Buffy St.-Marie – “Buffy St.-Marie, Que Esteve Em Portugal A Promover O Seu Álbum Mais Recente, Ao PÚBLICO – ‘Que Havemos De Fazer Com A Verdade?'” (entrevista)

Cultura >> Quarta-Feira, 06.05.1992


Buffy St.-Marie, Que Esteve Em Portugal A Promover O Seu Álbum Mais Recente, Ao PÚBLICO
“Que Havemos De Fazer Com A Verdade?”


Nos anos 60 lutava-se por ideais e defendiam-se as minorias. Buffy St.-Marie, 51 anos de idade, índia de nascimento, da tribo dos Cree, esteve sempre nas fileiras da frente. Hoje, como nos tempos de “Soldier Blue” e “Universal Soldier” continua a lutar por soluções concretas para problemas actuais. Os índios, diz, são a consciência viva do planeta. E os “hippies” uma geração nutrida a café. Durante 15 anos não gravou qualquer disco, para se dedicar à educação de um filho. “Coincidence and Other Likely Stories” assinala o seu regresso.



Sente-se no discurso e na obra de Buffy St.-Marie o orgulho das origens índias e a vontade de pôr o dedo nas feridas da sociedade. De forma subtil, não-violenta, no álbum recente “Coincidence and Other Likely Stories”, ou não tivesse ela feito parte do movimento “flower-power” dos anos 60. É coerente no que diz e no que faz. Sofreu os efeitos da censura, por se ter recusado a alinhar nos esquemas da indústria musical. Hoje vive como quer, no Hawai, viaja pelo mundo e continua a defender a causa índia. De mini-saia justa e flor amarela no cabelo, parece ter vencido a derradeira batalha – contra o tempo.
PÚBLICO – “Soldier Blue” foi a canção que há 21 anos lançou a sua carreira em Portugal…
BUFFY ST.-MARIE – A sério? É a primeira pessoa em Portugal que menciona essa canção. Voltei a regrava-la há duias semanas.
P. – Para inclusão num novo álbum?
R. – Não sei. É provável que apareça no lado B de um single.
P. – À distância de todos estes anos “Soldier Blue” continua a ser pertinente?
R. – É uma boa canção para os dias de hoje. Quando a escrevi, as pessoas não faziam ideia do que se tratava. Não estavam conscientes dos problemas do meio ambiente. “Soldier Blue” dizia qualquer coisa como “este é o meu país”, não no sentido de “este é o meu estado público” ”as de “esta é a minha terra-mãe”. Hoje, volvidos 25 anos, as pessoas compreendem o conceito e a maneira de ver índia.
P. – Em que altura tomou consciência da situação concreta dos índios na América do Norte?
R. – Nasci no Canadá, no seio do povo Cree. Depois fui adoptada e cresci nos Estados Unidos. Na escola disseram-me que não havia índios, que tinham morrido todos e estavam em museus, ao lado dos dinossauros. A minha mãe, que era meia-índia explicou-me que não era assim e que o que se via nos filmes e lia nos livros não era verdadeiro. Nos últimos anos da minha adolescência voltei a juntar-me à minha família Cree no Canadá.
P. – Quais são os resultados palpáveis, concretos da sua luta. Encontraram-se algumas soluções?
R. – Houve coisas que melhoraram e outras que pioraram. Foi mau o facto de o movimento dos índios americanos ter sido “assassinado”. Mas houve coisas muito positivas. Por exemplo: o dinheiro ganho no início de carreira serviu para a criação de fundações escolares que permitiram ao povo índio a frequência de estudos superiores. Hoje há na América advogados, médicos, professores índios que atingiram o topo das respectivas profissões e que são muito bons no que fazem. Antes era difícil encontrar um índio com um curso superior, saído da reserva para a Universidade. Há quem trabalhe em planos de ordenamento do território ou na Cadillac sem que isso implique perder o contacto com a reserva. São pessoas verdadeiramente biculturais.
P. – Hoje fala-se dos curdos, dos palestinianos e dos croatas. Ninguém fala dos índios…
R. – No Canadá fala-se. Para mim é mais importante resolver um problema do que dar-lhe apenas publicidade. O povo branco, que tem nas mãos o poder industrial, está a tomar consciência da questão ambiental. Se os brancos não se consciencializarem deste problema o meio-ambiente morrerá. Aos índios não basta saber que o planeta está a morrer. Na América do Sul, se os brancos estiverem do nosso lado ainda há “chances”.

