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sábado, 08 Fevereiro 2003
Django Bates, Tim Berne, Matthew Shipp. Ou como o jazz pode enveredar por ínvios desvios. Umas vezes, perdendo-se, outras não.
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As curvas do caminho
DJANGO BATES
Quiet Nights
7 | 10
TIM BERNE
Open, Coma
7 | 10
Science Friction
8 | 10
Todos Night Bird, distri. Trem Azul
MATTHEW SHIPP
Equilibrium
7 | 10
Thirsty Ear, distri. Trem Azul
Triste Inverno, este, da nossa incredulidade, do nosso medo e da nossa insegurança. Como triste foi sempre uma grande parte do jazz e das vidas que o fizeram. Caminhos onde o amor não tem abrigo e fala baixo. “Speak low”, tema de abertura de “Quiet Nights”, do teclista inglês Django Bates (frequentador de paragens jazz-rock, ao lado de Bill Brufford ou do saxofonista Iain Ballamy, de resto aqui presente) é um murmúrio quente e melancólico como os de Annette Peacock, mistura de balada e eletrónica, “lounge” difuso de sentimentos e programações, com a voz de Josefine Cronholm em lugar de destaque. Um mundo suspenso nas margens do jazz e de uma “world” imaginária, tão próximo de Peacock como de Anja Garbarek, Sade e da bossa-nova. Suspiros, “scat” indolente, ventos do Tibete, Ballamy a tentar enquadrar no seu saxofone o jazz mais ortodoxo, e Weill, Tom Jobim e Duke Ellington, Bates a mexer nos botões e nos circuitos como se cozinhasse um bolo de “chantilly” na selva amazónica e Josefine a fazer o papel de diva lânguida numa cerimónia permissiva. Noites exóticas.
Tim Berne também não é propriamente um purista, fazendo parte de uma família que reúne, entre outros, os irmãos Cline, Mark Dresser, Joey Baron, Bill Frisell, Drew Gress, Tom Rainey e — habitante já de outra dimensão — Michael Formanek.
A arte do seu saxofone alto, influenciada por Julius Hemphill, por demasiadas vezes tem sido desvalorizada, ao mesmo tempo que são louvados os seus esforços na pesquisa e procura de novas formas de “desalinhamento”. Em “Open, Coma” (2001) encontramo-lo rodeado por uma banda de dez elementos constituída por músicos nórdicos, os Copenhagen Art Ensemble, pelo guitarrista-improvisador Marc Ducret e pelo trompetista de alto risco Herb Robertson, numa obra de grande fôlego gravada maioritariamente ao vivo no Jazzhouse de Copenhaga (apenas um dos quatro temas foi registado em estúdio, na Suécia) de “big band” ansiosa por libertar-se de todos os espartilhos.
Quatro únicos temas, longuíssimos (“Eye contact” dura 46 minutos, “The legend of p-1”, 33 e “Impacted wisdom”, 41…) proporcionam encontros e desencontros, desvarios “free” e complexas arquiteturas coletivas, com largo espaço de manobra para os desempenhos individuais. Por vezes, parece faltar cola que mantenha unida a estrutura, ficando no ar uma certa ideia de gratuitidade. Talvez uma menor cronometragem garantisse maior identidade e estabilidade a esta música que recusa os géneros, sem, contudo, deixar de os utilizar, e sem esgotar as possibilidades oferecidas por cada um. O segundo CD sofre dos mesmos defeitos, mas a música adquire tonalidades mais sombrias, evocando alguns momentos de “The legend of p-1” impressionismo lúgubre de Carla Bley em vestido de luto ou o cinema “alien” de Michael Mantler (Herb Robertson consegue soar como se soprasse de uma galáxia distante!…), enquanto Ducret dá largas à sua veia hendrixiana (ou, mais diretamente, herdada de Sonny Sharrock). Quanto a Berne, dá o melhor de si por volta do minuto dez de “Impacted Wisdom”, gritando nos agudos como se estivesse a pedir ajuda… Um bom, nalguns momentos impressionante, disco, que, no entanto, não consegue atingir a altura do gigante que aparenta ser.
Gravado no ano seguinte, 2002, “Science Friction” revela o lado mais descontraído, mas também mais mundano, do saxofonista, sem que se possa confundir mundanidade com leviandade. Entre o jazzrock, a turbina “funk” do movimento M-Base e o jazz progressivo, passam por aqui correntes realmente futuristas, na guitarra de Ducret e nos teclados elétricos de Craig Taborn. Se “Open, Coma” é um disco para fazer pensar como um tratado hermético, “Science Friction”, pelo contrário, nada mais pretende do que pôr em alerta máximo os sentidos e fazê-los gozar (friccionar…) o mais possível. Não tem a dimensão épica de um Frank Herbert ou de um Robert Heinlein, nem o lirismo mágico de um Simak ou de um Bradbury, muito menos a esquizofrenia sagrada de um Philip Dick, esta antecipação jazzística de um futuro que afinal continua a ser de marcianos verdes, máquinas do tempo reguladas para o passado e pistolas de raios laser. Mas entra-se nele como num romance de aventuras. E basta escutar a maneira como o saxofonista sopra em “Manatee woman” para se perceber como um homem pode ser feliz.
Nas já míticas “Blue Series” da Thirsty Ear, o pianista Matthew Shipp, atual parceiro das aventuras místicas de David S. Ware, arranca em “Equilibrium” uma música sem segundas leituras, baseada no “riffi ng” e num “punch” sem quebras. William Parker encarrega-se, como seria previsível, do contrabaixo, com a segurança e espírito interventivo de sempre, Gerald Cleaver chega a ser indigente na bateria (“The root”), mas é Khan Jamal, no vibrafone, que se afirma como primeiro dialogante do piano. Alguém disfarçado sob a sigla FLAM toca sintetizadores e organiza as programações, sem que o equilíbrio do todo se ressinta de excessiva eletrificação, embora “Nebula theory” e “Nu matrix” possam ser enquadrados nos mesmos parâmetros de “Amassed”, dos Spring Heel Jack: Jazz cósmico, com centro de gravidade nas estrelas, como Sun Ra lançara a profecia. “Cohesion” e “World of blue glass” são as faces opostas de uma mesma moeda. Manobra de diversão (concluída em “Portal”, curta homenagem ao músico francês) apelativa no primeiro caso. Assunção da interioridade como fonte primordial do jazz, no segundo. Não vive muito do jazz atual deste dilema?