Ganhões de Castro Verde
Modas
Robi Droli/Etnia, distri. Etnia
Sardenha, Córsega, Génova são regiões do Mediterrâneo cujas polifonias vocais têm vindo a ser editadas em disco na Europa. Agora chegou a vez do “cante” alentejano, expressão polifónica que se pensa remontar até ao século XII, equivalente português daquelas polifonias, ficar pela primeira vez registado em compacto. Os ganhões – moços da lavoura ou outros serviços do Alentejo, que fazem parte da “ganharia” ou “malta”; indivíduos que vivem do seu trabalho (in “Dicionário da Língua Portuguesa”, Porto Editora) – de Castro Verde, vila situada a sul de Beja, cantam a união, o trabalho, o amor e a luta com a natureza. Vozes colectivas – “Nunca vi um alentejano cantar sozinho”, escreveu um dia José Gomes Ferreira – irmanadas num desejo de transcendência, de vitória, de afirmação ou de queixume. Escute-se a pulsação subterrânea que sobe até à superfície pelos pés dos homens que marcam a “cadência”. O contraponto melódico dos “pontos” e dos “altos”. A voz que, mesmo solitária, nunca está sozinha. Maurizio Martinotti e Beppe Greppi, os dois Ciapa Rusa que gravaram e produziram estas “Modas”, nome dado às melodias cantadas pelos corais alentejanos, aveludaram o som, acrescentando-lhe um ligeiro tempo de reverberação. Mário Alves, da Etnia, assina as notas de capa, com informação detalhada, bem como todas as traduções para o inglês, o que confere a este disco um valor adicional como documento. (8)
A estética “new age” parece ter ganho este ano em Portugal novos adeptos. O registo ambiental, a espiritualidade e a função apaziguadora e terapêutica dos sons são algumas das linhas de força presentes nos novos trabalhos de artistas como Madredeus, com “O Espírito da Paz”, Rão Kyao, com “Águas Livres”, Fredo Mergner, com “À Sombra da Figueira” e, inserido num outro tipo de pesquisa, os Telectu, com “Biombos”.
Cada um destes discos foge ao discurso linear e à imposição de esquemas rígidos da música. Põem o ênfase na criação de ambientes, em detrimento do formato tradicional de canção. Não ilustram uma cena, não contam uma história, antes buscam criar um estado de espírito e investigam no interior dos próprios sons. De igual modo, embora com menor evidência, também Né Ladeiras, em “Traz os Montes”, e José Peixoto, em “Taifa”, não são indiferentes a este conceito paisagístico da música, mas aqui interligado com as raízes étnicas, transmontanas (no caso de Né) ou árabes e inseridas numa lógica improvisacional e jazzística (no que diz respeito a José Peixoto).
De resto, quaisquer dos artistas, nos álbuns mencionados, mesmo os Telectu, não quebram os elos de ligação à música tradicional de matriz lusófona, uma preocupação que os coloca num lugar da “new age” de carácter regionalista, em comparação com a atitude “cósmica” e aquariana dos seus congéneres estrangeiros. Torna-se por outro lado curiosa a inexistência em Portugal de projectos que façam a conexão da “new age” com a música de dança, seja na chamada “ambient house” ou na mais recente “etnotechno”, duas correntes fortes actualmente na Europa. Ou por falta (ainda) dos meios tecnológicos necessários ou devido à inexperiência neste campo dos produtores, o facto é que, até agora, ninguém ensaiou explorar as vias deixadas em aberto há uns anos por Carlos Maria Trindade e Nuno Canavarro, em “Mr. Wollogallu”.
Poucas vezes, como no ano que agora finda, a música tradicional terá servido de matéria-prima para a feitura de tantos álbuns de produção nacional. Em si, o fenómeno não é novo, mas uma prova do interesse cada vez maior que as chamadas músicas do mundo provocam nas mais diversas áreas musicais. Fruto ou não do esgotamento da pop e do rock, o certo é que proliferam um pouco por todo o lado os discos de música étnica, folk, “world music” ou o que se lhes quiser chamar. Portugal não foge à regra. Há no entanto um aspecto curioso a realçar. Se no final dos anos 70 e ao longo da década seguinte eram os grupos de música tradicional, ou de raiz tradicional – na linha dura do G.A.C. até à sofisticação dos Vai de Roda, Brigada, Almanaque, Ronda, Terra a Terra ou Raízes . a proceder ao trabalho de recolha, adaptação e gravação dos temas tradicionais, a tendência recente, acentuada no ano que passou, passa um pouco a seu lado. O que se verificou em 1994 foi, em vez disso, o investimento em força na música tradicional por parte de artistas consagrados, alguns deles representantes da denominada MPP, que este ano ressurgiram com novos álbuns onde as raízes tradicionais se inscrevem em discursos pessoais há muito sedimentados. Estão neste caso os álbuns de Janita Salomé (“Raiano”), Júlio Pereira (“Acústico”), Fausto (“Crónicas da Terra Ardente”) e Pedro Barroso (“Cantos d’Antiga Idade”), qualquer deles, quanto a nós, uma desilusão, à excepção das novas estratégias acústicas de Júlio Pereira. Entre os novos valores, o destaque vai para Paulo Bragança, com “Amai”, cruzamento barroco e decadentista do fado com a música ligeira e o folclore ibérico. Os Quinta do Bill, apesar do sucesso alcançado pelo tema que dá nome ao álbum, prestaram um mau serviço à música tradicional, na pseudodesbunda de “pub music” à portuguesa, em copos de plástico, levada a efeito em “Os Filhos da Nação”.
Na vertente étnica passou despercebido, permanecendo embora como exemplo a seguir, o álbum de canto alentejano, primeiro de sempre editado em compacto, dos Ganhões de Castro Verde, “Modas”, resultante da carolice dos portugueses da Etnia em conjugação com a dos italianos da Robi Droli, Beppe Greppi e Maurizio Martinotti, também músios dos Ciapa Rusa. Em termos de grupos de música de raiz tradicional o ano foi parco em novidades. Enquanto Tentúgal faz aumentar a expectativa em redor do próximo projecto dos Vai de Roda, a Brigada Victor Jara não se decide a retomar a caminhada e os Realejo e os Gaiteiros de Lisboa não gravam, coube aos Romanças salvar a honra do convento, com “Azuldesejo”, um disco gravado em plena serra sagrada – Sintra – onde são sensíveis uma aproximação ao legado de José Afonso e a procura de novos sons, num trabalho de experimentação apurado, ao nível dos arranjos. Vítor Reino, como é triste ter que dizer isto, persistiu na sua via populista e de demagogia, com os Maio Moço, enterrando um pouco mais fundo o passado da Ronda dos Quatro Caminhos, nuns infantilistas “Amores Perfeitos”.
Resumindo – e após uma vista geral sobre um panorama apesar de tudo prometedor –, chega-se à conclusão de que a qualidade acabou por surgir de um campo indeterminado, alheio às catalogações, dominado por três mulheres que, cada uma à sua maneira, souberam dar sentidos inovadores e, porque não, provocadores, à música tradicional: Amélia Muge, com “Todos os Dias”, Filipa Pais, com “L’Amar” e Né Ladeiras, com “Traz os Montes”. Mais ligado a coordenadas antigas (José Afonso, José Mário Branco) mas servido por uma voz portentosa, o de Amélia Muge. Um pouco tímido, mas imbuído de grande lirismo (a que não é alheia a presença tutelar de Vitorino) o de Filipa Pais. Surpreendente e inovador, irmanado com as forças da terra e as luzes do céu, o de Né Ladeiras. A tradição falou do futuro – no feminino.