos seus discos meios tão espalhafatosos, grandes encenações ou, como neste caso, a Royal Philharmonic Orchestra de Londres?
No meu caso, nunca pedi nada a uma editora, nem esta nem aquela orquestra. Quando gravei por exemplo “O Nazareno” puseram à minha disposição a Orquestra da Gulbenkian e coros do Teatro de S. Carlos. Não pedi nada a ninguém.

É para chegar mais facilmente às pessoas?
Pode chegar-se de qualquer maneira às pessoas. Até só com uma simples guitarra, como foi o caso, por exemplo, da célebre “Irmã sorriso”, uma dominicana belga que cantava, tocava guitarra, e gravou um disco que apareceu nos escaparates do mundo inteiro. Ou o caso dos monges de Silos que cantam sem qualquer acompanhamento.

Já agora, não há monges em Portugal capazes de fazer uma coisa semelhante?
Já podia ter sido feito, com os Beneditinos. Penso que ainda não se fez nada pela mesma razão de sempre: as editoras não querem arriscar. Possivelmente nunca lhes passou pela cabeça que gravar um disco de gregoriano com monges portugueses poderia ser um sucesso mundial.

Mudando de assunto, o que pensa dos cátaros, místicos cristãos da Idade Média que professavam a religião do amor (“Amor”, anagrama inverso de “Roma”) e praticavam a gnose (contacto directo com Deus, sem intermediários) sem obediência à Igreja Católica, que os considerava heréticos?
Na minha opinião, tudo o que seja uma separação, que não esteja em ligação com o vigário de Cristo, o Papa, está errado. Desde que seja conscientemente. Está errado porque Nosso Senhor Jesus Cristo instituiu uma hierarquia, pôs Pedro como pedra da Igreja, e disse: “Tu és Pedro e sobre esta pedra fundarei a minha Igreja e as forças do Inferno não prevalecerão contra ela.” A partir de Pedro há uma sucessão apostólica transmitida de Papa para Papa, portanto tudo quanto seja fora não está em união com a cabeça. Cristo é a cabeça da Igreja e nós somos um corpo. A igreja não é só o templo, são os sacerdotes e os leigos. As pessoas. Somos pedras vivas, como diz S. Pedro. Depois, há religiões e há seitas. Todas aquelas religiões que estão bem intencionadas e não ofendem a dignidade humana, mesmo que aparentemente estejam fora da Igreja, acho que essas pessoas se salvam da mesma maneira que um católico. Porque acreditam que a sua religião é que é a verdadeira. Agora as seitas, que ofendem a dignidade humana, essas não as aceito. Aí já há uma coisa diabólica pelo meio, contra a qual temos de lutar.

Há quem diga que o Diabo já se instalou em Roma…
Aí está. É isso mesmo. Não diria que o demónio se instalou em Roma, mas sim que o demónio está instalado em toda a parte. Digo muitas vezes na minha comunidade que é preciso dar um testemunho de amor, como os primeiros apóstolos que diziam “vede como eles se amam”, marca pela qual se conhecem os apóstolos de Cristo. Costumo dizer na minha comunidade, quando há qualquer coisa mal, uma tempestade lá dentro, que é porque está lá a garra do demónio.

Já teve algum contacto com esse mal, com o demónio?
Nunca o vi, mas sinto que ele existe. Muitas vezes há coisas que não consigo explicar e digo “isto é o demónio!”. Santa Teresa de Ávila era muito perspicaz e tinha uma facilidade muito grande para descobrir onde é que o demónio estava. Mas não são todas as pessoas que têm esse discernimento.

Concorda com as recentes posições do Papa contra o aborto ou a utilização do preservativo?
Estou plenamente de acordo com ele. Embora as pessoas que são atingidas por esses problemas, problemas reais, gostassem de outra resposta, tenho que acreditar, e acredito, eu as posições que o Papa toma são para o bem da humanidade. O Papa não é um carrasco, que esteja ali com uma disciplina militar. Não se trata sequer de leis. O Papa reza e pede ao Espírito Santo que o ilumine e lhe diga o que é melhor para a humanidade. Por exemplo, no caso de pessoas casadas pela Igreja que se separaram e perderam o direito a receber os Sacramentos. Tem havido uma pressão grande para que o Papa autorize essas pessoas a frequentarem os Sacramentos. Veja o que seria uma abertura, abrir um precedente, neste sentido. O casamento ia ao ar!

Estaremos de facto a viver o fim dos tempos, o Apocalipse?
Cristo disse no Evangelho que esse dia ninguém sabe quando acontecerá. Nem mesmo Ele, o Filho do homem. Mas Ele sabe. Já S. Paulo dizia que nós, os que cá estivermos no fim dos tempos, não morreremos, mas seremos levados imediatamente quando Cristo vier. Pode ser que estejamos no princípio do fim dos tempos. Não quer dizer que seja já amanhã ou daqui a um ano. Pode ser daqui a 20 anos. Há uma coisa muito importante que é preciso não esquecer. Nossa Senhora disse”Por fim o Imaculado Coração triunfará”. Ora nós vemos que o Coração Imaculado de Maria está a triunfar em toda a linha. Quando foi a consagração do Papa, em Roma, em que à irmã Lúcia pediu a conversão da Rússia, logo imediatamente a seguir deram todos aqueles acontecimentos no Leste, a queda do Muro de Berlim, tudo isso aconteceu naquela altura. A irmã Lúcia, numa entrevista, respondeu que realmente a consagração tinha sido ouvida. Temos de acreditar que o Imaculado Coração de Maria está a triunfar. E Ela disse “por fim”. Portanto, podemos acreditar que será o início do fim dos tempos.

