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The Beatles – “1962-1966” + The Beatles – “1967-1970” (10)

pop rock >> quarta-feira, 29.09.1993


A PERFEIÇÃO PODE SER UM BOM NEGÓCIO

THE BEATLES
1962-1966 (10)
2xCD
1967-1970 (10)
2xCD
EMI, distri. EMI – VC



O que é que ainda há de novo para dizer sobre os Beatles? Nada. Mas se a vida de cada um dos quatro “fabulous four” já foi mil vezes dissecada, as canções permanecem como modelos intemporais do que deve ser a música pop. Entre discípulos e imitadores muitos têm procurado, sem sucesso, a fórmula milagrosa que serviu a Paul McCartney, John Lennon, George Harrison e Ringo Starr para fazerem a lenda. Consumada a morte de Lennon, essa fórmula ficará para sempre guardada no segredo dos deuses.
As canções de “1962-1966”, do período compreendido entre os álbuns “Please Please me” e “Revolver”, e de “1967-1970”, abrangendo as duas obras-primas “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” e o duplo álbum branco, “The Beatles”, a banda sonora “Yellow Submarine” e os derradeiros “Abbey Road” e “Let it be”, toda a gente as conhece de cor. Estão aqui todas as melodias mais célebres do grupo, produzidas pelo génio da dupla Lennon-Mccartney. A redescobrir sempre. Ou a descobrir, pelas gerações mais novas, pelas gerações que estão por vir.
Mas se a música não encerra novidades, a sua edição, pela primeira vez, em formato compacto, chegou rodeada de controvérsia. A história conta-se me poucas palavras. As edições originais, em vinil, saíram em formato de duplo álbum. Acontece que o tempo de gravação de ambas não ultrapassa os 60 minutos, o que permitia a sua reedição em dois CD simples. Era essa, de resto, a intenção da EMI, quando a Apple, propriedade dos três Beatles ainda vivos, entrou na jogada, fazendo questão que os dois álbuns mantivessem o formato original, ou seja, os compactos deveriam ser igualmente duplos e com o preço de venda ao público correspondente a um duplo CD normal. A EMI discordou, a Apple insistiu, alegando as baixas percentagens de “royalties” que a EMI Parlophone teria pago ao grupo, durante os anos 60, relativas a todos os álbuns da banda editados nesta editora, isto é, até 2Sgt. Peppers”, inclusive. Trata-se, afinal, de uma espécie de compensação tardia, em que o principal prejudicado, como acontece quase sempre nestes casos, acaba por ser o consumidor, que deste modo terá que pagar mais por causa das birras de uns senhores chamados Paul, George e Ringo, esquecidos decerto de quem os elevou aos píncaros do sucesso.
Mas se ninguém é perfeito, nem sequer os Beatles, a sua música anda lá perto. Pondo de lado as quezílias e as negociatas, as canções, e só elas, merecem que se façam todos os sacrifícios. Se, como dizem, e vamos fingir que é verdade, o digital é mesmo eterno, vale a pena conservarmos para a posteridade a quinta-essência da música popular. No caso de não termos adquirido já a totalidade dos álbuns da banda, em separado. São XX canções. Todas perfeitas.

Orchestral Manoeuvres In The Dark – “Liberator”

pop rock >> quarta-feira, 29.09.1993


Orchestral Manoeuvres In The Dark
Liberator
Virgin, distri. EMI – VC



Os Orchestral Manoeuvres in the Dark, OMD, como são conhecidos, surgiram em Inglaterra durante o “boom” da “cold wave”, no final dos anos 70 – pop robótica que procurava reproduzir os cenários da urbe industrializada e inventar um novo imaginário romântico para uma nova era da humanidade em que coisas e sentimentos funcionavam carregando-se em botões.
Alinhando de início ao lado de grupos como Human League, Depeche Mode e Fad Gadget, e do replicante simplório que em parte deu fama ao movimento, Gary Numan, os OMD assinaram nessa altura alguns álbuns interessantes, com destaque para “OrganiZation” (irmão mais novo de “Organisation”, dos Kraftwerk, dos quais os OMD se reclamavam descendentes legítimos, pretensão que os próprios germânicos contribuíram para reforçar, reconhecendo-lhes a filiação) e “Architecture & Morality”. Depois, a aliança entre a electrónica de Patrick Humphreys (que já não participa neste disco) e a voz de adolescente cibernético de Andy Andy McCluskey, esgotado o filão da “cold wave”, soçobrou numa busca infrutífera de novas fórmulas, do funky à pop mainstream, que jamais propiciaram quaisquer progresos dignos de registo.
“Liberator” marca de certo modo o regresso aos esquemas do passado, trazendo sugestões de licenciosidade e uma batida maquinal bastante aproveitável para as pistas de dança. A vida, essa há muito que abandonou os OMD. (5)