Protectores Da Terra

P. – Em duas canções do seu último álbum refere-se à extracção de urânio em território índio e aos seus efeitos nocivos. Pode pormenorizar?
R. – É o mesmo problema que o de há cem anos, com a corrida ao ouro”. Só que desta vez é o urânio. O problema está em que o urânio se encontra em terra índia – como então o ouro – e as companhias de Energia instalam-se perto destas terras, transformam o minério e atiram as sobras para o solo e para os rios. Os próprios brancos que vivem junto à foz desconhecem que as águas estão contaminadas. Mas nós índios somos testemunhas e sentimos a responsabilidade de avisar. As companhias procuram manter as pessoas desinformadas mas nós, nós sabemos. Nos últimos dois, três anos, tem sido importante o trabalho de gente como Sting a alertar sobre as florestas de chuva na Amazónia, ou Peter Gabriel, capaz de alertar a opinião pública. É necessário que se compreenda que os índios não são apenas personagens poéticas, engraçadas. Nós estamos de facto a proteger a Terra. Nos anos 60 os turistas tiravam-nos fotografias, diziam “não têm tanta graça?” e faziam “wuhwuhwuhwuh” com a boca. Éramos uma atracção turística.
P. – “The Priests of the Golden Bull” é quase um manifesto, composto de forma subtil, quase hipnótica…
R. – Há nele inocência. A canção poderia ter sido escrita de outra maneira, com raiva. Mas não era esse o meu estado de espírito quando sussurrei as palavras ao microfone do computador, em casa – o disco foitodo gravado em minha casa. Nesse momento sentia-me quase como uma secretária que nunca tivesse ouvido falar antes de todos estes problemas. Uma pessoa totalmente “naif”.
P. – Considera-se uma cantora de protesto, como Dylan ou Joan Baez, nos anos 60?
R. – Considero-me um escritora de canções. Joan Baez – que era uma cantora folk – e Dylan cantavam sobre condições desumanas. Foram um bom exemplo para mim. Ensinaram-me a ter a coragem de cantar e dizer as coisas exactamente como eu as via. As canções folk são canções de amor sobre pessoas que se apartam ou que se encontram. Permanecem durante centenas de anos. Mas continuam a ser relevantes as canções de protesto político, do estilo “os senhores da guerra estão a destruir as nossas vidas”.

“Hippies” De Cafeína

P. – Toda a sua postura – vejo-a à minha frente com uma flor no cabelo -, todo o seu discurso, recordam a geração “hippy”. Sente-se ainda parte dela?
R. – A flor é do Hawai [risos]. Penso que foi uma geração mal retratada…
P. – … o sonho acabou em pesadelo, com o concerto dos Stones em Altamont, com violência…
R. – Acabou antes. Isso é a história popular. Eu vi o que aconteceu.
P. – Conte-nos então o que se passou…
R. – Penso que não houve sequer uma geração “hippy” mas uma “geração dos cafés”. Tudo evoluiu a partir da diferença entre a cafeína, o álcool e as drogas duras. Uma diferença de drogas determinou todo o processo. O início dos anos 60, quando a música era realmente criativa, foi um verdadeiro movimento estudantil centrado em volta dos cafés. Com cafeína. De pessoas que falavam e sabiam ouvir as outras. Entretanto John e Robert Kennedy foram mortos, Malcolm X e Luther King foram mortos. Os cafés passaram de súbito a ser sobrecarregados com taxas e a terem de fechar. Quando reabriram tiveram de obter licença de venda de álcool se queriam sobreviver. A partir desse momento a cafeína foi substituída pelo álcool. O álcool anestesiou o movimento estudantil.
P. – De quem é a culpa, além do álcool?
R. – Da administração de Lyndon Johnson, que tinha terror de não conseguir controlar a mente dos estudantes.
P. – Durante o mandato do presidente Johnson chegou a ter problema com a censura.
R. – Os homens da rádio disseram-me que sim. Receberam cartas da Casa Branca a encorajá-los a suprimir a minha música nas suas estações. Nessa época não cheguei a ter conhecimento do facto. Houve quem, na rádio, me tivesse contado o episódio somente 10 anos depois…
P. – Entretanto as coisas mudaram para si? Ou continua a considerar-se uma “outsider” do sistema?
R. – Sim… mas não posso culpar Lyndon Johnson por isso [risos]. Fui ou era considerada uma “outsider” em primeiro lugar porque era mulher, em segundo porque não tinha um empresário influente e em terceiro porque não bebia. A maior parte dos contratos, nessa época, eram assinados nos bares, com um copo na mão. Sempre levei um estilo de vida diferente. Nunca pensei que conseguiria integrar-me no “show business”. Limitava-me a actuar em Nova Iorque e não passava semanas a vaguear pelas “parties” na casa de um e de outro. Preferi sempre gozar a vida à minha maneira. Se estava na Austrália, actuava em Sidney e depois ia tocar para os aborígenes. Na Escandinávia, a mesma coisa. Ia a Oslo ou Estocolmo e depois desaparecia para Norte, entre os “sammi”.
P. – Mas vive da indústria. É ela que lhe dá dinheiro…
R. – Sim, mas não tenho propriamente o mesmo estilo de vida de Madonna ou de Debbie Harry… Não quero com isto dizer que elas não são boas no que fazem, mas sim que não levam a mesma vida dupla que eu, que vivo no Hawai e no mundo do espectáculo ao mesmo tempo. Sou índia e nunca deixei de actuar nas reservas, mesmo durante os quinze anos que estive sem gravar, para me dedicar à educação do meu filho Paul, nascido em 76. Também nunca deixei de dar concertos em todo o mundo para a UNICEF, em Tóquio, Amesterdão, Paris, Roma, etc. Ao lado de pessoas como o Marlon Brando, o Peter Ustinov ou o Danny Kaye, e de “troupes” de dançarinos africanos, do Bali, de Burma… Estou entre o étnico e a pop. É assim que eu gosto.