Quer deixar aqui alguma mensagem de Natal?
A minha mensagem é a mesma de sempre, desejar a paz para todas as pessoas.

aqui, com o Quarteto 1111

* monge e cantor. Autor de “O Nazareno” e de uma “Missa Portuguesa” acabada de editar. Criador da fundação Apóstolos de Maria, de dupla vocação, contemplativa e de apostolado pela música.



Guilherme Inês – Entrevista

Pop Rock

7 de Dezembro de 1994
EM PÚBLICO

GUILHERME INÊS *


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O seu percurso musical começa pelos grupos pop, prolonga-se pelas sessões de estúdio e culmina na produção.
A partir do momento em que um gajo começa a fazer estúdio, o meu interesse passou de um instrumento para a possibilidade de poder ter uma visão mais global e aberta do universo das gravações. A mudança teve início na gravação de “Se Cá Nevasse”, dos Salada de Frutas. A partir daí passei a entrar mais na área da produção. No segundo disco da banda, “Crime Perfeito”, entrei um bocadinho ainda mais. Mas continuo a ser músico, a tocar bateria, guitarra, piano. No último disco da Dulce, tocámos praticamente os instrumentos todos.

Enquanto músico e produtor, quais são as suas preferências?
O meu “background” tem duas vertentes: a música popular portuguesa e o rock, com letra maiúscula. Hoje em dia o que eu gosto de ouvir está um bocado ligado às músicas alternativas e aquilo a que se poderá chamar “world music”. Coisas que até há pouco tempo nem sabia que existiam, música dos pigmeus do Gabão, um basco chamado Tomás San Miguel, um tipo vai chegando à conclusão que neste momento há um planeta, uma série de pessoal que aparentemente não está relacionado com nada mas está no mesmo comprimento de onda, a fazer trabalhos de fusão de culturas. Quando se procura as próprias raízes, vai-se encontrar as raízes dos outros. Quanto mais fundo se vai, mais para cima se vai. Chegando ao Peter Gabriel, para mim o fulano que faz música mais consensual.

Transpõe esses gostos para o trabalho de produção ou aceita todas as solicitações de trabalho, pondo de lado essas mesmas preferências?
No esquema de produção mais recente, apenas produzi o disco da Dulce Pontes, “Lágrimas”. A minha outra área de trabalho é a publicidade. No caso da Dulce, houve à partida uma grande identificação entre os dois, para onde é que queríamos ir. Á partida, quando um artista escolhe um produtor, fá-lo porque reconhece no trabalho dele qualquer coisa que lhe diz respeito.

Além de Dulce Pontes, também já produziu um disco da Dora. Para qeum diz situar-se perto das músicas alternativas não acha um paradoxo?
Mas também fiz um trabalho com a Lena d’Água, sobre temas do António Variações, um disco que passou completamente ao lado das pessoas mas onde já havia um desvio para essa área. E quando digo músicas alternativas não estou a dizer que elas não sejam comerciais. O que decididamente não me interessa são coisas como a “house”, a música de dança ou, na generalidade, a dos tops. Não a ouço, não tenho discos, não me interessam enquanto área de trabalho. Interessa-me cada vez mais uma área onde possa pesquisar, fazer coisas que ainda não fiz. Por outro lado, tenho neste momento um projecto para um disco a solo, algo que tenho na cabeça há dez anos, sobretudo desde que andei um ano e meio em digressão com José Afonso, uma pessoa para mim decisiva em termos de influência.

Como se processa o seu trabalho enquanto compositor e produtor de “jingles” publicitários?
Tenho a sorte de estar em estúdio consecutivamente. Neste momento e de há dez anos para cá, todos os dias estou em estúdio. Isto permite-me ir burilando o meu próprio trabalho. Vou ouvindo muita asneira que faço. É uma escola de disciplina e de despojamento muito boa, porque de facto aquilo que vai numa peça publicitária de 30 segundos é o estritamente necessário. Nada a mais nem a menos. Ali não há espaço nem tempo a perder. Desenvolve-se um poder se síntese – que remédio! – e de análise grandes. E um poder de microscopia. Divide-se o segundo em 25 partes e cada uma delas é crucial. O cérebro tem uma capacidade limitada de assimilar informação, não se pode sobrecarregá-lo. Por exemplo, num filme publicitário, não pode haver excesso de informação, sob pena que a mensagem não passe. Outra coisa importante nesta área é o sentido de se trabalhar numa equipa, desde os fulanos da agência que concebem a campanha até ao texto, à música e á parte gráfica. Toda a gente trabalha para uma finalidade.

