Negativland – “Free”

pop rock >> quarta-feira >> 26.05.1993


CEM POR CENTO DE SABOTAGEM

NEGATIVLAND
Free
CD Seeland, import. Contraverso



O meio é a mensagem. Os Negativland são como que a emissora de rádio proibida dos Estados Unidos da América. A voz (des)autorizada do vazio e da paranoia que habita no coração desta nação que disseram ser a pátria de todos os sonhos. A banda da contracosta leste que recentemente foi processada pela utilização abusiva do nome, do logotipo e da música dos U2, “a pior banda do universo”, retoma a investida contra o “establishment”, carregada de doses maciças de ironia e terrorismo musical, na manipulação e corrosão sistemáticas das palavras e dos sons. “Free” (“grátis” e “livre”, em inglês) desmonta esquemas e comportamentos, numa espécie de desenho animado de terror que nada deixa escapar, na tradição interrompida do magistral “Escape from Noise”. O mesmo é dizer que a música volta a ocupar o lugar central na estética dos Negativland, contrariando a tendência de “Helter Stupid” e do single CD “Guns” que privilegiavam a palavra na dissecação dos processos mediáticos amplificadores da mensagem, até ao delírio tecno-moralista dos grandes meios de comunicação. “Comunicação” continua a ser o termo chave – através de diálogos recortados e deslocados de contexto criadores de uma nova realidade, “alter ego” aleatório, e, à sua maneira, totalitário, da América imperialista do final do século.
A outro nível, os Negativland assumem por inteiro a noção de produto, usando a indústria discográfica para melhor a desmontar e sabotar. “Free”, diz o gráfico incluso na capa, é 17 por cento de “receptable programming”, 4 por cento de “classic rock”, 6 por cento de “album oriented rock”, 20 por cento de “adult contemporary”, 4 por cento de “news talk”, 10 por cento “gold”, numa enumeração de elementos que reduzem a obra musical a simples enunciado estatístico. A menção de 52 por cento de country é a piada final, em refer~encia à música de brancos mais popular dos “states”, utilizada como isco mas que, na prática, se reduz ao envenenamento do género no paradoxalmente intitulado “Cityman”. E, mesmo que permanecêssemos surdos ao sarcasmo, ficariam ainda as melodias infecciosas (“Truck stop, drip drop”, “Crumpled farm”, “Pig digs pep”, “I am god”…) com que os Negativland nos atraem para melhor nos desfecharem na cara um tiro à queima-roupa.
“Free”, tornada palavra sem sentido, a mais publicitada na América da era Clinton, dá o mote, em “Freedom’s wiating”. Ponto de partida para os combates de estilo em que a banda se notabilizou. “The gun and the bible” faz contracenar sinos de igraja com disparos de metralhadora. “The bottom line” disseca o tema da tortura: “A morte já não é suficiente. Tornou-se necessária a tortura. Até os adolescentes a usam como forma de aliviar o ‘stress’ do dia-a-dia. Tortura ‘hi-tech’.” Melopeias infantis e caixas-de-música insinuam-se no crepitar digital dos computadores. No tema mais longo, a perturbação estende-se por dez minutos de tensão que narram a história de uma velhota do campo “que tinha um gato, um cão e uma harmónica”. E um sonho: “Aprender a tocar ‘Home sweet home’ para fazer a harmónica feliz.” Com a agilidade subversiva de um vírus informático empenhado na destruição das rotinas do sistema, os Negativland operam a verdadeira revolução da música pop. Um dos álbuns do ano. (10)

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