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sábado, 26 Abril 2003
FESTA DA MÚSICA 2003 DE MONTEVERDI A VIVALDI
O BARROCO É UMA FESTA
A chuva afastou algum público do primeiro dia da Festa da Música que ontem teve início no CCB, em Lisboa, sob os auspícios do barroco italiano. Dessacralizar a música clássica é a palavra de ordem deste festival com 135 concertos que reúne famílias, os maiores intérpretes do mundo e um ambiente em que a alegria e o prazer andam de mãos dadas.
Por Fernando Magalhães e Raquel Ribeiro
“Dez…nove…oito…sete…seis…cinco…quatro…três…dois…um! Múúúúúúsiiiiiica!”. Foi em contagem decrescente, ao meio-dia em ponto, que uma voz excitada anunciou pelos altifalantes o início da Festa da Música que desde ontem e até amanhã decorre no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, subordinada ao ciclo “De Monteverdi a Vivaldi”.
Não há gritos nem desmaios mas desde muito cedo que o CCB apresenta um aspeto diferente do habitual. As salas Tiziano, Caravaggio, Tintoretto, Giorgione, Canaletto, Tiepolo, Veronese e Guardi, assim designadas segundo alguns dos grandes pintores italianos da época, estão prontas para receber a música e os intérpretes do barroco italiano.
Os concertos, num total de 135 (60 dos quais, logo na manhã do dia de abertura, já se encontravam esgotados, embora a afluência esteja, por enquanto, abaixo da de anos anteriores, registando-se, às 16h30, um total de 52091 bilhetes vendidos, correspondentes a uma taxa de ocupação de 92,3 por cento, contra os 98,5 registados no ano passado), e as conferências só começam ao princípio da tarde, mas há quem chegue bem mais cedo para respirar o ambiente, decorar a geografia e o roteiro dos diversos auditórios improvisados ou simplesmente para tomar o pequeno-almoço, quem sabe se ao lado do maestro Michel Corboz, do cravista Rinaldo Alessandrini ou da pianista Anne Queffélec.
A chuva provocou um afluxo de público menor do que nas anteriores edições desta espécie de Festa do Avante! da música clássica, mas nem por isso o entusiasmo é menor. Vêem-se famílias inteiras dispostas a tirar do acontecimento o maior partido possível, para viver a festa, numa quase embriaguez que torne o fim-de-semana em algo mais luminoso, e melómanos solitários vindos para ouvir exclusivamente a obra ou o intérprete da sua preferência.
As “Quatro Estações” de Vivaldi são um “must” entre as famílias. Miguel Leal, 45 anos, veio com os três filhos e a mulher. Comprou bilhetes “para a família toda”: “Não foi muito fácil os miúdos virem, embora eles tenham algum hábito de ouvir música clássica. Portaram-se muito bem dentro da sala, o mais pequenino adormeceu…”. O programa da família Leal prevê cinco concertos só para o dia de estreia.
Maria Cristina Ferreira, 49 anos, presente pela terceira vez na festa do CCB, diversificou o seu plano de atividades: “Venho a parte dos concertos com as minhas duas filhas, elas gostam muito, estudam violino, a outros venho com o meu marido”. Na carteira tem bilhetes para 15 concertos: “Hoje [ontem] cinco, amanhã [hoje] seis e domingo quatro”. Com “As Quatro Estações” no centro das atenções, claro. Francisco Vasconcelos, 47 anos, gestor, também veio com as duas filhas, de 3 e 5 anos, ver “As Quatro Estações”: “Elas gostaram muito, portaram-se muito bem, muito compenetradas, a observar tudo, o pastor, o cão, tudo o que está descrito na peça”.
Saladas e Vivaldi
As crianças mais novas, presumivelmente menos entusiastas da música de Frescobaldo, Palestrina, Gabrieli ou Scarlatti, têm à sua espera um Castelo Encantado que afinal se destina a ser visitado por “toda a família” – “luz, leveza e um sorriso” criados por “arquitetos do ar” do Reino Unido, com conceção de Alan Parkinson. Lá dentro o prazer será menos espiritual que o proporcionado pelas “Vésperas da Santíssima Virgem” de Monteverdi, pelo Ensemble Vocal de Lausanne e Les Cornets Noirs, sob a direção de Michel Corboz, mas nem os miúdos nem os graúdos se queixam. Dentro dos enormes insufláveis é mais pulos e gargalhadas mas, afinal de contas, festa é festa.
Festa que músicos e público vivem, desfrutam e discutem juntos, cruzando-se e conversando nos corredores, nos bastidores, nos bares ou no restaurante. Para René Martin, mentor da “Folle Journée” de Nantes, em França, em cujo modelo assenta a Festa da Música, “o espírito da Festa da Música é dessacralizar tudo. Juntar os artistas, o público, os jornalistas, os técnicos”. “Aqui não há convenções”, diz, mas “igualdade e democracia”.
14 horas. Hora de almoço e dos primeiros concertos. O “Concerto Italiano” de Vivaldi, na Tiziano, com Rinaldo Alessandrini (cravo e direção), salada de beterraba com passas, concertos de Vivaldi pela Sinfonia Varsovia, dirigida por Gorka Sierra com Irene Lima (violoncelo), Carlos Trepat (guitarra) e Paulo Gaio Lima (violoncelo), na Caravaggio, tranches de cherne com arroz de ervilhas, Scarlatti por Ana Mafalda Castro (cravo) e Pedro Burmester (piano), na Tintoretto, “ravioli” de espinafres, Clementi, por Aleksandar Serdar (piano), na Giorgione, “mousse” de laranja, Lanzetti, Pergolesi e Porposa, com Gaetano Nasillo (violoncelo), Andrea Marchiol (cravo) e Hendrike Ter Brugge (violoncelo), na Canaletto, sericaia, “Giovanni Sebastiano Bacho” – obras transcritas por J.S. Bach, com Christian Rieger (cravo), na Veronese. O cardápio é rico e variado.
Os auditórios não encheram, é demasiado cedo, os concertos da tarde e da noite, esses, estão esgotados há muito. O restaurante, pelo contrário, está à cunha, ocupado na sua maioria pelos músicos.
Emmanuel Strosser dá as últimas garfadas na salada. Tem 37 anos, é pianista e esteve na Festa da Música Russa, em 2001. Tocará mais logo na sala Giorgione, a quatro mãos, com Claire Désert, sonatas de Clementi e Galuppi. Está aqui mais pelo trabalho do que pela diversão, mas faz questão de assistir a outros concertos, ainda “não sabe quais”: “O espírito da Festa da Música é toda a gente poder ir a concertos, seja em salas pequenas, em que há uma grande proximidade entre os músicos e os espectadores, seja em salas grandes, com grandes orquestras”.
A seu lado, Claire Désert, 35 anos, também pianista, concentra-se. Na medida em que os seus concertos a quatro mãos com Emmanuel Strosser o permitirem, tentará assistir amanhã a um dos concertos da Sinfonia Varsovia, em “As Quatro Estações”, de Vivaldi, bem como aos recitais de piano de Anne Queffélec, e de cravo, de Pierre Hantaï, ambos em sonatas de Scarlatti. Considera as festas de Lisboa e Nantes semelhantes “em termos de número de concertos e de ambiente”, mas diferentes “em termos de cor e de acústica”.
Concertos, ambiente e cor são o que não falta na Festa da Música do CCB. Será que não deveria ser assim durante todo o ano?