Arquivo mensal: Abril 2011

Dark Side of the Moon – O Monstro Que Saiu Dos Pink Floyd

28.03.2003

O Monstro Que Saiu Dos Pink Floyd

O lado escuro da Lua deixou de ser negro para passar a ser azul. “Dark Side of the Moon”, no original de 1973, e a presente reedição em Super Áudio CD, são como a noite e o dia. Um som perfeito para uma música que alguns teimam em não aceitar como tal. De que lado da Lua está a razão, afinal?

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Pink Floyd- Money Video from steve on Vimeo.

Se, no imaginário da música popular do último século, os Beatles foram condecorados com a insígnia mais nobre da pop e os Rolling Stones se assumem de bom grado como a mais perene das maldições rock, pertence aos Pink Floyd o estatuto de representantes oficiais de todas as outras músicas situadas no território indefinido onde as mais variadas tendências, cores, estilos e estratégias servem para, precisamente, retirar ao termos “música popular” o adjectivo “popular”. “Dark Side of the Moon”, editado pela primeira vez em 1973, tem suscitado desde sempre um sem-número de divergências, não sendo possível chegar-se a uma unanimidade quanto à sua dimensão e importância reais, quer no interior da discografia dos Floyd quer relativamente ao papel desempenhado por esta obra no desenvolvimento do rock progressivo dos anos 70.
A extrema exposição a que, logo nesse ano e até hoje, foi sujeito faz deste disco um objecto apetecível mas também uma presa fácil para os que têm o hábito de coleccionar ódios de estimação. Como “Sgt. Pepper’s” dos Beatles, “Dark Side of the Moon” começa por ser um triunfo da produção. Um disco fechado em si mesmo que parece existir suspenso num universo autónomo, quer em relação à fase anterior, psicadélica e “space rock”, do grupo, personificado pelos álbuns “The Piper at the Gates of Dawn” (ainda com Syd Barrett), “A Saucerful of Secrets”, “Ummagumma”, “Atom Heart Mother” e “Meddle”, quer enquanto anúncio da fase mais pop que haveria de seguir-se com “Wish You Were Here”, “Animals” e “The Wall”. O impacte das canções esfuma-se perante a opulência dos efeitos – que vão do barulho de passos a um despertador, de uma caixa registadora a vozes perdidas -, a grandiloquência dos coros e solos de saxofone perigosamente colados à estética MOR (“middle of the road”).
Se a totalidade dos álbuns atrás referidos valem por uma música aberta que não se esgota nos meios de produção utilizados, “Dark Side of the Moon”, pelo contrário, soa como cristalização. O que para alguns é perfeição tem, para outros, a configuração da morte, mumificação de uma linguagem tornada autofágica, como a serpente que a si própria se completa e se devora. Claro que não é possível comparar as pequenas e iluminadas “comptines” alucinadas de Syd Barrett, como “Arnold Layne” ou “See Emily Play”, ou navegações galácticas como “Set the controls for the heart of the sun”, com as melodias, tão exactas como redundantes, de “Dark Side of the Moon”. São naturezas diferentes e isso será o que mais chocará os admiradores dos Pink Floyd até ao aparecimento do “monstro”. O que, em contrapartida, levou a música do grupo a um outro tipo de auditores, mais vasto, e, como consequência, a ser abocanhada pela hidra do “mainstream”.

O Mesmo E O Outro

“Dark Side of the Moon”, apesar de poder orgulhar-se de ser um dos discos mais vendidos de todos os tempos (25 milhões de cópias, um número assombroso que não pára de crescer) e de ter permanecido durante uma década, sem interrupções, no Top da “Billboard”, continua, porém, a provocar tanto adesões entusiastas como a mais profunda das aversões. A verdade é que, ame-se ou odeie-se, não há ninguém que não tenha entranhadas nos ouvidos as melodias de canções como “Time”, “Money” ou “Us and Them”, o que, temos que admitir, também contribuirá para que, de tempos a tempos, alguém sinta vontade de partir o disco em pedaços (as edições em vinilo) ou, no caso dos CD, o submeter a um banho de ácido sulfúrico concentrado.
Numa última tentativa de restituir ao dito cujo uma frescura que parecia definitivamente perdida, eis que a reedição em formato de Super Áudio CD “híbrido”, ou seja, passível de ser tocado tanto num leitor de CD específico como num convencional, vem de novo recordar-nos que “Dark Side of the Moon” nunca esteve, afinal, longe de nós.
É o mesmo e outro disco, aquele que chega às bancas na próxima 2ª feira. A capa, apesar de levar a assinatura de Storm Thorgerson, o mesmo que, integrado no projecto Hipgnosis, desenhou o original, sofreu alterações de pormenor. O prisma que refracta a luz branca no espectro do arco-íris tornou-se mais branda, abandonando o negro do fundo. A noite tornou-se, mais do que penumbra, azul do dia, traindo a essência nocturna que o próprio título do álbum contém. Mas o mais importante é que esta música, que pensávamos não ter já reservada qualquer surpresa para oferecer, soará agora como nunca soou antes, numa gloriosa submissão à audiofilia que finalmente justificará o esforço de produção posto na edição original de 1973. “Dark Side of the Moon” será, afinal, uma potência disponível até ao infinito, matéria de actualização dos permanentes avanços da tecnologia, um livro em branco através do qual sucessivas gerações encontrarão algo de feérico mas que pouco ou nada terá já a ver com o contexto histórico que esteve na sua origem. Mas talvez faça sentido: “Dark Side of the Moon” nunca teve verdadeiras sombras.

