Gilberto Gil – “Gilberto Gil, Que Promove Um Novo Disco Em Portugal, Ao PÚBLICO – ‘O Mundo É Grande Porque a Terra É Pequena'”

Cultura >> Quinta-Feira, 26.03.1992


Gilberto Gil, Que Promove Um Novo Disco Em Portugal, Ao PÚBLICO
“O Mundo É Grande Porque a Terra É Pequena”


O novo disco de Gilberto Gil, “Parabolic”, assinala o regresso do compositor brasileiro às origens. Como se o tropicalismo entrasse de cara lavada no novo mundo, um “mundo grande porque a Terra se tornou pequena”, filtrado pela tecnologia e com o Apocalipse no horizonte. Um mundo em que a mulata Madalena é a antena que liga a terra a o céu.



Gil entusiasma-se e gesticula ao dissertar com igual facilidade sobre o fim da História, os índios Xingu ou os novos artistas “cyber”, como lhes chama, produzidos pela máquina industrial. Não acredita muito no futuro do Brasil mas fez questão de lembrar aos mais jovens, num espectáculo gratuito em Copacabana, os bons velhos tempos de confraternização “hippie”. Gilberto Gil é um humanista, para quem a História não pode ser um capítulo encerrado. Esteve em Portugal para promover o seu mais recente álbum, “Parabolic”. O PÚBLICO falou com ele e aprendeu como fazer uma parabólica de vime.
PÚBLICO – “Parabolic” começa por intrigar pela capa, um cesto transformado em antena parabólica. A junção do primitivo com a tecnologia…
GILBERTO GIL – A ideai é manifestar um sentimento de compromisso com a realidade factual, a minha realidade num determinado momento. Quando as sociedades tradicionais que vigoraram até ao início da II Guerra Mundial, até à descoberta da relatividade, da rádio e da televisão, transitaram para um mundo ainda pouco conhecido, pouco explorado, de novas situações tecnológicas.
P. – Um conceito presente no tema “Sonho”, que aborda pela ironia o lado demagógico de certo discurso ecológico, tão em voga nos tempos actuais…
R. – Não defendo a ideia construtivista de apresentar idealizações, modelos de sociedade, essas coisas todas. Antes o mundo em pequeno porque a Terra era grande. Hoje o mundo é grande porque a Terra é pequena, do tamanho de uma antena parabólica. O cesto, exemplo artesanal da cultura tradicional da Baía, ainda existe, mas já está sendo substituído pelos elementos e pela rapidez electrónicos.

O Fim Da História

P. – Defende que a resposta ao problema ecológico se encontra no retorno ao “bom selvagem”, personificado pelo índio Xingu, referido no texto da canção?
R. – A postura da sociedade para com os índios Xingu é contraditória. Quando, na canção, abandono a sala, descubro que estou nu e sou identificado com um índio, na verdade tal identificação é ao mesmo tempo saudada e ridicularizada. O grito dos estudantes e operários de “viva o índio Xingu”, é ao mesmo tempo de solidariedade e ridicularizador. Há na figura do índio, ou das sociedades primitivas em geral, um sentido trágico, ao serem, em teoria, aceites pela antropologia e por certas medidas protecionistas, mas na prática exterminadas, de forma sistemática e programada, pela sociedade moderna.
P. – Há em toda essa questão um lado apocalíptico, de extremos que se tocam, de situações levadas ao limite…
R. – Sim, vivemos uma época em que tudo se revela e tudo se confunde.
P. – Relaciona directamente esse Apocalipse com o “fim da história” que dá título a outra canção?
R. – Essa canção procura desmistificar uma certa concepção de “fim da história”, segundo a qual esta teria acabado no sentido clássico do termo. A ideia, com que não concordo, de que todas as experiências relacionadas com a lei, a justiça, o direito e a fraternidade, enfim todo um conjunto humanista que foi consagrado universalmente pela Revolução Francesa, e mais tarde o marxismo, a ideia de socialismo e o sentimento de colectivismo, tivessem desaparecido para sempre. Como se a humanidade não pensasse mais, no seu destino colectivo e tudo estivesse ligado ao indivíduo isolado, na prática de uma possível democracia económica, toda essa coisa hegemónica com a queda do comunismo, etc. Por mim acredito em ciclos, em reciclagens, na possibilidade de retorno a momentos mais exigentes da humanidade.
P. – Não se tratará afinal do fim das ideologias?
R. – Sim, de esquerda e de direita. Se por um lado caiu o socialismo, enquanto caminhada histórica da humanidade, caíram também todos os sistemas que tentaram negar essa marcha, os sistemas individualistas, centrados na propriedade privada, o capitalismo, enfim.
P. – O índio e a cultura Xingus estão para além da História?
R. – Exactamente. São o antes e o depois da História.
P. – Já que se fala em Apocalipse, o termo aplica-se com propriedade à actual situação política no Brasil…
R. – O Brasil é hoje uma das nações mais exemplares, ao nível de convívio, diferenças, confrontos e desníveis vários. É um país extremamente rico na sua natureza, no seu povo, etc, mas extremamente exaurido nas suas possibilidades de conforto material e de educação mínimos para a maioria da população.
P. – Que razões impedem o salto em frente?
R. – Primeiro porque o Brasil, no plano da civilização mundial, é um país que desde a sua descoberta e a sua formação como nação, sempre viveu o papel da subordinação – primeiro aos interesses da colonização, e mais tarde aos americanos e ao capitalismo internacional. Um país que até hoje não conseguiu desenvolver um modelo de sociedade próprio. No momento em que o Brasil poderia dar o salto e desenvolver-se, à semelhança dos Estados Unidos, do Japão ou da Alemanha, acontece que os modelos que regeram o desenvolvimento destas nações tornaram-se impraticáveis.
P. – Que papel político desempenha como vereador do Conselho Municipal de Salvador da Baía?
R. – Um papel muito minimizado na sua importância, pelas dificuldades de compatibilização entre o exercício do poder e uma personalidade muito doce que é a minha.

