Arquivo mensal: Janeiro 2016

Né Ladeiras – “Alhur” – Série: “Os Melhores De Sempre – Música Portuguesa”

Pop Rock

26 de Julho de 1995
Os melhores de sempre – música portuguesa

Né Ladeiras
Alhur


nl

Como foi

A “Alhur” fica longe daqui. “Sempre tive ideia de fazer uma coisa que falasse do lado de lá.” Né Ladeiras explica desta forma a génese deste seu maxi-single onde as referências usuais da música pop fazem pouco ou nenhum sentido. “Costumava dizer que tinha prometido a mim própria fazê-lo, na outra dimensão”. O disco surgiu na sequência de viagens por outras terras e, muito provavelmente, de caminhadas de outro tipo. Quando regressou da Suécia, um dos países por onde andara, trazia um sonho no corpo de viagem. Foi na mesma altura em que os Heróis do Mar provocavam por cá um tremor de terra nos meios musicais, com o sei disco de estreia, dos hinos de saudade e de bandeiras. “Quando cheguei, o Nuno Rodrigues [antigo companheiro de Né na Banda do Casaco] mostrou-me o disco. Adorei o trabalho deles. Já tinha assinado contrato com a Valentim de Carvalho, disse-lhes que o Miguel Esteves Cardoso estava a fazer as letras e que eu já escolhera os músicos: os Heróis do Mar. Lembro-me do Pedro de Vasconcelos me perguntar se eles tinham alguma coisa a ver com a minha música. Respondi-lhe que sim, que tinham tudo a ver. A começar pelo espírito em si.” Com Miguel Esteves Cardoso, o encontro foi casual, nas escadas da sede da Valentim. Apresentaram-se, simplesmente. Exprimiram uma admiração mútua. E partiram à aventura.
Né Ladeiras recorda das páginas do seu diário o primeiro dia de gravações: “O ponto de encontro foi na Rádio Comercial, às dezoito horas. Só eu, o Paulo Gonçalves e o Ricardo Camacho é que comparecemos no ‘local do crime’. O Miguel já se encontrava lá para dar o tiro de partida. Os outros encontraram-se connosco no Ouriço, um restaurante em frente à estação da CP de Paço de Arcos. Chegámos ao estúdio já passava das oito da noite. Mas também não fez muita diferença, porque o técnico chegou com meia hora de atraso mas cheio de boa disposição. Últimos preparativos para daqui a pouco arrancarmos para o primeiro alvo: ‘Holoteta’…”
As sessões de gravação duraram “aí uns quinze dias”. Quinze dias para imprimir no vinilo quatro estações de um rito de passagem. No estúdio, criou-se um ambiente especial. “Havia alturas em que o Pedro de Vasconcelos queria torná-lo mais íntimo. Então ou apagava as luzes por completo ou deixava acesa só uma. Não havia rigidez na postura dos músicos. Lembro-me de o Paulo estar a tocar acordeão, de Pedro Ayres estar a tocar baixo, pareciam figuras retiradas de livros, de desenhos, muito etéreos.”
As canções de “Alhur”, no espírito dos sons e dos textos, respiram com um ritmo próprio, dos primórdios da vida, se calhar. “Quis dar uma ideia às pessoas de como tudo isto se inicia. No ‘Húmus verde’, o tema das águas, pretendi mostrar algo que é verdade, que nós todos iniciamos a nossa vida num saco de águas, dentro do ventre das nossas mães. Só que as coisas passam-se antes, somos nós que escolhemos em que saco de águas é que queremos viver durante aqueles nove meses. É um mundo muito aquático, um mundo que, em termos sonoros e de movimentos, deve ser muito calmo. Quando mergulhamos numa piscina, os sons que sentimos do exterior vêm todos amplificados de uma outra forma. É assim que os mestres dizem que os sons e os movimentos são feitos – do lado de lá. Quando os bébés nascem, nem sequer sabem respirar pelos pulmões. É preciso dar-lhes aquela palmadinha!…”
“Alhur” dá essa palmada, na passagem de um meio para outro. É um disco que fala das águas, todas as águas, das águas-régias do pensamento às águas salgadas dos oceanos e das lágrimas. E há uma fada chamada “Holoteta” que Né Ladeiras foi buscar a um livro de ficção científica com o título “O Baile das Estrelas”. “É o nosso anjo da guarda ou a fada da Luz, do Caminho do Bem. Mas é assim uma fada já bastante evoluída. Nós temos a ideia da fada com umas vestes compridas e uma varinha de condão. Provavelmente poderá ter um computador à frente.”
A capa do disco – considerada, em 1982, “capa do ano” – aponta o caminho que se deve seguir para chegar a “Alhur”: uma imagem de um postal dos anos 20, do Caramulo ao pôr-do-sol. “Comprei-a num alfarrabista na Rua do Alecrim. Andava à procura de uma imagem que pudesse ser sugestiva para aquilo que acho que vai ser a passagem daqui para lá. Há pessoas que dizem que é um túnel. Eu acho que é antes um caminho assim, com curvas e muitas nuvens. Foi reproduzida tal e qual.” Passados 13 anos sobre a edição do disco, de que lado estamos, afinal? Né Ladeiras está já do outro lado. Atrás dos montes. A falar uma língua diferente.

