Mari Boine Persen – “’Pela Terra E Pela Gente’ Em Belém – Mari Boine Persen Toca No Molhado”

Cultura >> Terça-Feira, 16.06.1992


“Pela Terra E Pela Gente” Em Belém
Mari Boine Persen Toca No Molhado


Podia ter sido uma noite em cheio. Foi quase um desastre. A chuva que caiu durante a tarde estragou tudo. S. Pedro não gosta de música tradicional.

Não há música que resista ao que aconteceu domingo à noite no relvado em Belém, Lisboa. Nem música, nem paciência. Foi antes do concerto “Pela Terra e pela Gente”, uma organização conjunta da Etnia e da Oikos, que a calamidade aconteceu. Estava previsto começar às 21h00 mas a chuva que caiu durante a tarde encarregou-se de destruir as ilusões. No Porto, na véspera, pela mesma razão, nem chegou a haver concerto. Mário Alves, da Etnia, visivelmente nervoso, levava as mãos à cabeça e queixava-se das condições atmosféricas: “Parece que nos rogaram uma praga”. Cabos encharcados, microfones avariados, não havia aparelhómetro eléctrico que não desse de si.
Era a vingança da natureza contra a técnica, num concerto marcado desde o início pelas contrariedades. Cerca das 22h30, hora e meia depois da hora prevista, a apresentadora de serviço anunciava, numa voz estridente de trompete, suficiente para romper mais um bocadinho da camada de ozono, o primeiro grupo da noite, os portuenses Toque de Caixa, aproveitando para proferir inanidades do tipo “a música pode ter o sabor e o paladar da festa”. Antes acontecera uma largada de balões e, de tarde, uma marcha e uma caravana ecológica. É bom fazerem-se estas marchas e caravanas. Fizessem-se outras por esse mundo fora a ver se o problema ambiental não se resolvia num instante.

Não Há Terra Que Resista

A música começou mal, sem “sabor nem paladar a festa”. Com os Toque de Caixa, versão “Vai de Roda” dos pequeninos (alguns músicos dividem-se pelas duas bandas) que, mal servidos por condições sonoras deploráveis conseguiram mesmo assim ser ainda piores que o som. Tocaram tradicionais portugueses e assassinaram outro, irlandês – com muito cuidado para não se enganarem – e explicaram algunstemas. De forma sucinta mas bastante clara: “um bolero é um bolero”; “’Lama grande’ é inspirado num lugar ali prós lados…”. A organização, numa atitude de louvar, fez-lhes sinal para se apressarem, até porque a hora já ia adiantada e a paciência ameaçava esgotar-se. Eles, embora contrafeitos – “ficávamos a tocar aqui toda a noite” – lá se retiraram, a toque de caixa. Com música desta não há Terra nem gente que resista. A partir daqui foi sempre a despachar. 20 minutos para cada grupo, numa tentativa contra-relógio de conseguir que a estrela da noite e da Lapónia, Mari Boine Persen, tocasse antes das cinco da manhã.
Vieram a seguir os Caliche, do Chile. Não adiantaram (até atrasaram) nada aos “clichés” conhecidos da música dos Andes. Flautas de Pã, aquele tema de que ninguém recorda o nome (assim: “turiruriru tu turiruru”) mas que não sai da cabeça, tudo junto, mais o adiantado da hora, irritaram enormemente quem era suposto ter de levantar-se na manhã seguinte para trabalhar e não desistia de ver a lapona (é assim que se diz?). Rápido, os seguintes!

Estóicos

Os seguintes fizeram esquecer todas as infelicidades da noite. Diely Seckou e a mulher, Ramata Kouyaté, acompanhados de dois fabulosos percussionistas, Lansine Kouyaté (tocou com Salif Keita) e Djeli Moussa Cissoko (faz parte do grupo de Mory Kanté, integrou os Toure Kunda) trouxeram a África a Belém. Música hipnótica, calorosa, elemental. As vozes de vento entrelaçando-se nas madeiras em vibração do balafão (xilofone africano), no ritmo riquíssimo de pormenores contrapontísticos, de fazer corar o conceptualismo dos minimais repetitivos. Seckou e Ramata fizeram mais pela terra do que quaisquer palavras. Não é a gramática, é a sintonia, a simpatia, a consonância.
Faltavam quinze minutos para a uma da manhã, quando Mari Boine Persen arribou ao palco e era já muito o cansaço das escassas dezenas de resistentes que, a pé firme ou sentados na relva, aguentaram, estóicos, a mensagem vinda da Lapónia. Acompanhada por um baixo eléctrico, um guitarrista que a dada altura resolveu ser Jimi Hendrix, uma flauta e percussões variadas, Mari Boine procurou, com relativo sucesso, recriar os ambientes carregados de mistério do álbum “Gula Gula”. Mas também nela o cansaço era notório. E a desmotivação de actuar para uma plateia tão reduzida. A voz esteve mais apagada que no disco, as tonalidades sombrias da maior parte dos temas também não ajudaram a levantar os ânimos. Todos queriam voltar para casa o mais depressa possível. Mari Boine despediu-se, agradeceu a quantos permaneceram até ao fim e deste modo se esfumou o que poderia ter sido uma noite em cheio. Não o quis S. Pedro, sab-se lá porque carga de água.

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