De Ambos Os Lados Da Lua

O melhor ou o mais irritante álbum dos Pink Floyd, hoje, como há 30 anos, continua a dividir as opiniões.

É a obra-prima dos Pink Floyd. Dizem uns. É uma desilusão, o álbum dos efeitos gratuitos, dizem outros. Poucos discos terão causado tanta discórdia no seio dos apreciadores do Rock Progressivo como esta “monstruosidade” de efeitos especiais e produção “over the top”, que ainda hoje divide as opiniões.
Eduardo Mota, 45 anos, professor, “melómano militante”, sócio-fundador da Associação Cultutal “Portugal Progressivo”, criador dos portais das bandas Amazing Blondel e Gryphon, e de outros como os de Maddy Prior e Van Der Graaf Generator, e ainda o generalista Portugal Progressivo, e Álvaro Silveira, 38 anos, economista, “maluco por música, especialmente progressiva” estão de acordo que os Pink Floyd foram uma das bandas mais importantes do Progressivo. Mas, quando toca a “Dark Side of the Moon”, posicionam-se em lados contrários da barricada.
Álvaro chegou ao Progressivo quando já se agitavam as bandeiras negras do “punk”. “Quem iniciava a sua adolescência na segunda metade dos anos 70 tinha duas alternativas. Ou alinhava com o processo revolucionário em curso que chegava de Londres e pendurava alfinetes na roupa e na face, gritando ‘no future’, ou assumia a nostalgia de um passado imediato e embarcava no mundo do progressivo e do sinfónico.” Optou pela segunda hipótese, juntando-se a uma tertúlia de amigos para quem os Yes, os Led Zeppelin ou os Genesis representavam o “crème de la crème” do Progressivo. “Havia uma coisa que nos unia, o ‘Dark Side of the Moon’. Era o disco que tinha mais audições. Individuais e colectivas. Só para ouvir ou também para dançar. Para confirmar um detalhe ou como evento conceptual. Com ou sem apoio de substâncias proibidas. Com namoradas ou sem elas. Em casa ou no liceu. Qual ‘The Lamb Lies Down on Broadway’, qual ‘Close to the Edge’, qual ‘Houses of the Holly’, ‘The Dark Side’ era o denominador comum.”
Já Eduardo Mota, dez anos mais velho, contextualiza de outra forma o seu contacto com o pomo da discórdia. “Chegado de véspera ao admirável universo sonoro do Rock Progressivo, num momento em que procurava consolidar os meus valores musicais, o disco dos Pink Floyd, para além de desiludir, veio confundir a selecção em ecurso. Para um lado ficavam os Beatles, Stones, Deep Purple, Grand Funk, Black Sabbath e quejandos, os rejeitados. Para o outro, os fascinantes Gentle Giant, Van Der Graaf Generator, Genesis, Yes, Tangerine Dream, Renaissance, Soft Machine, Caravan e os… Pink Floyd.” “Dark Side of the Moon”, contudo, provocou-lhe uma profunda decepção. Os Pink Floyd, que antes “surpreendiam com álbuns arrojados como ‘Atom Heart Mother’, ‘Meddle’ ou ‘Ummagumma’, os mesmos “que meia dúzia de anos antes, em pleno psicadelismo, ousavam assinar ‘Astronomy Domine’, uma peça premonitória do próprio Progressivo”, eram agora os Pink Floyd que “não ousavam nada, apenas alindavam”. “Não aprofundavam, preferiam simplificar. Não surpreendiam, preocupavam-se em agradar. Não experimentavam, optavam por investir com retorno mais que garantido.” Eduardo não lhes perdoou. “Não comprei o disco. Nem desejei que alguém mo oferecesse numa ocasião festiva. Irritei-me até, sempre que o ouvia passar na telefonia, na discoteca, no intervalo de uma sessão cinematográfica, ou ao ser ‘tocado’ num baile provinciano pelo ‘jazz’ de serviço.”
Álvaro Silveira não poderia estar mais em desacordo: “Dark Side of the Moon”, na altura, “era o supra-sumo da música”. “Cada faixa tinha o seu detalhe que nos fazia delirar, permitindo que o classificássemos como lago que naquela idade nos parecia altamente de vanguarda. Eram os relógios de ‘Time’, a caixa registadora de ‘Money’, o roso louco de ‘Brain Damage’, o solo vocal de ‘The Great gig in the sky’…”. Recorda ainda que “esses eram os tempos em que as danças se faziam ao som do ‘Money’ e os slows ao som de ‘The great gig in the sky’ (e de ‘Carpet Crawl’ dos Genesis e ‘Child in time’ dos Deep Purple)”.
“Depois havia aquela capa com a luz a multiplicar-se nas cores do arco-íris e que era a embalagem perfeita do psicadelismo cósmico”, acrescenta. A mesma capa a que, quase 30 anos depois, nem mesmo Eduardo Mota conseguiu resistir, acabando por adquirir “um LP miniatura japonês que reproduzia fielmente a capa, ‘poster’ e autocolante da edição original, tudo na escala reduzida de um CD”. “Um encantador objecto de colecção. Mais para guardar que para ouvir.”
Hoje, Álvaro Silveira, apesar de manter intacto o seu fascínio pelo disco, reflecte de outro modo: “Há quem associe o ‘Dark Side…’ ao fim do período de ouro dos Pink Floyd. Penso que há um exagero. ‘Dark Side’ é o disco mais importante de toda a obra dos Pink Floyd, por inúmeras razões. É a síntese na modernidade dos vários caminhos experimentados na primeira metade da sua discografia. É o abrir para a nova sonoridade que irá estender-se pela grande produção que é o ‘Wish You Were Here’. Em termos musicais foi a catarse da herança Syd Barrett e a passagem de testemunho a Roger Waters como novo timoneiro. Sem ceder ao facilitismo comercial, trouxe os Pink Floyd para o grande palco universal. Ao fim de tantos anos continua a ser referência histórica e estética.” E personaliza: “’Dark Side of the Moon’ já me acompanhou nas descidas aceleradas das pistas de esqui da Serra Nevada. Nas estradas poeirentas e desérticas de Marrocos. No calor das praias das Caraíbas. Nas tempestades tropicais africanas.” Porque, explica: “Dark Side of the Moon” é “uma das poucas obras que, ao fim de 30 anos, continuam a exigir uma meia dúzia anual de audições e que afzem parte da nossa lista de discos para levar para a tal ilha deserta.” Eduardo Mota encolhe os ombros. Afinal, será apenas o álbum que “ostenta o título de ‘o mais vendido de todo o Progressivo’”.