Como é

O outro lado existe. Fica “Alhur” na curva de um caminho. No alto de uma serra que pode ser no Caramulo, mas, melhor ainda, de Sintra. Né Ladeiras curvou esse caminho, subiu essa serra, colou asas de água na terra em fogo. “Alhur” fica invisível quando nele se procura uma bússola ou a rosa-dos-ventos. Porque a direcção e o mapa variam e de cada vez levam-nos para lugares diferentes, para onde os impelem os textos de Miguel Esteves Cardoso (MEC) e os sons da própria Né. Mais invisível fica quando o queremos comparar com o que, por cá, se tinha feito antes e se fez depois na música popular. “Alhur” não encaixa em lugar nenhum. Escorre como areia entre os dedos. Ou água da chuva que não se deixa beber. Ouve-se como a um silêncio. Vai-se por lá. “Húmus-verde” chora nas águas-furtadas sem janelas onde MEC o fez desaguar. Do outro lado fica o céu. Do outro lado do disco. “Holoteta” voa nas asas de uma fada-borboleta. Nos saltos altos das percussões. “Essência” é a essência de uma canção. Das que se sonham em azul num cabaré vazio no meio das estrelas. Com um acordeão gemendo de aonde? De “Alhur”, por certo, o tema final que está além. Onde as amarras do tempo se rompem e a voz de Né nasce e flui sem precisar de palavras. Estendendo a mão e a alma aos cantares tradicionais do Norte, para os levar como a uma criança para o lado de lá dos montes, a um futuro que não existe porque, para uma criança, apenas há e conta o presente. No texto de promoção distribuído na época aos meios de informação, um excerto da “Chronologia ou Reportório dos Tempos”, do capítulo “Do som e estrondo, ou música, que cuidarão os antiguos ser causado com o movimento dos ceos”, pode ler-se o seguinte: “Muito deu que cuidar aos philosophos antiguos se por ventura os ceos com seu movimento causavão algum som e doce consonância a armonia de música, porque consideravam que como o som se causa do tocamento movimento tardo, ou apressado, com que dous corpos se roção hum com outro, donde nace neste concertado acidente, que chamamos som, o qual recebido no ar como em subjecto se vai multiplicando por elle, atê nossos ouvidos, que são os orgãos com que a alma percebe o tal objecto e se faz aquillo que chamamos ouvir”. “Alhur” é esse “concertado acidente” dos “ceos”.



Júlio Pereira – “Braguesa” – Série: “Os Melhores De Sempre – Música Portuguesa”