Madalena Parabólica

P. – “Parabolic” assinala o seu regresso às origens e a um certo tropicalismo de que andava arredado. A que se deve tal aproximação?
R. – Foi um impulso do inconsciente, um chamamento irrecusável. Nos últimos dez anos, em discos como “Luar”, “Realce”, “Raça Humana” ou “Extra”, os elementos brasileiros eram colocados ao serviço da construção de um modelo internacionalista, que poderíamos enquadrar na “world music”, com uma vertente caribanha, africana, etc. Neste disco é o contrário. Toda essa acumulação de experiência internacionalista ficou subordinada aos próprios géneros brasileiros: o baião, o xaxado, o “coco do Norte”, o samba, a “moda de viola”.
P. – O tema de abertura, “Madalena”, e “Quero ser teu Funk” são bons exemplos dessas atitudes opostas…
R. – Sim. “Quero ser teu funk” é um tema dos que trabalham à superfície do profundo: o funky, os ingredientes da facilidade cosmopolita, imediata, o tempero do supermercado, o descartável. “Madalena”, pelo contrário, é um tema dos anos 50 que trata de um momento de transição. Madalena é uma personagem de um mundo tradicional que começou a desaparecer nessa altura, na Baía, com a chegada da exploração petrolífera, da industrialização e da invasão pós-guerra do mundo europeu. Ela confronta-se com a impossibilidade de continuar a viver numa comunidade agrícola verdadeira, dilacerada pelo caos provocado pela chegada da máquina. A música, composta por um homem do povo de quem não se sabe sequer o nome verdadeiro, foi um “hit” na Baía durante a minha adolescência e antecipava coisas como a lambada, o movimento afro, artistas como Margareth de Menezes, tudo isso.
P. – Será esse então um outro simbolismo para a imagem da baiana, com o cesto / parabólica a servir de chapéu?
R. – Exacto. É um cesto primitivo que representa a força da antena parabólica, mas em que a energia está subordinada à cabeça da mulher.
P. – O que significa “Parabolicamará”, título de uma das canções?
R. – “Camará” é compressão de capoeira. Significa “camarada”, “colega”, “amigo”, o “parceiro”. É o chamamento comunitário da roda de capoeira, símbolo dessa comunidade primitiva, clássica, brasileira. Aqui justaposta à parabólica, símbolo da “techné” moderna.
P. – Por falar em “techné” moderna. Como vê um fenómeno como o de Marisa Monte, que, sem tradição na chamada MPB, conseguiu, no Brasil e não só, um sucesso quase instantâneo?
R. – É o significado da eficácia da indústria cultural. São artistas que nascem de um “design”. Artistas industriais, mesmo. Na minha geração havia talentos que acabavam ou não por produzir para a indústria cultural, no tempo em que esta ainda não estava totalmente desenvolvida. Agora não, essa indústria já funciona em pleno, o que implica dinheiro, investimento, “design”. Há estatísticas, linhas de controlo, de avaliação, etc, e portanto já se consegue construir, a partir do artificial, artistas biónicos, “cyber”. É a pragmatização absoluta do talento. Nós éramos a fase humanista.
P. – Esse humanismo levou-o a abrir a digressão mundial com um espectáculo gratuito em Copacabana?
R. – Foi uma ideia da minha assessoria. Talvez ligado a esse sonho de reviver e dar testemunho a uma nova geração, de um tempo de festa: a época “hippie” à qual pertencemos. Uma época de grandes ‘shows’ em que se juntava a Natureza, belas fazendas, belas praias, com música e cultura e em que havia um sentimento de confraternização.

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