Pop Rock >> Quarta-Feira, 16.09.1992
MOVIMENTO PERPÉTUO
Compositora, cantora, bailarina, cineasta, coreógrafa, Meredith Monk demanda a obra de arte total, a unificação de todas as linguagens. A artista americana vem a Portugal apresentar uma das suas obras recentes, “Facing North”, na companhia de um dos membros do seu grupo vocal. No horizonte perfila-se já uma nova ópera.
Houston, Paris e Berlim tiveram já oportunidade de assistir à apresentação da mais recente ópera de Meredith Monk, intitulada “Atlas”, composta para 15 cantores e orquestra. Portugal não vai ter essa sorte e assistirá apenas à prestação em duo da cantora com Robert Een. Interpretarão, na primeira parte, “Facing North” e, na segunda, “Music for voice, keyboard and cello”, uma selecção de temas extraídos dos álbuns “Dolmen Music” (“Travelling” e “The tale”) e “Book of Days” (“Madwoman’s vision”), bem como excertos da nova ópera “Atlas”.
Meredith Monk integra a elite de cantoras norte-americanas que tiraram a voz feminina do “ghetto” das canções, a par de Shelley Hirsch, Lauren Newton e Joan La Barbara. Em 1968 fundou The House, laboratório de ensaio para as suas experiências multidisciplinares, onde a dança, o teatro e a música se interligavam de modo a criar uma rede intricada de sentidos, em que a voz humana desempenhava o papel de principal catalisador de emoções. Som, luz e movimento continuam, desde essa altura, a fazer parte de um todo, que Meredith Monk define como “teatro, no sentido mais amplo da palavra, um local onde podemos contar histórias”. A separação destes diversos elementos ocorre, segundo a autora, apenas na cultura ocidental, dominada pelo racionalismo. No seu trabalho, pelo contrário, tudo se interliga num todo orgânico, “um mosaico que forma uma entidade perceptual, emocional, espiritual e cinética o mais completa possível”.
Influenciada pelo expressionismo alemão, insensível à proeza técnica e ao elitismo vigente na dança contemporânea, Meredith Monk esteve ligada, no início dos anos 60, ao grupo Judson Church, onde procurou criar uma nova dimensão para a dança, aliando uma percepção intuitiva do movimento a concepções sociais recortadas do quotidiano, ao mesmo tempo que procurava abolir a distância entre público e “performer”. O gesto, a voz, o texto, cada um dos elementos constitutivos da obra de arte total, tornam-se, na sua obra, veículos da vida “comum”, estilizada, espelho das vivências do cidadão vulgar, poetizadas.
Explorando ao máximo as possibilidades da voz humana, Meredith Monk procura o elo comum entre todos os seres, a comunicação directa independente dos dialectos e das diferentes culturas. O grito, o murmúrio ou a imitação de sons naturais fazem parte desse discurso para-racional em que os símbolos e a vibração pura substituem a lógica e o conceito. No fundo, o que Meredith Monk procura é a religação mágica entre o corpo e o espírito, que é do que trata a religião. É essa linguagem ancestral que Monk e Robert Een procuram recriar em “Facing North”, na invocação, “através de objectos, movimentos minimais e vozes, da neve, dos ancestrais totémicos, pássaros, ursos, alces, tribos ameríndias e exploradores europeus”. O mito, depositário colectivo de todas as histórias.
DISCOGRAFIA SELECCIONADA
“DOLMEN MUSIC”, 1991, ECM
Música primordial, atemporal. Primeira obra em que Meredith Monk recorre às virtualidades do canto colectivo. Em “Dolmen Music” são exploradas as possibilidades do “uníssono, textura, contraponto e harmonia” da voz humana. De cada uma em particular a compositora extrai uma característica determinada, na criação de uma rede intricada de energias. Entre o “Glottal sound” gutural e a pura espiritualidade, as vozes do grupo entregam-se a um ritual em que o tempo se torna circular e a estrutura narrativa se confunde com o labirinto do inconsciente. “The tale” é uma sátira ao vazio linguístico, às regras semânticas e ao serviço do poder.
“DO YOU BE”, 1987, ECM
Antologia de temas extraída da peça teatral “Acts from under and above” e das óperas “Vessel”, “The Games” e “Quarry”. Segundo a terminologia da autora, “Do You Be” é um mosaico ilustrativo dos diversos registos da arte vocal, ao qual a produção de Manfred Eischer procurou emprestar o intimismo da música de câmara. A voz torna-se matéria elementar. Plasticina do espírito. Instrumento da liberdade.
“BOOK OF DAYS”, 1990, ECM
Música composta para a primeira longa metragem realizada pela autora, com uma história muito semelhante à do filme fantástico “The Navigator”, realizado pelo australiano Vincent Ward. “Book of Days” aborda o problema da relatividade e da sobreposição de diferentes níveis espácio-temporais. Entre a Idade Média e o presente, a visão da pequena Eva confunde-se com a de Meredith Monk, nessa sensação de que “tudo pode acontecer em simultâneo”. A voz atinge a máxima sublimação, conferindo à estrutura narrativa a intemporalidade e a noção de coincidência mágica entre os diversos níveis de realidade. “A História é um pensamento, a eternidade é agora.”