Pop Rock

12 de Julho de 1995
Os melhores de sempre – música portuguesa

Júlio Pereira
Braguesa


jp

Como foi

“Tive que adiar o estúdio por três meses porque parti duas unhas na Holanda.” Não podia ter principiado de pior maneira a gravação de “Braguesa”, o álbum de Júlio Pereira que haveria de suceder ao muitíssimo aclamado “Cavaquinho”. De novo com as unhas crescidas e de fora, Júlio Pereira não se lembra de ter acontecido durante as gravações “nada de especial”. “Normalmente distancio-me dos meus discos mal acabo de os fazer.” Em concreto, o músico lembra-se da “dificuldade” que sentiu “por causa do enorme êxito” do seu antecessor: “Lembro-me de ainda estar a gravar e ir com o José Fortes a uma pastelaria que havia ao lado do estúdio, e durante dois ou três dias vermos nos jornais prémios que ainda estavam a sair, relacionados com o «Cavaquinho’.”
“Se eu tive tanto êxito com esse disco, o mais normal seria gravar outro com o mesmo instrumento, só que nunca vou pela maneira mais fácil.” É a sua explicação para ter passado do cavaquinho para a braguesa. “Se me dediquei a um instrumento e curti ao máximo as suas características, e o que se podia fazer com ele, acabei por pensar ‘porque é que não faço isso com outro? ‘ Até porque quando fiz o ‘Cavaquinho’ já tinha algum contacto com a viola braguesa.” Júlio Pereira descobriu este instrumento “quando ia lá acima ter com o construtor, Domingos Machado”. Ainda na altura em que estava a fazer o ‘Cavaquinho’, comprei uma braguesa. Aí decidi atirar-me a um projecto novo, à descoberta de um instrumento novo”, conta o instrumentista que reconhece ter sido este seu segundo trabalho, e ao contrário do seu antecessor, sobretudo do agrado “ de alguns eruditos que o consideraram mais interessante que o próprio ‘Cavaquinho’”, um álbum que, pelas limitações e condicionalismos deste pequeno instrumento de cordas, o próprio autor define como o mais “regionalista” de toda a sua discografia. “De resto, já a atmosfera da primeira parte de ‘Cantar galego’ era feita com a braguesa, já com outra sonoridade.” Entre os que manifestaram a sua preferência por “Braguesa”, contavam-se José Afonso e o etnólogo dr. Ernesto veiga de Oliveira, ambos já falecidos.
Depois do cavaquinho e da braguesa, seguir-se-ia, anos mais tarde, o bandolim. Uma inconstância, ou falta de fidelidade, para a qual Júlio Pereira encontra uma justificação: “Nunca serei uma espécie de Carlos Paredes, porque uma coisa natural que tenho é jeito para tocar vários instrumentos de corda. Tenho a certeza de que nunca me irei dedicar apenas a um. Não há nada a fazer quanto a isso.”
Comparando com “Cavaquinho”, as sessões de “Braguesa” foram “mais difíceis”: “Já era uma gravação que utilizava muitas pistas, ou seja, 24 pistas, uma mesa praticamente nova, isto no Angel Studio 1, que foi o estúdio idealizado e gerido pelo José Fortes.” Estúdio que, pelas suas características inovadoras, representou o ponto de partida para as “melhores gravações nacionais, o que está amplamente demonstrado em discos”. “Braguesa” foi a “segunda experiência” aí realizada. “Só foi um bocado complicado porque já tinha talvez pistas a mais.” Lá dentro, “alguns temas eram tocados parcelarmente ao vivo, quer dizer, podiam tocar três músicos ao mesmo tempo, e noutro tocar só um”. Rodagem para o disco, já tinha sido feita. “Ensaiei com os músicos todos, aliás, nessa altura tinha um grupo do qual faziam parte o Janita, o Serginho [Sérgio Mestre], o Zíngaro e o Rui Júnior.” Com uma excepção: “Em dois ou três dos meus discos costumava fazer um tema final fora do contexto geral, onde houvesse uma onda mais ou menos de improvisação e sobretudo algo que fosse mais contemporâneo do que antigo. Neste caso foi ‘Quatro elementos’, onde entrava a Amélia [N.R.: Amélia Muge, então uma ilustra desconhecida, que Júlio Pereira conheceu em Moçambique, quando a cantora andava em digressão com José Afonso] e o Edgar Caramelo, embora inicialmente estivesse prevista a presença do Rão Kyao. Só que o Rão Kyao teve uma atitude esquisita, mandando o ‘manager’ dizer que eu queria ganhar quatro vezes mais do que os restantes músicos. Claro que não permiti isso, como é óbvio.”
Puxando um pouco mais pela memória, Júlio Pereira recorda que nesse ano, 1983, devia ser “o único músico neste país que tinha computador”. “Já estava informatizado”, garante. Uma faceta explorada ainda de forma embrionária em “Braguesa”, mas que viria a ser aprofundada nos álbuns seguintes. “A braguesa estava muito ligada a uma região. Isso implicava ir lá, conhecer pessoas, ouvi-las tocar, tocar com elas.” Uma “experiência demasiado absorvente” para que o músico pudesse dedicar nessa altura mais atenção aos sons sintetizados.
Para Júlio Pereira, “Braguesa” fica ainda como o álbum que lhe deu a oportunidade de conhecer as duas filhas de Janita Salomé, Catarina e Marta, “então duas gaiatas”, que cantam em “Olha a triste viuvinha” e com quem viria a trabalhar mais tarde no derradeiro álbum de José Afonso, “Galinhas do Mato”. Júlio Pereira salienta por fim que “Braguesa” foi o disco que mais o fez “rebuscar coisas, em termos de material didáctico”. “Nunca rebusquei tanto em bibliotecas ou em arquivos, nem nunca fiz tantas viagens.” Para conhecer a braguesa, o seu reportório e a sua história.

