PÚBLICO SEXTA-FEIRA, 23 MARÇO 1990 >> Cultura
Elba incendeia o Porto
O Coliseu a seus pés
Elba “pernas” Ramalho deu “show”, quarta-feira à noite, no Coliseu do Porto. Um som péssimo e a fraca afluência de público não chegaram para arrefecer o entusiasmo dos presentes. No final a festa generalizou-se, com toda a gente a dançar e a pedir mais. Sexta-feira e sábado é a vez do Coliseu de Lisboa.
O elevado preço dos bilhetes e uma fase mais apagada na carreira da cantora nordestina terão sido os principais motivos para o escasso número de pessoas presentes. O atual “show” de Elba Ramalho, apresentado (parece que com grande êxito) em S. Paulo e no “canecão” do Rio de Janeiro, é sem dúvida profissional, mas à maneira brasileira. Pretendendo parecer “à americana”, do género produções “Brodway”, falhou (pelo menos no Porto) num aspeto essencial: o som, péssimo do princípio ao fim do concerto. Uma massa empastelada e indistinta e, pior ainda, um constante e irritante ruído do microfone da cantora, por vezes quase abafando a própria voz, teriam bastado para arruinar o espetáculo não fora o alto profissionalismo revelado pela artista brasileira.
De resto, os milhares de “watts” anunciados, 200 mil de luz e 15 mil de som, cumpriram o que se propunham: encher o olho de cores e o ouvido de ruído, tido por excitante pelo frequentador habitual deste tipo de espetáculo.
Pernas dançarinas
Espetáculo que se pode dividir em três partes distintas: uma em que a cantora mostrou as pernas, outra em que mostrou muito as pernas e finalmente aquela em que mostrou totalmente as pernas. Mostrou ainda o rabo umas quantas vezes. Do ponto de vista anatómico o concerto saldou-se pois por um sucesso. Do ponto de vista musical as coisas também não correram mal de todo. Num palco montado “à Hollywood”, com espelhos e luzes de camarim a condizerem, Elba surgiu em cena “vestida” de cetim roxo, atacando em força com música do recente álbum “Popular Brasileira”. Viria a trocar de trapos mais três vezes, sempre com a preocupação de deixar a perninha bem solta e à vista de todos, para melhor dançar e pular.
Um dos momentos fortes do espetáculo aconteceu quando a intérprete de “Do Jeito que a Gente Gosta” cantou e dançou “à maneira” um tango com um dos seus bailarinos. Depois foi “Sister”, cantada em inglês que, como se sabe, é das línguas mais faladas no sertão nordestino. Seguiu-se a balada “A Violeira”, de Chico Buarque, completamente arruinada pelo ruído de microfone já aludido e um longo tema ecologista dedicado à Amazónia, com Elba vestida de ave multicor, luzes sugerindo a selva e “samples” de passarada criando um dos poucos momentos verdadeiramente mágicos de toda a atuação. Retorno a uma sequência de canto e dança, com a cantora contracenando com os quatro bailarinos de serviço, os irmãos Tânia, Nadia, Tony Nardini e Carlinhos de Jesus.
A temperatura da sala foi subindo, atingindo o ponto de rebuçado quando a “Lambada” explodiu. Elba desafiou os assistentes perguntando-lhes se queriam deboche. O terrível urro masculino de resposta deve tê-la assustado ao ponto de não ousar demasiado nos passos de dança. Oportunista ou não (Elba afirma que a dança é típica do Nordeste, embora com outras designações), o facto é que o tiro acertou em cheio, como seria de esperar.
Elba salta para o meio da sala e baila com um espontâneo já entradote, que deve ter tido os três segundos mais excitantes da sua vida. Sempre num virote, aproveita para fazer publicidade a um disco “ao vivo” a publicar brevemente – que a vida não está só para brincadeiras – e declara já estar “mais cansada que a Nova República brasileira”. Ficou demonstrada a sua costela de política.
Pernas intimistas
Quando uma criancinha lhe oferece uma flor (por coincidência branca como o vestido), a assistência comove-se, a artista também. Sacode a imensa cabeleira e, com um olhar muito meigo, afirma que “para o artista tudo começa e acaba no público”. Nem Serafim Saudade teria dito melhor. O jornal agradece a publicidade gratuita… Estava dado o mote para a fase romântica e intimista, com a verdadeira artista sentada à beira do palco, as pernas cruzadas frente ao olhar guloso da primeira fila, concedendo democraticamente aos presentes o privilégio de escolha das canções. Um grande momento de “music-hall” como diria o mesmo Serafim Saudade. Passada a fase em que foi dado a entender que afinal a vida não é só “forró”, Elba ligou novamente à corrente não voltando a desligar até ao fim.
Pernas para que vos quero
A composição sobre o “Nordeste Independente”, proibida no Brasil na altura em que foi composta, acendeu de novo os ânimos. O espetáculo avançava a galope para a apoteose final: uma canção versando a temática do circo foi acompanhada por uma encenação que incluía uma trapezista, um mágico, uma bailarina, um equilibrista e um palhaço, criando sobre o palco uma atmosfera muito especial.
Tempo ainda para outra frase lapidar: “O artista é transparente”. Francamente não se notava e valha a verdade que uma Elba menos artista mas apetitosamente opaca é muito preferível. Meditava-se no sentido de tal transparência quando, de repente e sem que nada o fizesse prever, parte da assistência enlouqueceu, desatando a dançar e a cantar em coro com a brasileira. Supõe-se que por estar a gostar verdadeiramente. O público tem por vezes destas reações.
Feitas a apresentação dos músicos (que devem ser bons mas o som não deu para perceber) e as despedidas, ninguém arredou pé. Todos queriam mais. Elba regressou por duas vezes, despachando à pressa os “encores” da praxe, alegando que ainda faltava o concerto de Lisboa. Mas, bem feitas as contas, foram perto de duas horas de quase sempre boas canções, servidas por uma voz excelente, muita energia e uma magnífica presença sobre o palco. Quanto às pernas, a sua dona garante que só as mostra para se sentir mais à vontade. Connosco, Elba, já sabes, estás sempre à vontade.