Cultura >> Segunda-Feira, 07.09.1992
The Chieftains Na Festa Do “Avante!”
“Há Sempre Alguém Que Resiste”
QUEM QUISER ouvir boa música, com o mínimo de condições, deve desistir de vez da Festa do “Avante!”. Os programas são apelativos mas quando se chega à hora da verdade prevalece invariavelmente o sacrifício. Assim aconteceu mais uma vez, sábado a noite, na Quinta da Atalaia, com a actuação de nome de cartaz, os irlandeses The Chieftains.
Para os incondicionais da música tradicional justificava-se à partida a deslocação. Era a oportunidade de assistir ao vivo a uma das melhores e mais representativas bandas do género. Exactamente à hora prevista, 22h00, os Chieftains deram início à função, depois de terem sido apresentados por um camarada entusiasta como os autores da banda sonora de “Barry Lyndon”. Aos primeiros acordes, os mais jovens desataram a pular e, a facção mais “hard” a berrar desalmadamente. Era a “dança”, na medida do possível, entre as dezenas de corpos que se amontoavam, inertes, na relva e na terra do palco 25 de Abril. Dançar, significava neste caso abandonar-se a uma série de convulsões, entre gritos e quedas que contribuíam para aumentar ainda mais o número de corpos prostrados.
Nas filas da frente então ouvir música era uma tarefa impossível. Não que importasse muito. Era apenas um pretexto, um som de fundo para a curtição. Para os adeptos da pedrada indiscriminada entre os Chieftains e os Guns n’ Roses não há grande diferença.
Quando, num dos temas, a banda apresentou música da Galiza e Derek Bell fez deslizar os dedos pela sua harpa num momento de maior serenidade, um grupo de jovens “hooligans” desatou a entoar cânticos futebolísticos, interrompendo a música com gritos e imprecações. Chegados a este ponto era entrar na desbunda ou desistir. Venceu a desbunda e até os Chieftains pareceram compreender isso, optando a partir dessa altura por temas mais extrovertidos que dessem azo à agitação dos corpos.
Contrastando com os pesos-pesados da assistência, a bailarina que acompanhou um par de temas executando as típicas danças irlandesas, braços pendentes ao longo do corpo erecto, pernas e pés libertos num bailado que desafiava a gravidade, mais parecia uma figurinha de caixa de música a flutuar num universo paralelo.
No final, numa concessão à materialidade terrena, apareceu em palco envergando uma minúscula mini-saia verde, provocando de imediato nos elementos mais excitáveis da multidão um urro de contentamento e aprovação.
Pelo meio, ficavam seis músicos inexcedíveis de técnica que passearam a sua classe pelos tradicionais irlandeses, a música chinesa, “drinking songs” e uma versão pouco ortodoxa de “Heartbreak Hotel”. Os Chieftains tocaram durante uma hora, com bonomia e sem fazer distinções, para os aficionados, os curiosos, os agitadores, os saltadores, ou os corpos estendidos que dormiram do princípio ao fim da sua actuação. Chama-se a isto profissionalismo. Ou doses infinitas de paciência. Aos primeiros resta a consolação de os Chieftains voltarem a Portugal no próximo ano para o IV Festival Intercéltico a realizar no Porto.
Num dos bares da Festa do “Avante!”, um comunista da velha guarda, copo na mão, voz embargada pela comoção, lembrava que “há sempre alguém que resiste”. É verdade. Cá estamos nós para o provar.