Como é

O sucesso com que foi acolhido “Cavaquinho”, um álbum que deixou marcas no modo de sentir e fazer música tradicional portuguesa, fez aumentar as responsabilidades de Júlio Pereira, curiosamente um músico saído da escola do rock. “Braguesa” constituiu a melhor resposta ao imediatismo e apelo popular do álbum anterior, forçado a obedecer às exigências de um instrumento, o cavaquinho, demasiado arreigado à tradição minhota com as suas características de vincada extroversão. A braguesa, pelo contrário, de sonoridade menos cerrada, permitiu a Júlio Pereira libertar-se para uma visão mais pessoal e experimentalista do universo tradicional. Não foram só os horizontes geográficos que se alargaram, agora num roteiro que descia de Trás-os-Montes ao Alentejo: a própria noção de interpretação incorporou novos conceitos e possibilidades estilísticas, e começar pelo enriquecimento das estruturas rítmicas populares, desde sempre uma das particularidades formais da obra deste autor. A isso acrescentou-se uma diversificação e exploração tímbrica, que em “Milho Verde” anunciava já as futuras incursões no tratamento computorizado dos sons e em “Ó Aninhas ó Aninhas” e “Murinheira”, dois tradicionais transmontanos, se manifestava num conhecimento, não apenas intuitivo, no primeiro caso, das cadências que neste século andam associadas à música antiga e, em “Murinheira”, de algumas das premissas hoje seguidas na chamada “world music”. Dois extremos que ilustram, ao nível dos arranjos, toda uma atitude demonstrada por um músico que chegou a estar enredado nas malhas de um estilo inconfundível, sem, contudo, deixar de manter a necessária distância de si próprio, de maneira a, nas alturas devidas, romper com o passado e dar o salto seguinte na escala da sua evolução pessoal. “Braguesa”, no perfeito equilíbrio que estabelece entre a voz popular e a erudição do perfeccionista (sintetizado de modo exemplar num tema como “Olha a triste viuvinha”), representa a matriz dessa evolução que vem caminhando dos espaços rasgados do nosso folclore, para os espaços milimétricos e labirínticos que são os da arte, pessoal e intransmissível, de Júlio Pereira, aqui desenhados sem preconceitos de qualquer espécie no tema final, “Quatro elementos”.



Ocaso Épico – “Muito Obrigado” – Série: “Os Melhores De Sempre – Música Portuguesa”

