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Muddy Waters – “Muddy ‘Mississippi’ Waters Live”

(público >> mil-folhas >> jazz >> crítica de discos)
sábado, 22 Novembro 2003

Muddy Waters é uma das matrizes do blues de Chicago. A reedição, em formato de luxo, de um conjunto de sessões lendárias efetuadas cinco anos antes da sua morte, confirma, de forma exuberante, este estatuto.


O pecado mora aqui

MUDDY WATERS
Muddy “Mississippi” Waters Live
Epic Legacy, distri. Sony Music
10 | 10


Querem emoção sem intermediários? Querem energia? Alegria? Dor? Adrenalina? Suor? Sexo? A vida como ela é, a vida de um homem transposta para música? Vão aos “blues” de Muddy Waters, um dos pioneiros e nomes lendários do “blues” de Chicago nos anos 50. “Muddy ‘Mississippi’ Waters Live” é um disco para nos acompanhar pela vida fora até à morte. Sem nunca nos dar descanso mas recompensando-nos com o mel e o fel da entrega total. Foi gravado originalmente em 1977 e 1978, respetivamente no Masonic Auditorium, em Detroit, e no Harry Hope’s, Cary, Illinois, e editado em 1979. Johnny Winter, o músico albino do “blues” progressivo, além de produzir o LP original, participou na sessão de Detroit. A presente reedição surge em forma de luxuoso digipak, com som remasterizado, fotos raras, notas assinadas pelo guitarrista e co-produtor Bob Margolin e a inclusão de um segundo CD com gravações inéditas efetuadas nos espetáculos no Harry’s Hope deixadas de fora do alinhamento original.
“Mannish boy”, versão de Muddy Waters “I’m a man”, de Bo Didley, lança-nos de imediato para a fogueira. Muddy canta, grita “sou um homem!”, a assistência responde ainda mais alto, em transe, a acompanhar este rito de passagem da juventude para a idade adulta. O cantor empolga-se e desafia os elementos do sexo feminino presentes na sala, a temperatura sobe, o “blues” solta-se num erotismo desenfreado, atravessado pela corrente elétrica da guitarra Fender Telecaster que Muddy Waters faz estremecer como o corpo de uma mulher. “Slow blues is where all the soul is”, diz o cantor do delta do Mississípi e “She’s nineteen years old” dá-lhe razão. O “blues” de Waters é o som da paixão que arde como álcool, o ritmo exato a marcar o “swing” que atravessa o jazz de ponta a ponta. “Baby please don’t go”, aprendida com Big Joe Williams, é boogie para deixar qualquer um de rastos, as guitarras de Waters e Luther “Guitar Jr.” Johnson a dispararem estilhaços incandescentes. O tempo parece não ter passado quando se chega ao tema final, “Deep down in Florida”. Dez minutos do tal “blues” lento que derrete por dentro, simplesmente excecional, com a excitação do público e dos músicos a transparecer em cada nota, potenciada pela harmónica de Jerry Portnoy e um tremendo desempenho de Johnny Winter na “slide guitar”.
Quem, depois disto, ainda conseguir levantar-se e ter força para trocar de CD pode e deve lançar-se na segunda parte da aventura. Onde o “blues” escorre mais ébrio e a intimidade com o público se torna quase palpável, numa atmosfera de clube onde todas as barreiras à comunicação são derrubadas. “Afterhours/Stormy Monday blues” serve de pretexto a Muddy Waters para apresentar os músicos e criticar a gerência por obrigá-lo a tocar um segundo “set” em vez de o deixar ir para casa jantar. O piano de Pinetop Perkins está prestes a desfazer-se e a deixar-nos cair na volúpia dos silêncios. Palmas, gargalhadas, mais “boogie” irresistível, em “Trouble no more”, “Corrina, Corrina” e “Pinetop’s boogie woogie”, e o veneno da embriaguez a infiltrar-se em “Champagne & Reefer”. O clássico “Hoochie coochie man” antecede o lentíssimo “She moves me”, sexo em estado puro. Experimentem usar este tema como música de fundo para isso e convertam-se sem remédio nem vergonha a esta música onde o diabo pisca o olho a convencer-nos das delícias da luxúria e as guitarras literalmente arquejam num orgasmo. “Muddy ‘Mississippi’ Waters Live”, aureolado com um Grammy, não é feito da matéria dos sonhos. É carne e espírito a dar corpo ao pecado.