Ani Di Franco – “Evolve”

28.03.2003

Ani Di Franco
Evolve
Righteous Babe, distri. Megamúsica
8/10

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Verifica-se na extensa discografia a solo de Ani Di Franco um desequilíbrio axial que, se por um lado, tende a traduzir-se numa sobrecarga de produtividade e em padrões de qualidade variáveis, a distingue, por outro, da concorrência. Ani Di Franco não é nem a “singer songwriter” ideologicamente empenhada nem a biógrafa sentimental, embora estas duas facetas se cruzem e, por vezes, se digladiem, na sua escrita musical, convocando estilos vocais e instrumentais díspares. “Evolve” contraria esta tendência. É um álbum que tira o máximo partido da banda que nos últimos tempos a tem acompanhado nos concertos ao vivo. Predominam as sonoridades jazzísticas, o swing a cavalo em vagas de sopros, um balanço menos tenso do habitual em discos anteriores. Ani percute as teclas do jazz, as feridas mas também as flores e frutos latinos (“Here for now”), mantendo um equilíbrio e um nível de composição e interpretação de extrema sofisticação, como se a rebelde de outrora tivesse cedido o lugar a uma diva toda ela classe, segundo um processo de transformação semelhante ao de Suzanne Vega. O lado mais cru e confessional encontramo-lo em “Serpentine” e aí Ani despe o “vison” para se confrontar com a sua imagem no espelho, mas também com a “mafia da indústria musical”, em dez minutos de golpes de guitarra, declamação e exorcismo que – confessa – a levaram às lágrimas.

