Pop Rock >> Quarta-Feira, 24.06.1992
SONHOS NO FUNDO DE UM COPO
KEVIN AYERS
The Confessions Of Dr. Dream
CD BGO, distri. Variodisc
Já há alguns meses que o disco anda perdido pelos escaparates nacionais sem que ninguém lhe dê importância. Espera-se que a importação em maiores quantidades do dito, agora verificada, e a chamada de atenção deste textozito contribuam para alterar a situação. Até porque muitos terão escutado o mais recente álbum do autor, “Still Life with Guitar”, em aguçado a curiosidade em relação a outros trabalhos. Estas confissões – disco número cinco (1974) da discografia de Kevin Ayers – são um bom começo. Bem como os primeiros, também já disponíveis entre nós há algum tempo: “Joy of a Toy”, “Shooting at the Moon” (obra superlativa, com os Whole World) e “Whatevershebringswesin”, só faltando “Bananamour” para ficar completa a edição em CD dos cinco álbuns correspondentes à primeira e melhor fase do ex-Soft Machine e actual turista residente nas costas ensolaradas do Mediterrâneo. “The Confessions of Dr. Dream” é um pouco (sobretudo no longo tema com o mesmo título que no vinil ocupa a quase totalidade do segundo lado) a “bad trip” resultante da “overdose” – sobretudo de álcool – a que Ayers se submeteu com bonomia, na sua versão muito pessoal do que deveria ter sido o psicadelismo: uma festa perpétua de sol, champanhe e “confetti”. Neste tema, ao qual dificilmente poderemos chamar canção, Kevin Ayers opera no sentido inverso ao dos primeiros álbuns, em direcção ao pesadelo e a uma “irreversible neural damage” que transforma o onírico em paranoia sem saída diagnosticada pelo sádico “Doutor Sonho”. Electrónica cerrada e repetitiva, um ritmo obsessivo, um tom geral de angústica onde a voz da convidada, “deusa da lua” e das trevas, Nico, se movimenta com o à-vontade de um peixe monstruoso nas profundidades oceânicas contribuem para a criação de climaxes sucessivos naquela que fica para a posteridade como a composição mais sofisticada de todo o repositório de fábulas avinhadas do autor de “Champagne cowboy blues”. Com a participação, além de Nico, de Rupert Hine, Mike Giles (King Crimson da formação inicial), John Gustafson (Quatermass), Mike Ratledge (Soft Machine) e Steve Nye (futuro membro dos Penguin Café Orchestra).
As outras canções estão bem mais de acordo com o mundo habitual deste excêntrico “bom vivant” que alia o humor “nonsense”, o “dada” de salão e a fobia das bananas. Sem esquecer os “blues”, à sua maneira, de um inglês afectado, de voz barítono, inevitavelmente tocado pelo génio e pelos “liquors”: “Didn’t feel lonely til I though of you”, “Ballbearing blues”. O humor torna-se mais negro em “Irt begins with a blessing… but it ends with a curse” – surreal, sombrio, com Ayers a cantar como um “zombie” saído de mais uma ressaca psico-alucinante de alcaloides. E depois, que raio, ele tem razão, em “See you later”, quando se interroga “Quando as pessoas que encontro na rua me dizem ‘bem, vemo-nos depois!…’, eu pergunto-me: como é que elas me podem ver depois, se não me conseguem ver agora?” Faz todo o sentido. Vai mais um copo, Kevin? (9)