Não existe o perigo de o artista se transformar num simples técnico?
Esse risco existe. Há vezes em que tenho liberdade de criação quase total e outras em que há grandes restrições. Aí vem o factor disciplina ao de cima. Quando se está numa situação de total liberdade, vamos imaginar um halterofilista que treina com pesos de 40 quilos e de repente lhe atiram com um cinzeiro que pesa 200 gramas. Para o segurar nas mãos, veja lá a agilidade que ele tem! É um pouco isto. É um pouco como potenciar toda a energia que está acumulada.

Em estúdio e enquanto produtor, já lhe aconteceu entrar em conflito com os músicos? De que maneira lida com essas situações?
Lido mal. Para já não gosto de conflitos. Se calhar é por ser um bocado preguiçoso. Geralmente prefiro ceder. Depois, há artistas que são improduzíveis, conheço dois, que se produzem a si próprios. Não vale a pena tentar o nosso contributo. Esses artistas não deviam contratar produtores. O produtor para eles é uma estátua que está ali para pôr o nome no disco: “Produzido por”. Ora eu quando ponho “produzido por”, gosto de sentir e ouvir que está lá alguma coisa minha. Que há uma responsabilidade minha. Se for mau, é mau; se for bom, é bom. Eu sou o trabalho que faço. Por exemplo, no disco da Dulce, ouço-me lá. Sou uma pessoa com grande tendência para a nostalgia. Não para a tristeza. Nem é saudosismo mas uma certa nostalgia que me liga a coisas como o amanhecer num rio, como o Zêzere, o cheiro dos eucaliptos.

Referiu há pouco que está quase permanentemente em estúdio. Não sente necessidade do silêncio? De parar?
Sim. Então quando chega o Verão!… Todos os anos, felizmente, há períodos de paragem. Quando eu digo não parar, é sobretudo mentalmente, não ficar desligado. Embora haja alturas em que tenho que desligar e pôr uma folha em branco à frente. Comer um marisco, olhar para o mar, nadar… Costumo fazer isto quando vou para Ferreira do Zêzere. Vou limpando as baterias.

O termo “new age” diz-lhe alguma coisa?
Diz. Englobo a “new age” na “world music”, embora num outro plano, mais sensorial e impressionista.

Diga o nome de produtores que considere revolucionários.
Brian Eno… na criação de sinergias entre a pessoa e o que ela está a fazer. Umas vezes é a pessoa que puxa a criatividade, noutras é aquilo que se faz que puxa a pessoa. É esse o sentido do erro e do aproveitamento desse erro. Ir atrás do erro e interagir com ele. Malcolm McLaren não me diz grande coisa. Phil Spector, um galo que criou um som. Há coisas que mal se ouvem e vê-se logo que é Phil Spector. O “wall of sound” e aquelas cenas todas. George Martin, com os Beatles. Grande profissional, ainda por cima lutando contra grandes dificuldades tecnológicas. Peter Gabriel, em termos de concepção. Há um tipo que fez completamente discos de produtor que é o Trevor Horn, que trabalhou com os Frankie Goes To Hollywood e foi teclista dos Yes. Em termos de manipulação tecnológica, é um tipo perfeitamente pop.

Os Kraftwerk e a sua noção de estúdio como instrumento musical?
Interessante. Têm uma perspectiva curiosa que é não rejeitar a tecnologia, assumi-la a cem por cento e humanizá-la, perspectivá-la e dá-la às pessoas no seu lado humano. Eu falo com as máquinas com que trabalho. Não estou a brincar. Vou ter com o “Fairlight” e digo-lhe “hoje estás mal disposto!”.

Não sente a angústia de ter que escolher entre infinitas possibilidades de criação postas à sua disposição num estúdio?
Há o factor da criatividade e sensibilidades próprias. Aí reajo absolutamente por instinto. Em geral, primeiro ouço o som e depois é que vou á procura dele. Imagine que olha para uma parede em branco e “vê” lá um quadro. Depois de “ver” o quadro é que o vai pintar. Não é o contrário. O fundamental é que o que se ouve esteja correcto com o instinto e as emoções do momento. Como nas fotografias. Quando se tira uma fotografia não se pode voltar atrás. É um paralítico no tempo. Esse segundo, essa fracção, não existe mais. Nunca. Há alguns de som que dizem que sou uma pessoa um bocado ansiosa, porque acho que determinadas coisas têm que ser feitas depressa. Para se aproveitar o jorro criativo. As máquinas têm de estar ali para nos servir. Como escravas. O que eu procuro é captar as magias, as faíscas que saltam em determinado momento. Isso é que tem de ficar gravado.

* músico e produtor. Fez parte, nos anos 60 e 70, de grupos como os Chinchilas, Objectivo, Zoom e Salada de Frutas. Tocou ao vivo e como músico de estúdio, entre outros, com José Afonso. Vitorino, Fausto e Sérgio Godinho. Recentemente produziu o álbum a solo de Dulce Pontes, “Lágrimas”.

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