Argentina Santos – Prata da Casa (Entrevista)

25.04.2003

Argentina Santos – Prata da Casa

Aos 77 anos, Argentina Santos continua a incluir o fado na ementa da sua alma e do seu restaurante. Ainda arranjou tempo para gravar um novo álbum.

“Não tenhas medo da fama/D’Alfama mal afamada/Que a fama às vezes difama/Gente boa, gente honrada”. A quadra, escrita num azulejo incrustado na parede logo à entrada do “Parreirinha”, quase se poderia aplicar ao modo como Argentina Santos, voz e nome de prata, optou por gerir uma carreira que só recentemente, quando, em 1994, Carlos do Carmo a convidou para estar presente num espectáculo no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, começou de facto a acontecer. Dona Argentina preferiu dedicar-se por inteiro à sua casa e aos seus petiscos. O fado e a culinária estão-lhe no sangue e encara as duas como arte. Nenhuma delas mais valiosa do que a outra.
À hora de jantar, o Parreirinha enche-se lentamente de turistas. Argentina Santos está sentada, como sempre, à entrada, fazendo de anfitriã. Neste dia decide não cantar. Há ocasiões assim, em que o ambiente não se proporciona. É necessário que as pessoas estejam ali não só para ouvir cantar o fado mas que sejam capazes de o sentir da maneira mais profunda. Em vez dela, os estrangeiros podem ouvir Tina Santos. Aplaudem na mesma, à média luz, cumprindo o ritual. Argentina olha embevecida. A fadista que canta, as empregadas que servem à mesa, as cozinheiras fazem todas parte da sua família. Sente-se bem assim. Os espectáculos, como aqueles que deu no festival de Edinburgo, no Queen Elizabeth Hall em Londres, no Konzerthaus em Viena, no La Cité de la Musique, em Paris, numa digressão por Itália ou no Coliseu de Lisboa, e os discos, como o novo “Argentina Santos”, lançado na passada quarta-feira pela MVM, podem esperar. Afinal de contas não há fado melhor do que ser feliz.

FM – O novo disco demorou quanto tempo a gravar?

Argentina Santos – Poucochinho.Eu chegava e todos os fados saíram à primeira. Só num é que o Jorge Fernando me pediu para lá ir outra vez mudar uma coisinha. Mas nunca canto o mesmo fado da mesma maneira. Quando havia uma falha qualquer, ele pedia-me para gravar só aquele bocadinho. Não ensaiámos nem nada. Tenho aí fados que nunca antes cantei.

FM – Consegue cantar tão à vontade no estúdio como no Parreirinha?

Argentina Santos – Não é a mesma coisa mas, olhe, senti-me bem. Cantei os fados com menos meio tom, tinha a impressão de que não era capaz, mas ele achava que ficava mais bonito assim. Quando ouvi achei uma maravilha. Desde que a pessoa que está a tocar, toque, e eu comece a vê-lo sentir o fado… Ao ouvir um guitarrista, fico logo a conhecer a forma como reage, se gosta de acompanhar, se é fadista. Se o guitarrista não for fadista, a gente pode dar as voltas que quiser, que não vai lá…

FM – Preferiu manter-se fiel ao seu restaurante do que arriscar uma carreira como profissional. Porquê?

Argentina Santos – Tenho a minha casa. Estou cá há 54 anos, foi feita com sacrifício. É como ter uma filha e criá-la. Depois, nunca fui pessoa para andar por aí a dizer “eu estou aqui, também sei cantar…”. Mas quando vim para aqui o meu companheiro, para me deixar cantar, era um caso sério, sabe, aquelas coisas dos homens antigos… Morreu, voltei a casar, mas ainda ficou pior, então cantar lá fora, fazer espectáculos e ganhar dinheiro, escusava de pensar nisso. Mas morreu também e fiquei… solta, com mais oportunidades de cantar para as pessoas e elas de me ouvir. Aó, o Carlos do Carmo, uma pessoa que gostava de me ouvir, veio ter comigo e convidou-me para ir ao Coliseu. Mas fiquei assim, “vais não vais”, a tremer por todos os cantos, e acabei por dizer que sim.

FM – Quantas vezes canta por semana no restaurante?

Argentina Santos – Só quando vejo que há público que sabe. Quando vejo que não sentem, posso cantar dois ou três fados e muito obrigado, que vá cantar outra pessoa! Não canto marchas nem coisas com palmilhas, não é o meu género.