Os Verdadeiros Culpados

P. – Porque motivo ofereceu uma canção “Up Where We Belong”, de enormes potencialidades comerciais, a Joe Cocker e Jennifer Warnes em vez de a cantar?
R. – Estou no “show business” apenas porque sou uma escritora de canções. Quando comecei a cantar não o fazia muito bem. Então só tinha as canções que achava que diziam alguma coisa e contentava-me que outros as cantassem. Não vim de LA ou de Nova Iorque, não era como a Judy Collins cujo pai era músico, ou a Joan Baez que era professora de liceu. O meu pai era mecânico. Eu vim de lado nenhum, não conhecia ninguém, nenhum músico. Não tinha quaisquer ligações com os colégios ou com o mundo da música. Era uma virgem especada num salão de baile, a tocar guitarra, à espera que alguém quisesse cantar as minhas canções. Acabei por ter sucesso. Foi só por alturas do meu quinto ou sexto álbum que comecei a cantar melhor e a ouvir-me a mim própria.
P. – O que a mantém acordada?
R. – O café [risos]. E as canções. Às vezes, quando alguma coisa me intriga, acordo a meio da noite, acendo a luz, ligo o gravador e desato a cantar. Isso acorda-me. Encontrar soluções mantém-me acordada.
P. – Como definiria na generalidade “Coincidence and Other Likely Stories”?
R. – É um disco com três tipos de canções: um primeiro grupo sobre estar-se apaixonado, como “Emma Lee”, um segundo grupo, de canções nativas, como “Starwalker”, triunfantes e jubilosas à maneira da cultura que retratam, e um terceiro, de canções que trazem informação nova, como “The Big Ones Get Away”, “Fallen Angels” ou “Desinformation” em que no fundo tento fazer o mesmo que nos anos 60 com “Soldier Blue” ou “The Universal Soldier” – sintetizar aquilo que toda a gente sente quando caminha pelas ruas, seja em que lugar for, mas ninguém se atreve a dizer. Em “The Universal Soldier” perguntava: “Quem é o responsável pela guerra?”. Vi no aeroporto soldados de uniforme regressarem feridos e as autoridades dizerem que não havia guerra nenhuma no Vietname. Dirigi-me aos soldados e fiz-lhes a mesma pergunta: “Quem é o responsável pela guerra”? Os soldados são os culpados? De certo modo, sim. Os generais que os comandam? Até certo ponto, sim. Mas quem é o verdadeiro culpado que põe alguém atrás ou à frente de uma espingarda? São os políticos. E quem é que vota nos políticos? Percebe o que quero dizer?… Tudo começa com a responsabilidade individual de cada um. Vivemos de novo um tempo em que se discute e se fala dos problemas. E a pergunta principal é: “Que havemos de fazer com a verdade, quando o sistema está corrupto”?

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