POP ROCK
13 de Novembro de 1996
portugueses
reedições
Perguntas que nascem dentro da memória
JOSÉ MÁRIO BRANCO
A Noite (8) / Correspondências (8)
Ed. EMI –VC
O que torna José Mário Branco e a sua música únicos? A arte dos arranjos e da composição? O segredo da transmutação? A culinária de venenos? A capacidade de luta e de resistência? A ironia? O sarcasmo? A transparência? Tantas perguntas a pedir respostas, que, por sua vez, exigem outras perguntas. Experimente-se uma chave: a força. A força das convicções e dos ideais. A força que confere unidade a uma obra que passou em revista os vícios e virtudes da sociedade portuguesa das últimas três décadas.
“A Noite”, editado originalmente em 1985, junta duas facetas distintas do compositor. De um lado, em termos de rodela de vinilo – ou na reconversão para o novo formato, na primeira parte –, é o foguetório popular, a sátira mordaz e festivaleira de “Cá vai Caneças”, “Tiro-no-liro” e “Elogio da Corrupção”. Na segunda parte, Portugal apaga-se, para se reacender e desventrar, uma vez mais, numa solidão que é de todos nós, que definhamos a sonhar os mitos e glórias do passado.
De todos, quase todos nós, carneiros modernos ou pós-modernos, mas carneiros sempre – por imposição ou vocação, vai dar ao mesmo. “A Noite” é um longo poema sinfónico/ manifesto espiritual, que interroga os abismos da história (ou o seu negativo) e do inconsciente portugueses. “A noite é o espaço vago, o tempo sem história/ em que as perguntas nascem dentro da memória/ em tudo o que já fomos está o que seremos/ mas cabe perguntar: foi isto que quisemos?”
Se “FMI” fazia a dissecação, sem anestesia, de um corpo inteiro em agonia, “A Noite” é a revelação das suas motivações e pulsões – estéticas, espirituais, existenciais e políticas –, através da interrogação e da auto-interpelação: “Como é que aqui chegámos?” “Acaso estamos vivos?” “Existe uma saída?” Caminho de retorno ao paraíso do útero maternal, única matriz a partir da qual é possível recomeçar tudo de novo. Com “A Noite” a música portuguesa recomeçou e das trevas fez-se luz. Ascensão e queda, passado e futuro, indivíduo e colectividade, “A Noite” constitui-se como a própria dialéctica da criação. Iluminada em palco, à luz dos holofotes e do espírito, mesmo em frente aos nossos olhos estremunhados.
Com data de edição original de 1991, “Correspondências”, ao contrário de “A Noite”, tem carimbo e o endereço dos destinatários. Palavras e sons dirigidas a poetas e músicos, aos netos e ao sr. Silva, ao remetente, quando a solidão e a ilusão apertam mais. Um álbum que, em termos poéticos, resume, sem lhes acrescentar novos destinos, viagens cumpridas do autor, espécie de recapitulação, de um pôr em ordem o desalinho dos anos e desenganos do passado. Em termos de som e produção, é um trabalho de colaboração, de experiências formais, por vezes sentidas como desvios.
Nesse aspecto de partilha de responsabilidades, “Correspondências” pode ser visto como o equivalente a “Galinhas do Mato”, de José Afonso, no qual as funções de comando foram entregues a José Mário Branco. Cumprida mais uma espiral do tempo, chegara a vez do próprio José Mário Branco entregar os arranjos a amigos como José Peixoto, José Martins e Júlio Pereira.
É ainda o sinal do fim de uma época e o começo de outra, marcado pelo nascimento da UPAV, na defesa, em novos moldes, da música portuguesa. José Mário Branco, o político, sobrepondo-se ao José Mário Branco, músico. Uma vez mais, as notas informativas que acompanham as presentes reedições, da autoria de Nuno Pacheco, constituem leitura auxiliar obrigatória.