Nico – “Miss Viagem Da Morte Da Câmara Obscura” – artigo de opinião e discografia

Pop Rock

7 de Junho de 1995

MISS VIAGEM DA MORTE DA CÂMARA OBSCURA


nico

Philippe Garrel continua vivo e a fazer cinema. Nico, a “deusa da lua”, como Andy Warhol lhe chamou um dia, deixou a vida na berma de uma estrada. Em Julho de 1988, em Ibiza, num dia de Verão, encontraram-na caída ao lado da sua bicicleta.

A exibição de “O Berço de Cristal” (“Le Berceau de Crystal”), incluída na programação dos Mistérios de Lisboa, foi cancelada, por “motivos de ordem pessoal”, invocados pelo seu realizador, Philippe Garrel. Em sua substituição, será exibido “Le Lit de la Vierge”, de 1969, primeira colaboração entre o cineasta francês e a cantora e actriz germânica. De Garrel e Nico, poderemos ainda ver “La Cicatrice Intérieure”.
“Le Berceau de Crystal”, o tal que o cineasta insiste em manter interdita a sua exibição, merece uma menção. É um filme simultaneamente belo e perturbante. Tivemos a oportunidade de o ver há muitos anos numa “segunda matinée” especial no cinema Nimas. À saída não eram poucos os rostos que ostentavam sinais visíveis de perturbação, de tal forma o filme consegue criar uma atmosfera de opressão e tragédia. Dele recordamos a ausência de quaisquer diálogos (a única voz humana que se ouve é precisamente a de Nico, a declamar um poema), os vermelhos, roxos e dourados carregados e a banda sonora, assinada por Manuel Göttsching, guitarrista e compositor de música electrónica berlinense e um dos expoentes da “Kosmische muzik” alemã do início dos anos 70. Mas recordamos sobretudo o terrífico ruído final, quando a música, uma longuíssima “mantra” de sonoridades planantes e pretensamente elevatórias é cortada pelo som seco de um tiro de pistola. Talvez assim se compreenda melhor as razões da interdição da sua exibição pelo seu autor, se recordarmos as palavras, proferidas nessa época: “Faço filmes para não me suicidar.”
Philippe Garrel continua vivo e a fazer cinema. Nico, a “deusa da lua”, como Andy Warhol lhe chamou um dia, deixou a vida na berma de uma estrada. Em Julho de 1988, em Ibiza, num dia de Verão, encontraram-na caída ao lado da sua bicicleta.
Não vimos mais nenhum filme de Nico, realizado por Garrel. Mas podemos fantasiar sobre “La Cicatrice Intérieure”, cujas canções foram retiradas do álbum da cantora “Desertshore”. A capa, uma imagem do filme, mostra-a em pose de abandono, montada numa mula, guiada por uma criança, cuja voz imaginamos ser a mesma que canta na pseudo-“nursery rhyme” “Le petit chevalier”. “Je suis le petit chevalier, j’ irais te visiter”, diz a voz infantil e, em vez de ternura, sentimos um arrepio.
Nico, de seu nome verdadeiro Christa Pavlovski, depois Paffgen, nascida em Colónia em 1939, notabilizou-se por ter feito parte dos Velvet Underground, nos anos de 1966 e 1967, por vontade de Andy Warhol, que queria contrabalançar, nos espectáculos ao vivo do grupo – então, a orgia “multimedia” “The Exploding Plastic Inevitable” -, a imagem “feia” projectada por Lou Reed. Sem ela, o mítico álbum da banana, “The Velvet Undergound & Nico”, seria sem dúvida algo diferente. Menos luminoso. E menos gélido.
Antes dos Velvets, Nico desempenhou por algum tempo vários papéis. Foi amante de Bob Dylan, manequim, em Ibiza, com o nome Nico Otzak, apareceu na TV no programa Ready. Steady. Go! e gravou um “single”, “I’m not saying”, em 65, com Jimmy Page e Brian Jones. No cinema, estreou-se como actriz secundária no filme de Fellini, “A Doce Vida”, seguido de “Strip Tease”, de J. Poitrenaud.
Depois da saída dos Velvets, assinou uma série de álbuns a solo, onde impressiona sobretudo a sua personalidade fatalista (o termo “mulher fatal” ganha na sua pessoa um significado especial…) em canções que anteciparam a estética “gótica”. Nos espectáculos ao vivo que realizou, em que se fazia acompanhar pelo seu inseparável “harmonium” (órgão de pedais), não era só a voz mas a sua figura, vestida de negro, e o seu rosto lívido que causavam calafrios. Alguém que assistiu a um dos seus raros concertos a solo, em 1974, na catedral de Reims, em França (onde, na mesma ocasião, também tocaram os Tangerine Dream…) jura que durante a actuação viu o rosto da cantora transformar-se numa caveira. Já nos anos 80 fez as primeiras partes de concertos dos Siouxsie and the Banshees. No ano da sua morte, foram os Sugarcubes que fizeram a primeira parte dos seus.
John Cale esteve alguns anos a seu lado, ajudando-a a gravar os álbuns “The Marble Index”, “Desertshore” e “The End”. Já no final de carreira, os The Faction, um duo carregado de percussões electrónicas, cumpriram a mesma função, daí resultando o álbum “Camera Obscura”, um dos melhores de sempre da cantora.
Cumprida uma vida de excessos, encharcada em “valiums” e na heroína, e de mistério, está por escrever a verdadeira biografia de Nico. Todas as que foram escritas até hoje sobre ela debateram-se com a falta de dados e a dificuldade extra de ela própria se ter escudado durante toda a sua vida em declarações contraditórias. Costumava dizer, por exemplo, que era uma “nazi anarquista”, embora o pai tivesse morrido num campo de concentração. A morte, sempre presente em toda a sua vida – além de “deusa da lua”, havia também quem lhe chamasse “Miss death trip” -, veio por fim buscá-la. No tal dia de Verão em Ibiza que imaginamos cheio de sol.
Sobre o consumo de drogas e de si própria, Nico disse uma vez: “Prefiro tomar drogas e ser encarcerada numa instituição. Sou uma niilista, portanto gosto de destruição, tenho que admiti-lo, mas tem que haver uma razão qualquer para uma pessoa não se autodestruir.”
Vamos voltar a vê-la envolta na luz negra do cinema de Garrel.

