Pop Rock
18 de Outubro de 1995
Os melhores de sempre – música portuguesa
Nuno Rebelo
“Sagração do Mês de Maio”
Como foi
Stravinsky, com a “Sagração da Primavera”, e uma passagem de modelos foram os pontos de partida para “Sagração do Mês de Maio”, até hoje o único testemunho discográfico, a solo, de Nuno rebelo, mentor de projectos como Street Kids, Mler Ife Dada ou o mais recente Plopoplot Pot. “A Associação Cultural Manobras de Maio convidou-me para fazer música para a passagem”, recorda o músico, que, nessa altura, viu uma série de desfiles. A ligação entre o universo musical e o mundo da moda definiu-a Rebelo na estrutura formal da peça, construída em “vários segmentos diferentes que se vão sucedendo”, de modo a permitir a correspondência com os diversos estilistas presentes.
Nuno Rebelo fechou-se três meses em casa para gravar o disco. Compôs directamente num velho computador Yamaha CX5M, “dos primeiros de música que aparecem e o primeiro que tive.” “Só quem o conhece”, diz, “é que sabe o que passei. Tinha 40 sons dentro e permitia oito em simultâneo. O que aparecia era uma partitura onde se ia colocando a música nota a nota. Não era como hoje, onde se introduz directamente com as teclas. Foi uma relação que estabeleci com o computador.” Durante esses três meses, Nuno Rebelo viveu para o disco. “Na última semana, dormi oito horas durante a semana inteira, três num dia e cinco noutro”, recorda. “Quando olhava para uma coisa de madeira, já via os nós a andarem à roda!”
A editora, a EMI, contactada após o interesse inicial manifestado pela Transmédia, não foi sensível nem ao trabalho nem ao amor postos na gravação. Trataram mal o álbum, ao ponto de se enganarem no nome do seu autor. Nas lombadas do vinilo e do compacto, ainda hoje se pode ler o nome Nuno Ribeiro. “Fiquei furioso quando vi o disco na rua, com o engano. A resposta deles foi rirem-se e dizerem: ‘A gente estava a ver quando é que tu descobrias!’. Quer dizer, em vez de retirarem logo os discos, não, já estava, ficou assim, para não se gastar mais dinheiro em novas impressões.”
“Sagração do Mês de Maio” foi, entretanto, retirado de catálogo, “destruído”, porque “não vendia nada”. Nem podia ser de outra maneira, dada a forma como foi feita a sua promoção. “Nessa altura, só sabiam lidar com um tipo de música, a mais comercial. Foram à procura do ‘single’. Encontraram-no numa parte, ao fim de uma sequência de 20 minutos, com bateria e um baixo, mais à Mler Ife Dada, na opinião deles. Fizeram com ela ‘singles’ de promoção, que foi tudo o que enviaram para a rádio e as pessoas ouviram, em programas como o TNT, entre o David Bowie e a Tina Turner.”
Poderia ter sido outro o destino de “Sagração do Mês de Maio”, o catálogo belga “Made to Measure”, mas, uma vez mais, o destino foi madrasto. “Cheguei a almoçar em Bruxelas com o Marc Hollander. Ofereceu-me imensos discos e gostou imenso da minha música. Regressei a Portugal, não sei o que se passou depois. Tentei várias vezes telefonar-lhe sem o conseguir. Nunca estava ou não podia atender. Até que, finalmente, após alguns meses de tentativas, acabou por me ligar e ser sincero e directo: ‘A tua música é boa; só que, neste momento, estamos a editar John Lurie e Fred Frith, nomes conhecidos; a ti ninguém te conhece!’ Foi isto.”
Houve ainda a apresentação ao vivo da obra, num desfile das “Manobras de Maio”, no Campo Pequeno, em Lisboa. “Exactamente aquilo que se ouve no disco. Foi chegar lá o pôr ‘play’ no computador”, embora houvesse um guião com indicações para “subir volumes”, “alterar os sons internos do computador” ou “mudar estereofonias e efeitos”. Participaram ainda músicos convidados, que “não fizeram mais do que tocar coisas que estavam escritas no computador” – uma espécie de “dobragem” levada a cabo por Tomás Pimentel (trompete), Emanuel Ramalho (percussão), Anabela Duarte (voz), Francisco Ribeiro (violoncelo), Carlos Alberto Augusto (vibrafone), Carlos Bechegas (flauta e saxofone), José Pedro Lorena (clarinete baixo e saxofone) e Kim, na guitarra eléctrica.
Hoje, Nuno rebelo tem com “Sagração do Mês de Maio” uma relação de amor e ódio. “Para mim, é um disco querido e maldito. Querido porque é um bocado a minha entrada na maioridade musical. Maldito porque não tenho já nada a ver com este tipo de música. Se ouvisse um disco com esta música hoje em dia, ia dizer logo à partida um bocado mal! Embora haja muitas partes de que gosto. É verdade que é raro pô-lo e ouvi-lo, mas, nas poucas vezes em que o faço, gosto. Além disso, como nunca mais saiu nenhum disco meu, é a única referência que as pessoas têm do meu trabalho. Mas obviamente que hoje já não me identifico com ele.”
Como é
Experimente-se traduzir para francês ou inglês os diversos títulos em que se divide esta sagração para alta-costura da música portuguesa. Ficariam ou não lindamente num catálogo como a Made to Measure? Esteve por um fio. “Sagração do Mês de Maio”, apesar da sua feitura artesanal, nota a nota, num computador da pré-história, ostenta a mesma preocupação formal e a elegância estilística que caracterizam aquele selo belga. Catálogo de vestuário futurista de cores frias e rigor matemático, em Portugal, em 1989, faltavam ouvidos do lado das editoras que pudessem compreender ou, pelo menos, aceitar, 73 minutos “non stop” de sons computadorizados, sem um único refrão, um solo de guitarra eléctrica ou um pequeno nada por onde o hábito lhe pudesse pegar. “Sagração do Mês de Maio” gira e trabalha em volta de um tema-base, construindo segmentos orgânicos de som que se desenvolvem, em mutação constante, num aquário de formas de vida sintéticas. Simultaneamente belo e hermético, por vezes excessivamente dependente dos regulamentos informáticos, o único testemunho discográfico de Nuno Rebelo até à data anunciou prematuramente uma Primavera que entre nós nunca viria a florescer nem a dar frutos mas que, entre os seus contemporâneos da Europa civilizada, foi cultivada por nomes de doidos como Double-X-Project, Expander des Fortschritts, Non Credo, PFS, Piero Milesi ou Riccardo Sinigaglia. Pois é, e hoje? Nuno Rebelo já frequenta outras escolas e adquiriu memórias digitais mais sofisticadas. Mais uma vez, quando a turba lá chegar, o que sinceramente duvidamos, lá estará ele de novo mais adiante a pregar no deserto. Enquanto houver resistências e madres piedosas a puxarem para trás…