(público >> mil-folhas >> jazz >> crítica de discos)
sábado, 12 Abril 2003
A selva de Sanders. O gozo de Dress. E grande jazz do Hexágono, de ontem e de hoje. Espirituoso ou espiritual.
Espíritos à solta
DREW GRESS
Spin & Drift
Premonition
8 | 10
PHAROAH SANDERS
Spirits
Meta
7 | 10
FRANÇOIS BOURASSA TRIO
Live
Effendi
10 | 10
LEE KONITZ & MARTIAL SOLAL
European Episode
CamJazz
9 | 10
FRANÇOIS THÉBERGE 5 c/LEE KONITZ
Music of Konitz
Effendi
6 | 10
Todos distri. Multidisc
Simbiose, com Drew Gress a trocar de papéis com o saxofonista Tim Berne, passando em “Spin & Drift” a assumir o papel de líder. Mas a cumplicidade entre ambos é tão grande que se torna irrelevante falar em liderança a propósito desta música em que a força do coletivo é superior à da soma das partes. Berne não é um saxofonista dramático, mas o timbre carnudo do seu alto permite colorir cada tema com os tons do folguedo. “Disappearing” é comunicação direta a quatro vozes entre o alto, o contrabaixo, o piano de Uri Caine e a bateria de Tom Rainey. Em “Torque”, o contrabaixista faz jus a um “swing” largo, Berne desce com agilidade às profundezas do barítono e Caine parece querer desmentir quem acusa o seu piano de frigidez. “It was after rain that the angel came”, outonal, reflete cambiantes de nostalgia nas notas do contrabaixo, com Caine resplandecente na sua faceta de recitalista clássico. A faixa exótica, e uma das mais belas do disco, chama-se “Aquamarine” e nela a “pedal steel guitar” de Gress escorre como um riacho pelo empedrado, com Caine a fazer tombar notas de chuva. Álbum belíssimo, forte sem gorduras, pujante sem gritar ao megafone, imaginativo sem cair no delírio.
“Spirits”, gravado ao vivo em 1998 em local não identificado, é o prolongamento lógico de toda a obra anterior de Pharoah Sanders, coltraniano coberto de missangas, cuja música viajou entre o “hard bop”, o “free”, a improvisação ascética e a música étnica. Os 19 minutos de abertura de “Sunrise” soltam os espíritos do mundo, em “drone” de ressonâncias indianas, com florescências de uma “mbira” africana, apontamentos de pequena percussão saídos da cornucópia de Adam Rudolph e o veterano Sanders a dividir-se entre a contemplação indolente no sax tenor e cânticos de chamamento. Organizado como um louvor à sabedoria “sufi ” e à intuição, “Spirits” oferece nesta longa prece introdutória mais do que um motivo de agrado aos apreciadores tanto do jazz como da “world music”. As restantes faixas oscilam entre o exotismo exuberante das percussões de Rudolph e Hamid Drake, o “free” do “quarto mundo”, como o saboroso piscar de olhos a Coltrane, “The thousand petalled lotus”, ou o “satori” de gongos e “overtone singing”, ecos da fauna e flora de uma selva tropical incrustada no cérebro. Flautas de bambu, tablas, batuques rituais, borboletas e flores canibais, “Spirits” une com as pontas de um arco-íris o passado ancestral a um futuro onírico, em que jazz e o folclore imaginário se entrelaçam, numa celebração exterior a qualquer noção de urbanidade como aquela que anima os Art Ensemble of Chicago. Um “Sunset” de fogo fecha como começou o ciclo do dia – “drone”, suspiros “aum” e os murmúrios da floresta. Pharoah Sanders encontrou o seu nirvana.
O disco da semana é o “Live”, do trio do pianista François Bourassa, registado em Toronto em Maio de 2001, com Guy Boisvert (contrabaixo), Yves Boisvert (bateria) e o convidado André Leroux, nos saxofones tenor e soprano e flauta. Bourassa é um fabuloso arquiteto e desenhador com uma fluência e imaginação inesgotáveis. O modo como constrói em crescendo “30 Octobre 85”, partindo de motivos simples para o recorte de frases cuja força e complexidade se concentram na recriação do “Big Bang”, em conjugação com o desempenho explosivo de Leroux, no tenor, constitui daqueles momentos raros de audição de música em que apetece gritar de excitação.
A contrastar, “W! U! W!” surge de seguida como um “pizzicato” de sombras e silêncios. Frases sintéticas, revelação de perspetivas oblíquas, que, uma vez iluminadas, adquirem a inevitabilidade das evidências. Como cidades construídas dentro de cidades, segundo uma infinidade de escalas sobrepostas. “Arico – Afab” confirma Bourassa como um pianista de exceção, capaz de equilibrar “clusters” tão vastos como o cosmos com miniaturas de ourives. Mão esquerda de mago negro, mão direita de pintor renascentista, Leroux brilha e inventa a cada momento, acrescentando novas ideias e soluções inusitadas ao terreno, já de si fértil, semeado pelo pianista. Uma paisagem impressionista, ”13”, e uma homenagem, em duas partes, ao pianista Herbie Nichols dão a conhecer o outro lado da moeda. Flauta e piano em diálogo intimista, com Leroux a utilizar, sem exibicionismos, um leque de técnicas e respirações ”extensivas” e Bourassa, uma vez mais, a operar prodígios. Tudo isto a transbordar de ”swing”, a oferecer um espetacular momento de bop (“Chambrette”) e, a culminar, um “medley” de 16 minutos ao redor de Monk (“Four in one”/“Round midnight”/“Epistrophy”/“Trinkle tinkle”) que entra diretamente para a galeria dos clássicos. Um dos discos do ano.
A música de Lee Konitz ocupa o centro das atenções, em dois discos registados em épocas diferentes. ”European Episiode” recupera em versão remasterizada uma sessão de 1968 com o pianista francês Martial Solal e dois compatriotas seus, Henri Texier (contrabaixo) e Daniel Humair (bateria), nomes de referência do jazz com origem no ”hexágono”. Uma colagem de ”standards”, com Konitz no alto eletrificado, ”Anthropology”, de Parker e Gillespie, um clássico do ”bop”, a balada ”Lover man” e o blues “Roman blues” têm a companhia de “Duet for saxophone and drums, and piano”, um “divertimento” em forma de improvisação “free” que pode servir de manual de aprendizagem. Criatividade e liberdade exigem ordem, seja de que natureza for. Konitz, Solal, Texier e Humair são professores de Direito. Descodificar o código de leis elaborado pelos quatro é um dos muitos aliciantes deste episódio europeu.
É um Konitz mais velho e cansado que escutamos a enriquecer com a sua participação um álbum que lhe é dedicado, “Music of Konitz”, pelo quinteto do saxofonista tenor francês François Théberge. Mestre e discípulos mantêm distâncias, neste encontro que ocorreu em 2002 no clube Duc des Lombards, em Paris. O encontro das autocitações do “bopper” com a reverência dos cinco franceses não faz faísca.