Arquivo mensal: Agosto 2020

Santana – “Milagro”

Pop Rock >> Quarta-Feira, 24.06.1992


SANTANA
Milagro
LP / CD Polydor, distri. Polygram

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Santana arrasta-se pelas vielas do misticismo como um pedinte a esmolar a inspiração que não vem. Num disco pródigo em milagres, este nunca se chega a realizar. Mas há outros. Como é possível, por exemplo, que um disco que reúne 29 convidados, entre sul-americanos mais ou menos anónimos, Larry Graham e Miles Davis, soar como uma amálgama incaracterística de “latino soul” requentado, sem ponta por onde se lhe pegue e uma única canção que se consiga salvar do lodo da mediocridade? Milagre! Como é possível, por outro lado, que a tortura se estenda por quase 70 minutos, na versão em vinilo? Milagre! O único milagre que traz algumas compensações espirituais é curto. Dura pouco mais de um minuto, chama-se “A Dios” e junta, por breves instantes, o trompete de Miles Davis com uma gravação de John Coltrane. O que prova mais uma vez que Santanas da casa não fazem milagres. (3)

Ryuichi Sakamoto – “Heartbeat”

Pop Rock >> Quarta-Feira, 24.06.1992


“JAPO BEAT”

RYUICHI SAKAMOTO
Heartbeat
LP / CD Virgin, distri. Edisom



O Japão está definitivamente na moda. E já não nos estamos a referir sequer a Yamamoto, Kenzo ou Kawakubo. Ryuichi Sakamoto, então, está ultra-“in”. Não para quieto e quando para é quase sempre em Nova Iorque, num percurso que tem algumas semelhanças com o do seu compatriota Seigen Ono. Este começou por ser “new ager” e acabou cliente assíduo da Knitting Factory. Sakamoto abandonou a versão nipónica dos Kraftwerk que eram os Yellow Magic Orchestra para vir dar à música de dança, com discos entre uma e outra coisa pelo meio.
“Heartbeat” vai fazer furor nas discotecas. Tem todos os ingredientes para tal: um “beat” metronómico com desvios de pormenor de maneira a não tornar a coisa demasiado óbvia e até, em “Rap the world”, aquela batida básica, actualmente muito em voga no género (“tum tum rtumtumtum”), que a Rádio Energia passa durante 24 horas na sua programação. Há dois instrumentais para criar ambiente, “Song lines” e “Nuages”, “samples” de Jimi Hendrix, um registo residual da voz de John Cage e os convidados certos: o DJ dos Dee-Lite, Dmitry, John Lurie (assina o ponto na techno-valsa “Lulu”), Arto Lindsay, Youssou N’Dour (num dos melhores temas de “fusão”, “Borom Gal”), David Sylvian, Ingrid Chavez (estes dois ouviram-se, gravaram juntos e, passados dois meses, casaram-se; depois da lua-de-mel, Sylvian tenciona ainda produzir um disco de Scott Walker) e Bill Frissell.
Entre as múltiplas actividades a que nos últimos tempos se tem dedicado, como compositor, produtor e actor – bandas sonoras para filmes de Pedro Almodovar e Peter Kominsky, tema de abertura dos Jogos Olímpicos de Barcelona, produção de alguns temas dos Aztec Camera, actor numa série da televisão americana, actor e compositor no próximo filme de Oshima, “Hollywood Zen” -, Ryuichi Sakamoto decidiu-se aqui por um disco que ele próprio classifica como “optimista” e “positivo”, numa fuga em frente às desolações da anterior banda sonora, “The Sheltering Sky”. Não há dúvida que o conseguiu, num disco que está longe do brilhantismo de alguns dos seus trabalhos anteriores. (7)

Kevin Ayers – “The Confessions Of Dr. Dream”

Pop Rock >> Quarta-Feira, 24.06.1992


SONHOS NO FUNDO DE UM COPO

KEVIN AYERS
The Confessions Of Dr. Dream
CD BGO, distri. Variodisc



Já há alguns meses que o disco anda perdido pelos escaparates nacionais sem que ninguém lhe dê importância. Espera-se que a importação em maiores quantidades do dito, agora verificada, e a chamada de atenção deste textozito contribuam para alterar a situação. Até porque muitos terão escutado o mais recente álbum do autor, “Still Life with Guitar”, em aguçado a curiosidade em relação a outros trabalhos. Estas confissões – disco número cinco (1974) da discografia de Kevin Ayers – são um bom começo. Bem como os primeiros, também já disponíveis entre nós há algum tempo: “Joy of a Toy”, “Shooting at the Moon” (obra superlativa, com os Whole World) e “Whatevershebringswesin”, só faltando “Bananamour” para ficar completa a edição em CD dos cinco álbuns correspondentes à primeira e melhor fase do ex-Soft Machine e actual turista residente nas costas ensolaradas do Mediterrâneo. “The Confessions of Dr. Dream” é um pouco (sobretudo no longo tema com o mesmo título que no vinil ocupa a quase totalidade do segundo lado) a “bad trip” resultante da “overdose” – sobretudo de álcool – a que Ayers se submeteu com bonomia, na sua versão muito pessoal do que deveria ter sido o psicadelismo: uma festa perpétua de sol, champanhe e “confetti”. Neste tema, ao qual dificilmente poderemos chamar canção, Kevin Ayers opera no sentido inverso ao dos primeiros álbuns, em direcção ao pesadelo e a uma “irreversible neural damage” que transforma o onírico em paranoia sem saída diagnosticada pelo sádico “Doutor Sonho”. Electrónica cerrada e repetitiva, um ritmo obsessivo, um tom geral de angústica onde a voz da convidada, “deusa da lua” e das trevas, Nico, se movimenta com o à-vontade de um peixe monstruoso nas profundidades oceânicas contribuem para a criação de climaxes sucessivos naquela que fica para a posteridade como a composição mais sofisticada de todo o repositório de fábulas avinhadas do autor de “Champagne cowboy blues”. Com a participação, além de Nico, de Rupert Hine, Mike Giles (King Crimson da formação inicial), John Gustafson (Quatermass), Mike Ratledge (Soft Machine) e Steve Nye (futuro membro dos Penguin Café Orchestra).
As outras canções estão bem mais de acordo com o mundo habitual deste excêntrico “bom vivant” que alia o humor “nonsense”, o “dada” de salão e a fobia das bananas. Sem esquecer os “blues”, à sua maneira, de um inglês afectado, de voz barítono, inevitavelmente tocado pelo génio e pelos “liquors”: “Didn’t feel lonely til I though of you”, “Ballbearing blues”. O humor torna-se mais negro em “Irt begins with a blessing… but it ends with a curse” – surreal, sombrio, com Ayers a cantar como um “zombie” saído de mais uma ressaca psico-alucinante de alcaloides. E depois, que raio, ele tem razão, em “See you later”, quando se interroga “Quando as pessoas que encontro na rua me dizem ‘bem, vemo-nos depois!…’, eu pergunto-me: como é que elas me podem ver depois, se não me conseguem ver agora?” Faz todo o sentido. Vai mais um copo, Kevin? (9)