Pop Rock
27 MAIO 1992
LIÇÕES DE CANTO
SHEILA CHANDRA
Weaving My Ancestors’ Voices (7)
LP/CD, Real World, distri. Edisom
JOAN LA BARBARA
Sound Paintings (8)
CD, Lovely Music, import. Contraverso
Nunca se sabe o que a voz de uma mulher esconde sob o canto. Sheila Chandra e Joan La Barbara escondem o tempo. A primeira retoma o passado na forma das tradições vocais da Irlanda e da sua Índia natal para o projectar, transfigurado, no futuro, através de uma abordagem conotada com a “new age”. A segunda move-se no seio da vanguarda, utiliza técnicas vocais experimentais desenvolvidas ao longo de 20 anos de carreira, agarra na modernidade de Klee, nos Jogos Olímpicos de Los Angeles ou na iconografia do pós-guerra da cidade de Berlim para finalmente criar música em que o canto toma de assalto o passado, canto do corpo, do sangue e da pele, feito de pulsações rítmicas, respirações, gritos e murmúrios.
Sheila é uma tradicionalista que quer parecer moderna. Joan, uma exploradora que parte do fim em busca das origens.
Sheila Chandra tornou-se conhecida há alguns anos atrás com uma canção que chegou aos “tops”: “Ever so lonely”. Depois dedicou-se à música indiana. “Weaving My Ancestors’ Voices” é um pouco como o disco de Claire Hammill sobre as estações. A voz estende-se sobre “drones” infinitas criadas pela simulação electrónica de “Tampuras” ou por si própria recriada em ecos e refracções ambientais.
A cantora indiana interessa-se, diz ela, em comparar as semelhanças existentes entre culturas diferentes e depois em misturá-las. Técnicas vocais indianas são utilizadas na interpretação de temas tradicionais irlandeses. Em “Speaking in tongues”, a voz declaca as batidas do “mrdingam” e de “tablas”. “Nana”, uma peça de Manuel de Falla, explora a vertente árabe da música espanhola.
Há hinos e ragas, baladas e suspiros, sobre um “continuum” sonoro que confere ao disco tonalidades hipnóticas e uma serenidade nunca perturbada.
Joan La Barbara, pelo contrário, manda a serenidade às urtigas. “Sound Paintings”, que inclui obras escritas entre 1979 e 1988, investe no perigo e na diferença. São peças, na maioria encomendadas, que recriam pela voz ambientes ou vivências específicas: as cores tropicais da praia de Miami, com a voz servindo de tambor ou imitando ruído de animais, entre o pio e o grunhido (“Urban tropics”); um estudo psicológico sobre “as sombras e memórias que invadem a periferia do pensamento”, de vocalizações cavernosas e cânticos sombrios (“Shadowsong”); uma “animação sónica” dos movimentos de atletas em competição, elaborada a partir de respirações repetitivas, com recurso à técnica das “multiphonics” e ao “canto circular” (som também emitido durante a inspiração), em “Time (d) and unscheduled events”. Em “Erin”, há folclores, conversas cruzadas e um coro de tragédia na evocação da morte de um membro do IRA; “Klee alee” reporta-se a uma pintura de Paul Klee em que se procura o som das cores; as memórias de Berlim são evocadas num crescendo obsessivo, construído sobre repetições e cortado pelo som de sirenes da polícia ou o resfolegar de uma locomotiva em “Berlin träume”.
Em todos os temas, a voz jamais se sujeita a qualquer tipo de processamento electrónico, partindo à descoberta das “pinturas de som” que o título refere, em tempo real ou desmultiplicada em “multitracking”. “Sound paintings” insinua e materializa, de forma progressiva, os ritmos do corpo e as asas do espírito. Pelo sopro da voz que é a vida.