Lou Reed E John Cale – “Songs For Drella – A Fiction”

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 2 MAIO 1990 >> Videodiscos >> Pop

FICÇÕES


LOU REED E JOHN CALE
Songs For Drella – A Fiction
LP, Warner Bros, import. WEA



Andy Warhol, a quem este disco é dedicado, é Drella, junção de Drácula e Cinderella, na mesma pessoa. Warhol, já se sabe, é um mito, referência obrigatória de uma certa cultura, outrora “underground”, americana, e, mais especificamente, nova-iorquina. Personagem vampírica de modas, estilos e escândalos de uma cidade fotografada em rápidos “polaroids”, no seu aspeto mais artificial e decadente. Isto, claro, se não quisermos considerar Nova Iorque como o símbolo máximo do artificialismo e da decadência, a realidade feita imagem.
Warhol compreendeu isto mesmo, ao transformar uma lata de sopa ou a estrela Monroe em simples imagens, repetidas “ad infinitum”, em múltiplas variantes, a aparência sempre se sobrepondo ao sentido essencial – ou, dito de outro modo, reduzindo a essência à imagem exterior e fotográfica que adquire, por este processo, um sentido autónomo do ente que lhe deu origem. Simples objeto de consumo doméstico (a lata de sopa) ou gente de carne e osso (Marilyn), são, afinal, exemplos paradigmáticos de uma mesma atitude redutora do real a imagens de marca, réplicas que, paradoxalmente, se elevam, por força da repetição e ampliação sucessivas, à superior condição de mitos.
Warhol executou a sua obra de arte suprema ao aplicar a si mesmo o método, à custa de uma constante e criteriosamente controlada sobrexposição, diante dos mecanismos transformadores dos “media”. Se foi “Cinderella”, como personagem emblemática da passividade, foi-o, decerto conscientemente e de forma calculista. Warhol vampirizou-se a si próprio, através dos outros, sabendo como se constrói o mito a partir do vazio. “My life is disappearing from View”? – tanto melhor, diria Drella.
Sedimentada a ilusão, o processo inverteu-se. John Cale e Lou Reed, partindo da imagem mítica do artista, procuram, neste disco biográfico, atingir através de uma simplicidade de meios idêntica à dos Velvet numa primeira fase, o âmago, a pessoa real “escondida” atrás da personagem. Para descobrirem, por fim, que, por baixo da máscara, existe sempre outra máscara, num infinito jogo de espelhos.
Cale e Reed, desde o início de carreira, com os Velvet Underground, procuraram sempre as vias opostas às do sonho, tentando permanecer apegados a uma certa materialidade do real, avançando contra todos os pressupostos estéticos da época. Nos anos em que se cantava ainda as alucinações coloridas do LSD, Lou Reed esperava à esquina pelo seu “dealer” e erigia a heroína como verdadeira “esposa”, única capaz de facultar a visão autêntica, brutal e a negro e branco, da realidade concreta da rua e, por extensão, da América destituída da ilusão de todos os sonhos.
Talvez não se tenha compreendido ainda a importância crucial, na obra de Lou Reed, do duplo “Metal Machine Music”, das poucas tentativas, na arte do nosso século, de ultrapassar a forma estética, para chegar à nudez absoluta da abolição de todos os sentidos. A realidade é, deste ponto de vista, o que está para além da arte. Se há uma lição a tirar de “Songs For Drella”, é o fracasso a que estão condenadas tais tentativas. Os dois expoentes dos Velvet são (ou têm sido) então, precisamente o oposto de Warhol, procurando, no cerne da ilusão, a impossível saída para o que julgam existir para além dela. Reconheceram finalmente, após largos anos apostados em permanecer “gente real” que – pelo simples facto de terem escolhido a música e a fábrica de sonhos que é a pop – todos os esforços nesse sentido resultaram afinal nos mitos em que também eles se transformaram.
Visto desta maneira, “Songs For Drella” é uma homenagem, na aceção mais profunda do termo, rendição incondicional à visão warholiana, compreendendo-se agora melhor o verdadeiro significado do “A Fiction” (Warhol, a ficção em pessoa) aposto no título. Passados 24 anos, os Velvet Underground regressam, com a mesma força e invertendo o sentido inicial. Suprema ironia, desistência apoteótica ou manifesto definitivo da arte como suprema forma de ilusão, cabe a cada um decidir, consoante a perspetiva.

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