The Chieftains – “The Chieftains Actuam Na Festa Do ‘Avante!’ – O Brilho Da Esmeralda”

Cultura >> Sábado, 05.09.1992


The Chieftains Actuam Na Festa Do “Avante!”
O Brilho Da Esmeralda


Os Chieftains, como Turlough O’Carolan, Joyce, Beckett, os castelos, o whiskey Bushwills ou a cerveja Guiness, são uma instituição e um emblema da Irlanda. Actuam hoje à noite na Festa do “Avante!”. A música tradicional porta-voz da outra revolução.



De entre as trevas do obscurantismo marxista uma jóia resplandece. Coberta de poeira, sem dúvida. Maculada pela ideologia, é verdade. Mas nem por isso menos brilhante. É a Festa do “Avante!” que o Partido Comunista Português organiza todos os anos nos arredores da capital. E, convenhamos, do capital.
Este ano, o programa musical prescindiu daqueles grupos do Leste com nomes de luta repescados do imaginário bolchevique da Revolução de Outubro, centrando-se as atenções na actuação, sábado às 22h, dos irlandeses The Chieftains. Afinal a continuação de uma política de destaque dado à música tradicional desde sempre seguida pela organização, muito por “culpa” e amor à causa de Ruben Carvalho, responsável, ao longo de várias edições da Festa do “Avante!”, pela vinda a Portugal de alguns expoentes da folk como Fairport Convention, Gwendal ou, no ano passado, June Tabor, Savourna Stevenson e Boys of the Lough.
Ao contrário dos amanhãs que cantam (este ano, pela primeira vez, vão estar ausentes na festa do “Avante!”), os Chieftains não cantam, sendo uma banda totalmente instrumental. Considerados uma lenda viva da Irlanda, a banda personifica a flâmula que brilha no interior da “terra da ira” ou “Ilha de esmeralda”, numa alusão ao verde da terra e, a nível mais profundo, à gema que esmaltava a fronte de Lúcifer, o anjo decaído que, reza uma lenda obscura, terá arrancado a ilha ao continente, na tentativa de a fazer escapar ao amplexo de pedra do catolicismo. Irlanda, transformada em terra de exílio. Lúcifer, antigo “senhor da luz”, tornado “senhor da ira”. Entendam-se o espírito e os símbolos que animam a lenda. Os Chieftains, banda esmeraldina.

Tradicional Popular

Nascidos em Dublin no seio da associação musical Ceoltori Cualann, dirigida pelo compositor e cravista Sean O’ Riada, os Chieftains desempenham hoje o papel de embaixadores da Irlanda no mundo, representando a sua música e danças, os seus mitos e, não menos importante, o seu whiskey, que deve ser bebido sempre, e a sua Guiness, que também deve ser bebida sempre, mas morna, e na versão “ale”.
Escutar as lamentações e o grito de guerra da “uillean pipes” de Paddy Moloney, as cintilações aquáticas da harpa de Derek Bell, as brisas evocativas do “tin whistle” e da flauta de Matt Molloy, as convulsões xamânicas do violino de Sean Keane ou o batimento orgânico dos ossos e do “bodhran” manipulados por Kevin Conneff, mesmo entre a poeirada da Quinta da Atalaia, na Amora, Seixal, é aceder ao paraíso e à radiação celta. E a oportunidade rara de transcender a História e o materialismo dialéctico, em pelno palco 25 de Abril.
A questão, de resto, não é de hoje e serve de pretexto original a uma boa discussão, senão mesmo ao debate ideológico: é a música tradicional, por essência, de esquerda ou de direita? Quer dizer, fascista ou comunista? A designação “tradicional” fornece bons argumentos aos defensores da primeira hipótese. Por isso a outra facção, preocupada, prefere utilizar o termo “música popular”. Evidentemente nas cidades a história escreve-se mais a vermelho e a música folk teve e tem, em músicos como Pete Seeger, Ewan MacColl, Roy Bailey, Leo Rosselson ou Peter Bellamy, acérrimos defensores da luta de classes e dos direitos do proletariado. Mas no meio das raízes étnicas, além da foice, quem agita o martelo?
Logo a seguir ao concerto dos Chieftains conviria então meditar, realizar conferências e colóquios sobre esta problemática, quiçá submete-la à consideração das cúpulas do partido de modo a, no futuro, evitar equívocos que poderão ser perniciosos à revolução, sempre na prdem do dia.

Folk Dialéctica

Límpido e isento de equívocos tem sido o percurso discográfico dos Chieftains, ao longo de uma carreira de 25 anos (25 anos, palco 25 de Abril, estarão afinal os Chieftains prestes a tornarem-se militantes de honra do PCP?) embora a fase recente mostre indícios de alguma indefinição, em parte causada pela crescente aceitação internacional (do grupo e da música irlandesa em geral) e o consequente convívio com as grandes estrelas do Rock.
“The Chieftains 5”, “Bonaparte’s Retreat” (com Dolores Keane), “Boil the Breakfast Early”, “The Chieftains 10”, “Celtic Wedding” (contendo na totalidade temas de música bretã) e “Celebration” (celebração, de aniversário da banda e da cultura celta, com a participação de Van Morrison e dos galegos Milladoiro) são obras-primas no modo como recuperam e traduzem a tradição musical irlandesa, servidas por intérpretes magistrais. Ao seu lado, discos como “The Year of the French” e “Ballad of the Irish Horse”, compostos para séries de TV, ou o acalmado “The Bells of Dublin”, no qual participam os convidados Elvis Costello, Marianne Faithfull, Nancy Criffith, Rickie Lee Jones e Jackson Browne, surgem como episódios menores de uma saga interminável pelo oceano onde o lendário Brendan e o “Ulysses” de Joyce navegaram. No fundo, uma viagem dialéctica.
Marx, se fosse vivo, havia de gostar.

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