Anthony Braxton Quartet + Randy Weston Trio + Bobby Hutcherson Quartet – “A Equação De Anthony Braxton” (concertos / festivais / jazz / antevisão / culturgest / guimarães jazz)

(público >> cultura >> jazz >> concertos)
quinta-feira, 20 Novembro 2003


A equação de Anthony Braxton

Anthony Braxton, o matemático, Randy Weston, o africano, e Bobby Hutcherson, o vibrafonista swingante, marcam a agenda de jazz deste fim-de-semana, em Guimarães e Lisboa


Anthony Braxton tocou ontem em Lisboa e hoje toca em Guimarães


Mais jazz. Grande jazz. Grandes músicos de jazz. No Guimarães Jazz e em Lisboa, em co-produção da Culturgest com este festival. Anthony Braxton, Randy Weston, Bobby Hutcherson. O primeiro e o último dão concertos a dobrar e Weston tem concerto único em Guimarães.
Anthony Braxton, que ontem atuou na Culturgest e hoje abre a segunda parte do programa do Guimarães Jazz, é um matemático. Entre a teoria e a alucinação, a escrita tão complexa como uma cidade e o grito mais instintivo, revela-se um “continuum” que vai do macrocosmos orquestral ao microcosmos solístico. Braxton toca saxofones, clarinete, flauta e piano, e fez história ao lado de nomes ligados ao “free” e à música improvisada como Leroy Jenkins, Gunter Hampel, Jeanne Lee, Willem Breuker, Alan Silva, Derek Bailey, Dave Holland e Sam Rivers, entre outros. Fez parte do Circle de Chick Corea, dos Company, da Creative Music Orchestra e da Globe Unity Orchestra.
Equidistante do jazz e da música contemporânea, entre Ornette Coleman e Schönberg, Eric Dolphy e Xenakis, Braxton integra na sua música a intuição e a numerologia (como Xenakis, aliás, outro visionário pitagórico da ordem cósmica, cifrada em equações do espírito). Uma música apontada tanto ao corpo como à inteligência, a exigir do ouvinte participação e disponibilidade totais. Ou mais ainda: um dos seus projetos passa pela composição de uma peça para ser executada numa estação espacial em órbita.
Há quem se refira a um revisionismo da tradição em que o jazz é destruído e remontado e a improvisação uma outra ordem, manifestação parcial de uma arquitetura mais vasta, a propósito deste músico de Chicago que diz ter sido influenciado pelo “cool” de Paul Desmond e Warne Marsh, mas em cujas obras se cruzam batimentos rituais (às vezes curiosamente idênticos a construções da escola RIO – Rock in Opposition) e concepções puramente geométricas que procuram redefinir o jazz como uma música englobante e totalitária. Descubram-se estas diferentes galáxias em álbuns como “Silence/Time Zones”, um tratado de electrónica logística, com Leroy Jenkins, Leo Smith e Richard Teitelbaum, as séries de quartetos e duetos que se estendem pelas décadas de 80 e 90 e uma infinidade de composições numeradas, em contextos que vão do solo absoluto ao grande “ensemble”. Braxton atua em Portugal em quarteto com Kevin O’Neill (guitarra), Kevin Norton (bateria) e Andy Eulau (contrabaixo).
Os números de Randy Weston são outros. Dançam com a agilidade de uma gazela. Jazz, como o de Abdullah Ibrahim, com raízes fundas em África. Weston é o pianista que transporta a lanterna urbana de Monk e os ensinamentos de Ellington (de ambos traçou retratos em piano solo, nos álbuns “Portraits of Duke Ellington” e “Portraits of Thelonious Monk”), para os mistérios da savana. Imbuído da energia do rhythm ‘n’ blues e da música africana, autor do “standard” “Hi-fly”, Weston recomenda-se em álbuns como “Tanjah”, The Spirits of our Ancestors”, “Volcano Blues” (com Melba Moore), “Perspective” (com Vishnu Wood) e o mais recente “Ancient Future”. O pianista atua em trio, com Alex Blake (contrabaixo) e Neil Clarke (percussão).
A fechar o ciclo, Guimarães e Lisboa recebem outro nome incontornável do jazz moderno, o vibrafonista Bobby Hutcherson, em quarteto com Renee Rosnes (piano), Ray Drummond (contrabaixo) e Billy Drummond (bateria). Mergulhando a inspiração no swing do génio dos Modern Jazz Quartet, Milt Jackson, Hutcherson acrescenta à limpidez melódica do “cool” as subtilezas rítmicas do “bop”. De entre a sua discografia destaca-se uma das obras-primas do jazz, “Dialogue” (1965), potenciada por um assombroso desempenho do saxofonista Sam Rivers. Igualmente importante é a sua participação no clássico “Out to Lunch”, de Eric Dolphy.

ANTHONY BRAXTON QUARTET
Guimarães, Auditório da Universidade do Minho.
Hoje, às 22h. Tel. 253408061. Bilhetes a 10 euros.

