Pop Rock >> Quarta-Feira, 23.09.1992
MÁQUINA HUMANAS
BALANESCU QUARTET
Possessed
CD, Mute, Distri. Edisom
Alexander Balanescu é um violinista de formação clássica, conhecido sobretudo pela presença assídua em obras de Michael Nyman, como “The Draughtsman’s Contract”, “A Zed and Two Naughts”, “The Kiss and Other Movements”, “The Cook, the Thief, his Wife and her Lover” ou “Drowning by Numbers”. “Virtuose” do instrumentos (notável a sua prestação a solo no segundo lado de “Zoo Caprice”), Balanescu formou o seu próprio quarteto de cordas, com Claire Connors, no violino, Bill Hawkes, viola, e Caroline Dale, violoncelo. Um projecto que encontra paralelo nos Kronos Quartet e na execução de um reportório baseado em autores contemporâneos já consagrados ou, deste modo, elevados à condição de “clássicos”. Tal prática se, por um lado, não faz mais que prolongar a tradição do quarteto de câmara – mesmo quando, no caso dos Kronos Quartet, essa tradição radica num tipo de sensibilidade, digamos, experimental -, por outro, eleva a música rock (ou será melhor dizer “cultura”?), e alguns dos seus principais autores, à condição de “eruditos”, e reconhece a esta linguagem musical o estatuto, em termos mediáticos, da mais importante da segunda metade do século.
Os Balanescu Quartet foram um pouco mais longe nesse nivelamento, quando em “Possessed” optaram por escolher cinco temas dos Kraftwerk. A tradução da linguagem computorizada dos alemães por um quarteto de cordas “limpo” – não submetido a qualquer tipo de distorção electrónica – poderia, “a priori”, parecer uma tarefa impossível. Ao fazê-lo, ainda por cima, com sucesso, Alexander Balanescu e os seus pares assumiram que toda e qualquer matéria musical contém em si potencialidades infinitas de transformação, independentemente (e aqui radica o fundamental da questão) da forma temporal e, mais importante ainda, do contexto cultural e estético em que se insere. Só assim se pode compreender (e aceitar) o desvio de 180 graus a que foram submetidos a temática e o som futuristas dos Kraftwerk. Há em “Possessed” uma forma de provocação subtil, acentuada pela selecção de temas da banda de Düsseldorf que, de forma mais explícita, abordam a desumanização: “The Robots”, “The Model”, “Autobahn”, “Computer love” e “Pocket Calculator”, qualquer deles alusivo à máquina: o “robot”, o manequim (réplica redutora do humano a um maquinismo), o automóvel, o computador, a calculadora. Música de cãmara, supra-sumo da interiorização humanista, instrumento da ausência de emoções?
A execução instrumental corrobora e desmente, ao mesmo tempo, esta asserção. Joga-se na reprodução quase nota a nota de cada canção e, impressionante, dos efeitos electrónicos (os motores de automóvel em “Autobahn”, os “blips” da calculadora em “Pocket Calculator”) que, afinal, nunca foram secundários na música dos Kraftwerk. Ao decalque da forma junta-se noutras ocasiões o poder da sugestão e da memória: em “Autobahn”, julgamos ouvir na “fala” do violoncelo as vozes computorizadas do original; em todos os temas os sintetizadores “estão” lá. Tal perfeição apenas é possível graças ao excepcional virtuosismo dos músicos que aqui conseguem, ao nível da invenção tímbrica, uma proeza a todos os títulos notável. Sintomaticamente, é ao nível rítmico que os Balanescu Quartet não conseguem (se era essa a intenção) como é óbvio, repetir os padrões e a precisão da tecnologia digital.
Vai mais longe a ironia e o mimetismo, estético e conceptual, de “Possessed”: o “letterinh” da capa reproduz o estilo de Lissitzkyu, como acontecia com “The Man Machine”, dos Kraftwerk. Os Balanescu Quartet “possuídos” pelo espírito do outro quarteto, o alemão? Eles próprios os “robots” de que fala a canção (nas fotos da acpa há estranhos indícios…) funcionando a um nível subliminar – “the mechine men”? Já agora, refira-se que na editora do disco, a Mute, milita um lote numeroso de “industriais” e outros terroristas da electrónica… Depois, golpe final, os Miranda Sex Garden surgem nos apoios vocais de um dos três temas compostos por Balanescu, aos quais se junta uma bateria ao mais puro estilo de Glenn Branca. Andrew Poppy cruza-se com Michael Nyman, em batida marcial. Para finalizar, a última faixa é uma composição de David Byrne, “Hanging Upside Down”, nos antípodas da frieza dos alemães. Um objec to único. (8)