Pop Rock

14 de Junho de 1995
Os melhores de sempre – música portuguesa

Ocaso Épico
Muito obrigado


oe

Como foi

Não é um objecto de fácil definição. “Muito Obrigado”, dos Ocaso Épico, ou será melhor dizer, de Carlos Cordeiro, ou Farinha, como era e continua a ser conhecido, desafiou, na altura em que foi editado, algumas ideias preconcebidas. Seja como for, Farinha, hoje com 37 anos e um emprego no Ministério da Justiça, distanciou-se do projecto. “Não me lembro do ano em que o disco saiu. Não me preocupo com o passado, mas sim com o presente.” Apesar de tudo, há uma história para contar.
“Muito Obrigado” “foi uma proposta feita pelo Mário guia, na altura o proprietário do Rock Rendez-Vous. Os Ocaso Épico tinham tocado lá, houve um ano em que foi o grupo que tocou lá mais vezes. Provavelmente ele ficou com uma boa impressão.” A génese do disco aconteceu “ocasionalmente”, num restaurante no Algueirão, ao pé de Sintra, local de residência de Farinha, onde ele e Mário Guia se encontraram e foi feita uma proposta concreta para a gravação.
“O disco foi sendo feito ao longo de quase um ano de gravações onde estive quase sempre sozinho em estúdio”, diz farinha. “Primeiro fizemos uma pré-produção em casa, eu e o Pedro Barrento. Baseados em algumas programações já existentes, gravámos vários temas. Outros foram feitos posteriormente.” O termo “fizemos” é algo subjectivo, uma vez que os Ocaso Épico foram sempre uma ideia saída da cabeça de Farinha, embora com a ocasional colaboração de outros músicos, nomeadamente de Pedro Barrento, que em “Muito Obrigado” se encarregou das operações rítmicas elaboradas no computador.
Tal não impediu que, do início, o Ocaso Épico fosse de facto um grupo, por onde passou gente que aí “fez escola”, como o Alberto Garcia, um baterista que tocou nos Mler Ife Dada, nos Rádio Macau e com Marco Paulo, Rui “Fingers”, Anabela Duarte, dos Mler Ife Dada, ou Manuel Machado, acordeonista dos Essa Entente, entre outros. Farinha admite que o Ocaso era o seu projecto pessoal e que os processos de criação que levaram à gravação do disco não terão sido os mais comuns. “Tenho as minhas próprias ideias. Normalmente sou o compositor de todos os temas do Ocaso Épico, com uma ou outra excepção, entre cerca de duas centenas de músicas feitas quer no Ocaso, quer já em outros projectos.” A diferença está em que, quando toca com outros, Farinha garante possuir “a capacidade de apanhar aquilo que está na imaginação deles”. “Quando estou a tocar com uma banda”, diz, “consigo captar, sou um receptor telepático – embora seja também emissor – do que se passa na cabeça dos outros.”
Entre as canções que constituem “Muito Obrigado”, há uma que se distancia das programações efectuadas em estúdio, “Da Beira Baixa à Estremadura”, que foi tocada ao vivo. Nos outros temas, ao longo das sessões de gravação, Farinha ia “acrescentando instrumentos e compondo ao mesmo tempo”. Enquanto Zé Nabo, um dos produtores, ia almoçar, Farinha ficava no estúdio a experimentar instrumentos que desconhecia, determinados modelos de sintetizadores e máquinas de ritmos.
Uma experimentação que, em termos de produto final, terá ficado aquém das expectativas do autor: “O disco teve uma produção de fraca qualidade. Foi produzido praticamente por mim, pelo Mário Guia e pelo Zé Nabo, só que eu nunca tinha entrado num estúdio, não tinha qualquer tipo de experiência, inclusive a equalização paramétrica na mesa de mistura, não pescava nada daquilo”.
Hoje, Farinha não tem dúvidas ao afirmar que “em casa”, com um gravador de quatro pistas, consegue obter um “som melhor” do que o da gravação de “Muito Obrigado”. Independentemente da melhor ou pior qualidade técnica da gravação, o que ressalta é o seu lado satírico e a aparente ausência de uma lógica alinhada pelos modelos de produção então em voga, o que motivou alguma incompreensão e falta de receptividade da parte da crítica. “Isto é assim, Portugal é um país de cultura emergentemente rural. Da opinião pública à crítica, a mentalidade vigente não estava, não está preparada para ir além da cultura. Existem três componentes, a cultura, a sabedoria e a intuição. Quando há cultura e intuição, há conhecimento. É possível que uma pessoa com pouca cultura perceba melhor, tenha mais sabedoria que uma pessoa culta. Este disco transmite uma mensagem não cultural, mas sim de sabedoria.”

Como é

Pode a linguagem populista combinar com a electrónica futurista? Pode o “kitsch” mais parolo dar as mãos à crítica lúcida e mordaz? Pode a Beira descer à “Extrema-dura” para se tornar na província da experimentação em Portugal? Em qualquer dos casos, a resposta é afirmativa, num álbum como “Muito Obrigado”, dos Ocaso Épico, ou de Farinha Master, se assim lhe quiserem chamar. “Muito Obrigado” é um manancial delirante de conceitos, por vezes contraditórios, que se chocam e misturam com sons que à época, em Portugal, acompanhavam a frieza “cold wave” e “afterpunk” ou desciam ao sol do Sul da música árabe. O misticismo, a atenção concentrada nos meios “artísticos “ da capital, onde a cocalinda substitui o licor Beirão, e na decadência de um império que já só parte em viagem nos copos de uma Sagres preta criam em “Muito Obrigado” um carrocel de anarquia no qual apenas a intuição e a “verve” humorística de Farinha conseguem ter mão. Como ele próprio admite, os Ocaso Épico eram na altura como que o negativo, a sombra negra dos Heróis do Mar. Enquanto estes cantavam o “amor”, a “paixão” e a “saudade”, Farinha cantava “a produção musical/ do triste saloio nacional/ nunca deixou de cheirar o cu ao capital”. Um apocalipse de trazer por casa.