NICO NOS FILMES
DE PHILIPPE GARREL

Cinema Monumental, Lisboa
“Le Lit de la Vierge”
Domingo 25 – 24h
Segunda 26 – 15h
“La Cicatrice Intérieure”
“Athanor”
Quarta 14 – 15h
Sexta 23 – 24h

DISCOGRAFIA OFICIAL (álbuns)

Com os Velvet Undergound:
“Velvet Undergound & Nico”, 1967

A solo:
“Chelsea Girl”, 1968
“The Marble Index”, 1969
“Desertshore”, 1971
“The End”, 1974
“June I, 1974” (ao vivo, com Kevin Ayers, Brian Eno e John Cale), 1974
“Drama of Exile”, 1981
“Live in Denmark: The Blue Angel” (ao vivo)
“Camera Obscura”, 1985
“Behind the Iron Curtain” (ao vivo), 1986
“Last Concert-Fata Morgana”, 1994

Como actriz:
“La Dolce Vita”, de Federico Fellini, 1959
“Strip Tease”, de J. Poitrenaud,
“Chelsea Girls”, de Andy Warhol, 1966
“Le Lit de la Vierge”, de Philippe Garrel, 1969
“La Cicatrice Intérieure”, de Philippe Garrel, 1970
“Athanor”, de Philippe Garrel, 1972
“Les Hautes Solitudes”, de Philippe Garrel, 1974
“Le Berceau de Crystal”, de Philippe Garrel, 1975



Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.