Pop Rock
22 de Fevereiro de 1995
Os melhores de sempre – música portuguesa
Ronda dos Quatro Caminhos
Ronda dos Quatro Caminhos
Como foi
Para Vítor Reino, a estreia discográfica da Ronda dos Quatro Caminhos representou uma mudança. A recolha de temas folclóricos, se não desapareceu, passou para um plano secundário. Até essa altura, Reino dedicara-se à música tradicional “numa perspectiva coral, que tinha sido importante nos Almanaque, com cerca de vinte pessoas”. “Era uma herança dos velhos coros”, diz Reino, para quem “Ronda dos Quatro Caminhos” foi o primeiro disco a pôr essa perspectiva “de lado”. Para trás ficara o Almanaque, até ao álbum “Desfiando Cantigas”, impulsionado por si e por José Alberto Sardinha, os fundadores do grupo.
“O Almanaque seguia uma linha de tentar reproduzir as recolhas tais como as ouvia. Procurava cantar tal e qual. No primeiro disco da Ronda, houve a tentativa minha de ver a música tradicional como uma coisa mais dinâmica. Tentei fazer uma reconstituição. Muitas vezes da maneira como imaginava que certos temas teriam sido antigamente e não como os ouvia. Também comecei a compor, à imagem das músicas antigas.” Um aspecto importante foi o desvelar alguns aspectos da música portuguesa que “estavam encobertos, como aquelas raízes mais célticas”. Reino cita a propósito a faixa “Romance da mineta”, na qual fez um arranjo “baseado nesses sons” de localização geográfica mais vasta.
Vítor Reino reconhece a importância que tiveram, antes da Ronda, outros grupos. “Houve dois que me marcaram um bocado, a Brigada Victor Jara e o Terra a Terra. É curioso, porque estes grupos começaram artisticamente mais avançados do que nós, só que tinham um percurso totalmente diferente. Nunca fizeram recolha. Eram mais músicos, até, mas não possuíam a vivência de campo que eu tinha. Fiz um percurso muito mais lento. Comecei por ouvir as músicas, em 1972, quando iniciei as recolhas, como eram cantadas nas várias zonas.”
As mudanças operadas na passagem do Almanaque para a Ronda assinalam não só uma necessidade estética pessoal como também uma leitura diferente sobre a melhor maneira de a música tradicional portuguesa poder evoluir. Reino define mesmo como “um pouco infantil” e “académica” a perspectiva do Almanaque, citando a propósito, de novo, a Brigada, cuja estreia em disco, “Eito Fora”, enaltece. “Um disco espectacular ao nível de execução e de técnica”. A gravação, em 1984, do primeiro álbum da Ronda encerra algumas histórias. Vítor Reino recorda o recurso a duas pessoas naturais da sua aldeia, Monsanto, que cantam no disco. Uma delas canta em “Cravo roxo”: “Era uma senhora que depois apareceu no primeiro disco do Maio Moço a cantar o ‘Quando eu era pequenino’. A Maria da Encarnação Portugal. Chamávamos-lhe Maria costureira, como alcunha.” A outra voz feminina pertence “a uma senhora muito velha, na altura com os seus oitenta e tal anos”, que canta no “Entrudo”. No estúdio, Vítor Reino e os seus companheiros decidiram “fazer uma brincadeira” com esta última, na verdade uma “tentativa de reproduzir as brincadeiras antigas” daquela época de folia. “Gravámos ruídos estranhos, de chocalhos, de pessoas a rir ou a fugir. Ainda me lembro da reacção da senhora, quando os ouviu enquanto estava a cantar.” Noutro tema, numa “cantiga de malha” de Trás-os-Montes “que era apenas de homens e tinha uma letra até um bocado ‘vermelha’, como eles dizem lá em cima, no sentido de ‘erótica’ e não político”, o grupo usou “uma série de coisas para imitar o ruído da palha, palhas artificiais, papéis, e com o som de pessoas a conversar, em fundo”.
Vítor Reino já não se recorda exactamente de quanto tempo o grupo permaneceu em estúdio para a gravação do disco, embora tenha a certeza de que “foi um número de sessões elevado”, ao contrário do que acontecera nos discos anteriores. “Na altura do Almanaque, pertencíamos à Valentim de Carvalho, davam-nos uma sessão de gravação quando lhes apetecia. Era muito difícil. Tínhamos de gravar depressa. Na Ronda não. Deram ordem para termos pelo menos umas vinte sessões, de quatro horas cada, o que já permitiu uma certa calma.”
Numa época em que os grupos desta área primavam pelo elevado número de elementos, Vítor Reino refere a “diminuição”, para dez pessoas, do Almanaque para a Ronda. Número que, mesmo assim, permitia uma utilização em força das vozes, incluindo as de quatro mulheres. “Ainda se conseguia cantar uma cantiga da Beira Baixa com adufes e vozes femininas, ou seja, ‘a vozes’, algo que já não é possível fazer agora, nos grupos actuais, que, por razões económicas, acabaram por ter que reduzir ainda mais as suas formações. Nesse tempo, na Ronda, não havia ainda preocupações económicas. Até os espectáculos que fazíamos não eram para ganhar dinheiro. No máximo, davam para cobrir as despesas.”
Como é
Grande parte do historial mais nobre da música portuguesa de raiz tradicional passou, nas décadas de 70 e 80, por Vítor Reino, denominador comum dos grupos Almanaque, Ronda dos Quatro Caminhos e Maio Moço. Os primeiros representaram a tentativa, conseguida, de recriação – com um máximo de fidelidade e mínimo de sofisticação formal – da música coral. Os Maio Moço, pelo contrário, trabalharam no sentido de transpor o reportório tradicional para um registo modernizado, recorrendo, inclusive, a instrumentação electrónica. Opção que obteve os melhores resultados em toda a primeira fase do grupo, mas que, depois, acreditamos que por imposições de ordem não exclusivamente musicais, acabou por decair, num aligeiramento que terá trazido à banda, pelo menos, alguns dividendos materiais. A Ronda foi outra coisa. Este seu primeiro trabalho rompe, a vários níveis, com o passado. Se a música coral ainda marca com força or arranjos, nomeadamente nas harmonizações, excelentes na maneira como conseguem extrair das polifonias tradicionais toda a sua riqueza cromática e expressiva, é, contudo, já notório outro tipo de preocupações. O trabalho de recolha, embora servindo ainda de principal base de trabalho, passa a ser objecto de polimento e encarado como veículo para novas formas de expressão, mais contemporâneas. Com “Ronda dos Quatro Caminhos” e, de forma ainda mais vincada, no álbum seguinte, “Cantigas do Sete-Estrelo”, último da banda onde Reino participa, a música tradicional portuguesa saía do seu obscuro recanto – pasto de delícias para os puristas -, para se inserir numa comunidade universal. Um som e uma atitude mais abertas, capazes de tocar franjas de auditores de outras áreas musicais, da música erudita à pop. Faixas como “Romance da mineta” – um marco na arte do “Trad. Arr.” -, com as suas colorações medievais e toda a força que o canto pode ter, ou “Entrudo”, em que a utilização de voz de uma idosa cantora tradicional antecipava uma estética de justaposição de épocas distintas – que o aparecimento dos “samplers” viria a democratizar, mas também a descontextualizar -, situaram a Ronda na mesma família de grupos como os Malicorne, abrindo caminho a quantos no futuro, em Portugal, apostarão em reorientar a tradição.
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