Penguin Café Orchestra – “O Pinguim Não Despe O Fraque” + Penguin Café Orchestra – “Union Cafe” (entrevista + crítica de álbum | dossier)

pop rock >> quarta-feira, 29.09.1993


O PINGUIM NÃO DESPE O FRAQUE



“Imaginary World Music”, houve quem chamasse à música dos Penguin Café Orchestra, um híbrido de estilos e referências que hoje soa bastante menos radical. A banda, que começa por ser o espaço de concretização das ideias de Simon Jeffes, tem um álbum novo, editado numa multinacional. Chama-se “Union Café” e pisca o olho a temas e sons de álbuns anteriores. Pop de câmara ou seja lá o que for, a música ouvida neste café, tem menos piada e as experiências funcionam a um nível quase subliminar. Crise de crescimento ou fruto da maturidade, o Café Pinguim passou a reservar o direito de admissão.



Arredado, pelo menos de forma evidente, o elemento surpresa, da música dos Penguin Café Orchestra, compete-lhe agora apurar cada vez mais a vertente do classicismo. Se os primeiros álbuns – “Music from the Penguin Café”, “Penguin Café Orchestra” e “Broadcasting from Home” submetiam essa componente Às infiltração de músicas alienígenas, filtradas através de um humor subtil, “Union Café” afirma orgulhosamente a perfeição das formas e a depuração de uma linguagem que se cinge ao essencial. Se bem que permaneçam subentendidos e camadas profundas de significados, que aqui, em entrevista ao PÚBLICO, Simon Jeffes ajuda a desvendar.
PÚBLICO – É lícito considerar os Penguin Café Orchestra apenas a exteriorização de um projecto pessoal?
SIMON JEFFES – Digamos que eu sou o cérebro e os outros músicos são os braços e as pernas, o corpo. Se os diversos órgãos não funcionarem, o corpo não funciona.
P. – O novo disco soa bastante mais clássico que os anteriores, que recorriam bastante ao humor e a um intenso trabalho de estúdio.
R. – Penso que tem a ver com o tempo e com a idade [Simon Jeffes tem hoje 44 anos de idade]. Com o tempo tornei-me cada vez mais interessado no som de grupos que tocam sem qualquer tipo de amplificação. Para fazer isso é necessário escolher instrumentos cujo som se possa combinar, numa situação acústica, sem sistemas electrónicos. Isso leva a uma determinada selecção dos instrumentos. Por exemplo se tiver um trombone, um piano e um “ukelele” [instrumento havaiano, igual ao cavaquinho], não se vai conseguir ouvir o “ukelele”.
Isto levou-me a dar mais relevo ao que na aparência parece ser uma formação mais tradicional. A intenção não é ser tradicional, tem a ver com o modo como os instrumentos funcionam, quando tocam uns com os outros.



P. – Em “Union Cafe” os instrumentos dominantes são o piano e as cordas.
R. – A razão porque estou actualmente a tocar mais piano do que guitarra prende-se com a resposta anterior. O piano é umm dos instrumentos sem amplificação que soa mais claro.
P. – A frase que aplicaram à sua música “Imaginary world music”, diz-lhe alguma coisa?
R. – É engraçado porque eu mesmo usei uma frase semelhante, há cerca de uns dez anos: “folclore imaginário”. Na minha imaginação, vejo este lugar, o café Pinguim, e o seu folclore próprio. Nessa época prestávamos uita atenção à música étnica, talvez porque então a música clássica e a música pop não falassem connosco directamente, era como se faltasse qualquer coisa. Também nos interessávamos por movimentos como o surrealismo. O termo “folclore imaginário” surgiu porque eu sentia como que um hiato na minha experiência.

