Pop-Rock Quarta-Feira, 16.10.1991
TROVAS DA SAUDADE
“Saudades do Futuro”, assim se intitula, saudosista e tradicional, o novo álbum dos Trovante, colectânea de canções que encerra um ciclo de vida, na já longa carreira do grupo. O disco, lançado no mercado nos formatos de duplo-álbum e CD (este incluindo mais 12 canções que o vinil), festeja o 15 aniversário da banda, ao mesmo tempo que antecipa o fecho da “tournée” nacional, em concertos a realizar nos Coliseus de Lisboa, a 24, 25 e 26 deste mês, e do Porto, a 30 e 31. O PÚBLICO juntou-se aos festejos e falou com Manuel Faria e João Gil.
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PÚBLICO – Até que ponto esta colectânea assinala o fim de um ciclo e o início de outro, na vida dos Trovante?
MANUEL FARIA – Encerrámos um ciclo, quando entrámos para a EMI-Valentim de Carvalho. Outro, quando gravámos o álbum “84”. Então como agora, sentimos que era preciso mudar, que tínhamos um pouco esgotado um determinado formulário estilístico.
P. – Isso implica uma mudança radical no estilo da banda?
JOÃO GIL – Em relação ao futuro, está tudo por acontecer. O trabalho de composição, apesar de colectivo, funciona ao mesmo tempo como um trabalho solitário, em termos de direcção musical. O caminho que poderá vir a ser trilhado no futuro tem que ver com a capacidade individual de cada músico. Nos Trovante há duas ou três pessoas com essa capacidade.
P. – O disco festeja 15 anos de carreira. Referem-se já aos outros 15 que estão para vir. Qual o segredo dessa longevidade?
JG – Nunca fazemos planos a médio ou a longo prazo. Como diz a canção “Saudades do Futuro”, viramos sempre a nossa cabeça para o futuro, não para o passado. Manter, hoje em dia, um grupo com a estrutura, já de certo modo complicada e pesada, dos Trovante tem que se lhe diga. A nossa coesão passa por uma sensibilidade e por uma educação musical comuns. Crescemos juntos. Há poucos segredos entre nós. Sabemos até onde cada um pode ir.
P. – No início, os Trovante eram um grupo conotado com a esquerda, mesmo partidária. Hoje, assiste-se a uma recuperação, da vossa parte, de um imaginário e de um discurso nitidamente conservadores…
MF – Isso implica uma discussão muito profunda. O pensamento político em Portugal tem um defeito enorme. Permite-se que a bandeira do 25 de Abril seja um exclusivo da esquerda e que a bandeira dos Descobrimentos e do mar seja um exclusivo da direita. São ambas coisas que marcaram a vida deste país e de que as pessoas se deviam orgulhar. Pessoalmente não me acho mais próximo da direita. O povo português sempre foi muito marítimo, muito contemplativo…
P. – A aformação desses valores, ligados à tradição, está hoje na moda…
MF – Mas essa moda, esse tipo de sentimento tem uma razão de ser. De certeza que há nele razões que se prendem com o progressivo bem-estar de uma determinada classe, se calhar aquela a que pertenço. Penso que o nosso afastamento da estrutura partidária de esquerda não tem nada a ver com a nossa dita opção de esquerda, se é que ainda hoje é possível falar-se nesses termos. Há alturas em que se torna difícil distinguir qual é o lado conjservador…
P. – Por falar em tradição, a música tradicional teve uma grande importância na fase inicial da vossa carreira. Não tencionam recuperar, de futuro, essa via?
JG – Acho que a aproximação às raízes tradicionais é evidente em toda a música dos Trovante. O lado interior da música tradicional, a sua essência, sempre nos interessou. Há uma nítida influência da postura que o Zeca Afonso, o Adriano, o Sérgio ou o Fausto, em tempos mais antigos, tomaram em relação às raízes tradicionais. Agora, o que nós abandonámos há muito, e convictamente, foi a forma da música tradicional, o folclorismo. Vivemos na cidade. Interessa-nos procurar novos sons.
MF – É mais importante transportar o sentimento do que fazer uma coisa estilo selecções “Reader’s Digest”, do que utilizar este instrumento ou aquele. Fica-se com ar de estudante da universidade, a imitar um rancho folclórico. Hoje em dia, é fácil ser-se exótico. O que está a dar é o “popular”. Engana-se meio mundo, com esse pretenso “fazer popular”…
P. – Por que razão escolheram “Saudades do Futuro” como título do novo disco?
JG – Para mim, “Saudades do Futuro” significa o relacionamento com a utopia, muito mais do que uma coisa saudosista. Ter saudades de um sonho que se acredita ser possível concretizar. Pode ser uma utopia musical. Ou uma utopia política. “Saudades do Futuro” é a nostalgia do que ainda está para acontecer. Podemos citar a propósito a filosofia chinesa, o Teixeira de Pascoaes, o José Gomes Ferreira. O título refere-se à eternidade, ao ser em vez do ter.
P. – Foram escolhidos para representar Portugal na Europália, a par dos Sétima Legião e dos Madredeus, justamente dois grupos conotados com a tal tradição conservadora…
JG – Acho que a fórmula Trovante, Sétima Legião, Madredeus, resulta excepcinalmente bem ao vivo. Mas neste tipo de exposições, seria desejável que houvesse uma melhor divulgação, mais ambição e agressividade. É preciso ter em conta que fazer uma Europália é trabalhar para fora e não para a colónia de imigrantes. Não somos um laxante para revigorar a saudade dos portugueses. Temos que nos voltar também para o resto do mundo.
P. – Afinal, ainda e sempre, a velha incapacidade dos grupos portugueses penetrarem no mercado internacional. Será possível alterar essa situação?
MF – Não acredita no esforço que foi feito, para penetrar, por exemplo, no mercado francês. Foram vendidos 500 discos, por nós próprios no átrio do “Théâtre de La Ville”, durante os cinco dias em que aí actuámos. Decidimos levar os discos à Pathé Marconi. Não ligaram nenhuma.
P. – Regresemos a Portugal. Como vai ser o concerto do Coliseu?
MF – Até agora, costumávamos começar as “tournées” em Lisboa e no Porto, antes de partir para o resto do país. Este ano, decidimos fazer o contrário – concluir a digressão nessas cidades, o que tem uma grande vantagem: o espectáculo está super-ensaiado, permitindo-nos partir para os Coliseus com uma segurança maior. O repertório vai incidir sobretudo no “Um Destes Dias”, mas, mais do que uma panóplia de várias canções, interessa-nos o ritmo do próprio espectáculo como um todo.
P. – Que conselho dariam, na qualidade de “irmãos mais velhos”, às gerações de músicos mais novos?
JG – Acho que o grande recado possível de dar à malta mais jovem que está a começar, passa por encontrar na língua portuguesa, na divisão das palavras, o ritmo certo e a maneira mais correcta de as dizer. A música portuguesa está carenciada de gente que compreenda o português na sua essência. A genialidade do Zeca Afonso consistia nisso, a maneira como cantava o português era fabulosa. Como o Alfredo Marceneiro, também. Não nos devemos iludir com o cavaquinho ou a chula. Devemos, isso sim, procurar mais fundo…
MF – … Encontrar aquilo que nos identifica perante o mundo e nos permite ultrapassar as suas fronteiras.