RANDY WESTON TRIO
Guimarães, Auditório da Universidade do Minho.
Amanhã, às 22h. Bilhetes a 10 euros.

BOBBY HUTCHERSON QUARTET
Lisboa, Grande Auditório da Culturgest.
Amanhã, às 21h30. Tel. 217905155. Bilhetes a 18 euros.
Guimarães, Auditório da Universidade do Minho.
Sábado, dia 22, às 22h. Bilhetes a 10 euros.

Gianluigi Trovesi & Big Band + Martial Solal, Orchestre National De Jazz – “Progressivos” (concertos / jazz / culturgest)

(público >> cultura >> jazz >> concertos)
terça-feira, 18 Novembro 2003


Progressivos

GIANLUIGI TROVESI + BIG BAND
5ª feira. Sala quase cheia.

MARTIAL SOLAL, ORCHESTRE NATIONAL DE JAZZ
Domingo. Assistência fraca.
LISBOA Grande Auditório da Culturgest

Os concertos de uma “big band” dirigida por Gianluigi Trovesi e da Orchestre National de Jazz de França, sob a direção de Claude Barthélemi, que tiveram lugar sexta-feira e domingo, respetivamente, no Grande Auditório da Culturgest, vieram repor a velha questão do que é ou não música de jazz. Questão aparentemente irrelevante na medida em que importará, acima de tudo, a valorização da música de “per si”, independentemente de qualquer enquadramento e definição de um género que, esgotado o estertor efusivo do “free jazz”, se viu nas últimas três décadas na contingência de procurar em seu redor novas fontes de alimentação.
O jazz assimilou músicas e culturas limítrofes, fruto dessa necessidade mas também do confronto do músico com um “overload” de informação. Na música quer de uma quer de outra banda – excelente em qualquer dos casos – o jazz tornou-se mimetismo.
Trovesi, além de executante virtuosístico nos saxofones e no clarinete, é um “jongleur” de fórmulas musicais antagónicas. Os arranjos para “big band” que foram dados a ouvir na Culturgest, de temas como o exaltante “From G to G”, “Herbop”, “Dédalo”, “Now I can” e “Sogno d’Orfeo”, entonteceram o jazz no “carrocel do oito”, numa vertigem de citações a “New Orleans” e ao “bop”, à música barroca, aos folclores de diversas proveniências, ao cinema de sons de Nino Rotta e ao… rock progressivo.
Trovesi controlou o seu circo de forma magnífica, concedendo largo espaço de manobra à música mas também ao humor, como numa pantomima que levou o saxofonista François Corneloup a escapar-se para os bastidores continuando a tocar, a que se seguiu um “show-off” de Nicolas Nijholt, concluído com um “solo” de trombone a imitar um motor de automóvel. Entre os solistas, a parte de leão coube ao trompetista alemão Markus Stockausen, misturador de sons planantes e electrónica, enquanto o guitarrista Nguyien Lê optou por criar texturas oníricas igualmente saturadas de efeitos electrónicos em alternância com solos de inspiração Hendrixiana. Bastante discretos estiveram a pianista belga Nathalie Lorriers e, surpreendentemente relegado para a última fila dos metais, o mítico trompetista inglês Henry Lowther.
No domingo, após uma primeira parte preenchida por uma entediante atuação a solo do pianista Martial Solal – cujo lugar na história do jazz francês é inquestionável, mas a cuja agilidade de dedos correspondeu, no concerto da Culturgest, um universo fechado no tempo, à deriva numa sucessão de clichés que se anulavam mutuamente – a Orchestre National de Jazz (ONJ), através das composições e direcção de Claude Barthélemy deu sequência a algumas das premissas avançadas por Trovesi (que, aliás, participa no álbum da orquestra, “Charméditerranéen”), levando-as para territórios ainda mais extremados. A ONJ, composta maioritariamente por músicos jovens, deu corpo a um caleidoscópio, por vezes ofuscante, onde cores, formas e épocas distintas do jazz se cruzam e interpenetram. Do swing ao charleston, dos “blues” ao “free jazz” e ao “free rock”, passando pela música árabe e por derivações colectivas que lembraram René Lussier e a estética da editora canadiana Ambiances Magnétiques.
Barthélemy, além de guitarrista com forte costela rockeira, tocou alaúde árabe e mostrou ser notável alquimista na forma como harmonizou, separou e uniu os vários blocos da orquestra. Num dos temas, Vincent Limouzin saturou de efeitos e reverberção o vibrofone, como fazia Robert Wood no primeiro e enigmático álbum dos Lard Free, conferindo ainda mais à música da ONJ uma tonalidade geral evocativa dos anos 70 “progressivos”.