Música

P. – Encontra alguma explicação para a insistência com que os grupos folk, estou a lembrar-me dos Patrick Street e dos Matto Congrio, pegam no tema “Music from a found harmónium”?
R. – Escrevi essa peça no Japãp, em 1982. A razão do título prende-se com uma ocasião em que eu andava a caminha de noite por uma rua de Quioto e encontrei um “harmónium” [órgão de pedais] que alguém tinha deitado fora, na rua, como se fosse lixo.
Trouxe esse órgão para casa e foi nele que escrevi o tema. Tive a sensação curiosa de que o tema surgira de um lugar muito puro, não consigo explicar bem: desde que escrevi esse tema ele passou a ter a como que uma existência própria, com um apelo que parece funcionar em qualquer tipo de situações e culturas.



Cage Tomado À Letra

P. – No novo álbum aparece o tema “Yodel 2”, depois de ter havido “Yodel” em “Penguin Café Orchestra” e um “Prelude & Yodel”, em “Broadcasting from home”. A que se deve tal repetição?
R. – A razão por que uso o termos “yodel” é por se tratar de uma técnica na guitarra em que se puxa uma corda e logo de seguida se comprime o dedo sobre ela. Produz como que dois sons quase em simultâneo, dois sons que alternam muito rapidamente, numa maneira muito semelhante ao “Yodelling”, que é uma técnica vocal utilizada nas regiões alpinas, em que a voz oscila entre a nota fundamental e uma espécie de “falsetto”. É como se eu fizess “yodelling” na guitarra.
P. – “Cage dead”, outroion Café”, é uma referência explícita a John Cage?
R. – Sim, escrevi-o na altura em que Cage morreu, o ano passado. Escrevi-o muito rapidamente e baseia-se nas letras do seu nome, “C”, “A”, “G”, “E” [iniciais de notas, em inglês]. O mais estranho é que o ambiente geral, sem que tenha sido essa a intenção, soa como um cortejo funerário. Não exageradamente triste, mas revela um certo tom de solenidade.

Pitágoras Ao Telefone



P. – “Silver star of Bologna”, do novo álbum, remete para outros títulos anteriores relacionados com a Itália. Além disso os Penguin Café gravaram o seu disco ao vivo em Roma (“When in Rome”). A Itália exerce algum fascínio especial sobre si?
R. – Um impacte fulgurante. Por exemplo, escrevi “Silver star of Bologna” há dois anos, numa altura em que me foi dada a oportunidade de organizar um festival em Bolonha, num pátio de uma antiga prisão. Eram convidados músicos para tocarem lá, os Penguin Cafe Orchestra tocaram lá. O espaço tornou-se no próprio Café Pinguim durante um mês. Escrevi o tema como uma espécie de comemoração. Além disso costumamos fazer digressões frequentes por Itália.
P. – “Discover America” inclui excertos de temas tradicionais americanos…
R. – “Discover America” baseia-se inteiramente na minha descoberta, que consistiu em juntar três temas tradicionais. “Red river valley”, “When the saints” e “Home on the range”. Se se tocar estes três temas em simultâneo, sem qualquer adição de material harmónico, eles harmonizam-se mutuamente e produzem uma espécie de harmonia americana quintessencial. Soa um bocado como Aaron Copland, sobretudo um acorde que lembra “Appalachian Spring”. Penso que é notável, juntar três peças americanas e, sem querer, elas soarem a Aaron Copland.
P. – A Inglaterra é contemplada com “Lie back and think of England”…
R. – É uma peça de construção muito simples. A sensação que se obtém dela lembra-me um pouco os compositores românticos ingleses, como Elgar ou Vaughan Williams. Há um certo ambiente pastoril…
P. – É influenciado pelos compositores que citou?
R. – Sim, penso que isso é inevitável, quando se é inglês. A música desses compositores é bastante estimulante no mesmo sentido em que Copland é o compositor americano quintessencial. Penso que Elgar e Vaughan Williams representam a quintessência dos compositores ingleses. É lógico que, em certa medida, eu receba a sua influência.
P. – Em “Pythagoras on the line” utiliza o mesmo som telefónico que já havia utilizado em “Telephone & rubber band”, do segundo álbum, no qual, curiosamente, figura o tema “Pyrhagora’s trousers”…
R. – Sim, essa citação de “Telephone & rubber band” é um polirritmo no compasso de 5/4, que é o ritmo que se obtém quando se faz soar ao mesmo tempo o sinal de chamada e o sinal de “impedido”. A explicação para a presença de Pitágoras no título é porque eu sou um grande admirador dele, do que ele pensava sobre a música e das suas observações acerca das relações numéricas entre harmónicos, e das frequências específicas das notas de uma escala ou de séries harmónicas. Quando estou a escrever uma peça que é uma colecção de polirritmos, lembro-me sempre que o devo a Pitágoras.
P. – Dada as características da sua música, pode falar-se numa síntese de intuição e matemática?



