Pop Rock >> Quarta-Feira, 15.07.1992
O BAR DA ÚLTIMA ESPERANÇA
MARY COUGHLAN
Sentimental Killer
LP / CD East West, distri. Warner Music
Sete anos e quatro álbuns bastaram a Mary Coughlan para se afirmar como uma das maiores intérpretes actuais da música popular. E é sobretudo isso que esta irlandesa, herdeira da tradição de Billie Holiday, é: uma intérprete, aquela que dá voz aos sentimentos e desvenda os mistérios que uma canção pode encerrar. Depois de “Tired and Emotional”, “Under the Influence” e o magistral “Uncertain Pleasures”, “Sentimental Killer” volta a dar todo o sentido à máxima perfilhada pela cantora: “A qualidade intrínseca das canções tem mais importância do que qualquer estilo particular.”
Cantar é, neste caso, ser actriz de uma peça multifacetada e de múltiplos enredos, moldar-se e enlear-se em cada canção. Interiorizá-la. Dar-lhe uma forma diferente, específica, sem trair a intenção do compositor (não é regra), mas que se adeque à sensibilidade do intérprete. Potenciá-la ao máximo. Eis onde reside a diferença entre o artista e o mero tradutor. Mary Coughlan sente uma particular atracção pelos temas melancólicos. Pelo lado sombreado de uma melodia. Pela noite, em todos os seus matizes, dos calores tórridos aos grandes terrores. É sempre, ou quase sempre, essa atracção que determina a escolha das canções. E em todas elas, o jogo resulta luminoso. E também nós nos acolhemos ao conforto das sombras, embalados pela voz, transportados não se sabe por nem para onde, até ao limite da noite. Ou da manhã. Como acontece quando escutamos Marianne Faithfull, Mathilde Santing, Billie Holiday. Do cabaré brechtiano à “country” crepuscular, do “gospel” de um Francisco de Assis sublimado ao regresso às origens irlandesas de “Love in the shadows” e “Sentimental Killer”; dos amores proibidos de Marc Almond (“There’s a bed”); das brumas interiores de Jacques Brel (“Hearts”) até ao bar da última esperança de “Just a friend of mine”, entre um piano, uma garrafa e uma cortina de fumo, em todas as vezes Mary Coughlan se transfigura e transfigura, no modo como coloca a voz ao serviço das dores e da inspiração alheias que, no fim, acabam por ser as suas. Em síntese derradeira que a cantora define como a sua “biografia musical”. Diferentemente de “Under the Influence” e “Uncertain Pleasures”, que permanecem como as suas duas obras maiores, “Sentimental Killer” desenrola-se num conjunto de interpretações em que prevalece se não a uniformidade de registos, pelo menos a unidade de ambiente. Como se a cantora quisesse condensar o delírio amoroso, no fim sempre traduzido em ganhos e perdas, num imenso golpe de asa, numa vastidão que só a melancolia permite habitar. Essa habitação onde cada um de nós foi ou será alguma vez morador único. A curar-se das feridas para mais adiante se voltar a ferir nos espinhos da mesma rosa. (8)