FM – Os restaurantes e casas de fado continuam a ser os melhores locais para se cantar o fado?

Argentina Santos – Acho que sim. Quem não entrar e cantar nas casas de fado não terá um público que saiba ouvir. E não me venham cá com essa coisa do fado vadio, o que eu chamo fado vadio é fado espontâneo, pessoas para quem cantar é um alívio. Acho que os novos devem começar por cantar nas casas de fado.

FM – Está a pensar na actual vaga de novas fadistas? Tem alguma preferida?

Argentina Santos – Sou amiga de todas elas, já cantei com todas, já fui ao estrangeiro com elas. Gosto de todas mas, e que me perdoem as outras, gosto mais da Ana Sofia Varela, é a mais fadista. Gosto muito da Mariza e da Mafalda [Arnauth], também, mas puxo mais para a Sofia. A Joaninha [Amendoeira] é uma menina doce que está a cantar melhor do que da primeira vez em que a ouvi, tem uma doçura e uma meiguice…

FM – Para se cantar bem o fado é preciso ter já experiência de vida, mais ou menos sofrida?

Argentina Santos – Sim, sim! Não concordo que um menino ou uma menina de 12 anos ande a cantar o “Povo que lavas no rio” ou “Passaste com ela à minha rua”, são coisas para pessoas adultas, não para crianças. Elas têm muito tempo para sofrer. Há quem cante o “Povo que lavas no rio” porque já sabe que vai receber aplausos, só que 50 por cento desses aplausos são pela D. Amália. Depois da morte da D. Amália pôs-se toda a gente a cantar coisas dela. Acho uma asneira. Um artista, ao fazer do fado profissão, deve procurar os poetas, aprender as letras e cantar dentro do seu estilo, não é pôr um disco a rodar e tirar dele todas as voltinhas. Para se ser fadista tem que se ter trabalho.

FM – Como Amália Rodrigues, tenciona cantar até que a voz lhe doa?

Argentina Santos – Tenho muita pena de estar a envelhecer e ter que deixar de cantar. Mas se continuar a ouvir cantar bom fado já fico muito contente. A D. Amália, o maior problema que teve nos últimos anos não foi a idade, foi a doença que lhe atacou a garganta. Mas ainda está por aparecer aquela que seja capaz de fazer o que ela fez. Além da voz linda, “estilou” coisas que hoje, quando a querem imitar, não estão a estilar, estão a gritar.

FM – No seu caso, uma das coisas que mais impressiona, é quando sobe aos agudos e parece voar como um pássaro…

Argentina Santos – E às vezes não vou mais além para não exagerar. Mas isso, graças a Deus, ainda consigo fazer.

FM – Sai-lhe sempre bem?

Argentina Santos – Não. Às vezes estou ali no meio da casa e digo assim: “só mais um fado que isto hoje nem a Amália! Desculpem mas isto hoje não está a sair como eu quero”. Não estou a sentir e ninguém me convence. Mas também é preciso ver que muitas vezes, nas casas ou nas festas, canta-se apenas um ou dois fados. Eu não, têm que me deixar cantar. Por vezes o primeiro fado não nos sai bem, a voz nem tempo tem para aquecer, depois no segundo já está melhor e é quando tem que se parar!

FM – Já deixou de participar em espectáculos por causa das suas obrigações no restaurante?

Argentina Santos – Às vezes, em ocasiões em que há muito que fazer. Mas quando vou cantar lá fora deixo tudo bem orientado, tenho empregadas já com 40 anos de casa. Mas não recomendo nada a ninguém, cada um sabe aquilo que tem a fazer.

FM – Ainda cozinha?

Argentina Santos – Quando os clientes me pedem, eu é que vou fazer o comer. Mas tive que deixar um bocadinho a cozinha por ter sido operada e já me custa estar muito tempo à frente do fogão.

FM – Cozinhar é uma arte?

Argentina Santos – Eu gosto tanto de fazer comer como de cantar. É igualzinho. Adoro estar aqui em casa e ouvir o cliente dizer-me que está bom. E tanto improviso no comer como no fado.

FM – Mas aí não tem ninguém a acompanhá-la à guitarra…

Argentina Santos – Quando muito posso pedir para me descascarem umas cebolas ou uns alhos mas o resto, quando me ponho em frente do fogão, é comigo. E posso garantir que aquilo que faço se pode comer (risos). Fazer o comer é uma coisa rica, um acto de amor.