R. – Mas não é sempre assim que toda a música deveria ser? [Risos]. Por mim, procuro criar esse equilíbrio. É tudo aquilo por que me esforço – tentar encontrar um equilíbrio entre as diferentes forças que existem dentro de nós e procurar racionalizá-las. Ou será melhor dizer, irracionalizá-las?…




PENGUIN CAFÉ ORCHESTRA
Union Cafe
Polygram, Distri. Polygram

UM CAFÉ DE LUXO


Muita da magia original deste grupo, cuja génese, afirma Simon Jeffes, se deve a um sonho, residia precisamente na dimensão onírica da sua música, na imprevisibilidade, na capacidade que o grupo demosntava de surpreender através de uma música difícil de catalogar, que tinha tanto de clássico como de herético. Álbuns como “Music from the Penguin Cafe”, produzido por Brian Eno, para a Obscure Records e posteriormente reeditado nas edições E. G., “Penguin Cafe Orchestra” e “Broadcasting from Home” continham este elemento de surpresa que tornava cada audição numa espécie de “puzzle” de resolução sempre diferente. Uma mistura estranha, que englobava elementos clássicos, despistagens étnicas e “pastiches” de música de câmara em registo assumidamente “naif”, em que a tecnologia de estúdio dava o toque final de diferença, com o recurso a montagens, colagens e truncagens de toda a ordem.
A partir de “Signs of Life”, porém, as coisas descambaram para o sério, como se Simon Jeffes tivesse descoberto de súbito a sua veia de grande compositor e achasse que valia a pena mostrar ao mundo que já não havia lugar para brincadeiras. Claro que não foi num ápice que as características, digamos surrealistas, da música dos Penguin Cafe se evaporaram, para em seu lugar ficarem apenas as grandes declarações eruditas. Aconteceu, porém, que esta faceta passou a figurar nos discos mais como autocitação do que como elemento criativo propriamente dito.
Nesse disco, como em “Union Cafe”, permanecem as rumbas, os tangos e outras danças localizáveis algures entre o mapa e o cabaré da imaginação, as pilhagens a folclores vários, o minimalismo saltitante das cordas e dos ritmos em sobreposição, mas tudo isto aparece de forma previsível, não admirando sequer a recorrência de alguns títulos de temas anteriores ou mesmo, como em “Pythagoras on the line”, o decalque sonoro explícito. Um pouco como baralhar de novo e voltar a dar as mesmas cartas, só que por ordem diferente.
Sintomático desta ausência de novas ideias é o facto de “Discover America”, tema que o compositor se limita a sobrepor três canções populares norte-americanas, tocadas em simultâneo, sem qualquer outra intervenção da sua parte senão de orientar o sistema, acabar por ser o maior factor de inovação num álbum que, de outro modo, se limita a polir arestas e a afirmar o primado da forma, segundo os cânones tradicionais. O que, por outro lado, representa ainda o reconhecimento das virtualidades do passado, nessa utilização de uma técnica em tudo idêntica à usada por Brian Eno, no segundo lado de “Discreet Music”. O café Oinguim tornou-se um café de luxo, onde não cabem mais as traquinices. É uma questão de nos resignarmos aos sinais exteriores de riqueza. Porque lá dentro o ambiente continua afinal a ser requintadíssimo. (7)