Mafalda Arnauth – Dar Voz Às Palavras

16.03.2001
Mafalda Arnauth – Dar Voz Às Palavras
Em “Esta Voz Que Me Atravessa”, Mafalda Arnauth faz a travessia entre a voz e a poesia, saboreando tudo o que existe pelo meio. Amélia muge, senhora das palavras, produz.

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LINK (“Encantamento”)

Mafalda Arnauth é uma das estrelas mais brilhantes da nova constelação do fado cantado no feminino. Depois de um álbum de estreia promissor, a fadista apadrinhada no início de carreira por João Braga, acaba de lançar um segundo trabalho, “Esta Voz Que Me Atravessa”, onde são visíveis o amadurecimento, quer da voz, quer da composição. E uma maior atenção posta nas palavras e nos segredos e prazeres que estas encerram.
Dito de outro modo, Mafalda Arnauth ouve-se melhor a si própria. A produção do novo disco foi entregue, com alguma surpresa, a José Martins e Amélia Muge, com quem a fadista estabeleceu uma rede de empatia e cumplicidades.
Dois anos depois de “Mafalda Arnauth”, a atitude perante a música, o fado e a gravação de um disco é tudo mais espontâneo mas também mais verde”. A uma produção diferente correspondeu “uma exigência mais forte em termos musicais, o que acabou por colocar outro peso na forma de cantar, outra dimensão”. Enquanto o primeiro disco pretendia dizer “isto é o que eu sou, e como transporto neste momento isto que eu sou para um disco”, em “Esta Voz Que Me Atravessa” a diferença começa logo pelo menor número de composições assinadas em nome próprio, sinal de um ano de trabalho “em cheio” mas também de uma vontade de não escrever por escrever. “Não quero escrever de propósito para poder dizer que as coisas são minhas”. Em “esta Voz Que Me Atravessa” Mafalda Arnauth encontrou quem as dissesse da mesma forma que ela as teria dito: Hélia Correia, Amélia Muge, Mário Rainho, Hélder Moutinho e… Fausto, presente no tema “Lusitana”. Ela mesmo diz a tradição de Alfredo Marceneiro, em “Até Logo, meu Amor”.

Cumplicidades
Amélia e Mafalda encontraram-se através de Camané, para quem a autora de “Taco a Taco” escrevera uma composição. Logo aí a fadista se sentiu impelida a trabalhar com ela e o seu parceiro de há muito, José Martins. “Um e outro funcionaram como estudiosos”, diz Mafalda, “preocupando-se em ver o que é o fado, em saber deste universo e, respeitando o tradicional, debruçando-se sobre as suas fronteiras”.
“O que me impressionou acima de tudo na Amélia foi esse lado de ir ao fundo das coisas, além de ser uma pessoa com as emoções à flor da pele”. As duas olharam-se e “descortinaram-se” uma à outra. Daí até se estabelecer uma empatia foi um ápice.
Respirações e outras coisas “básicas” como esta, além de pormenores subtis, como a forma de sentir e interpretar a música, e uma maior concentração na musicalidade e significado dos poemas – “por vezes o facto de se ter na voz um bom instrumento, distrai a força dos poemas. Neste disco tive a preocupação de saborear melhor os seus sentidos” – sofreram alterações. Mas a audição de “Esta Voz que em Atravessa” prova que a colaboração foi acertada.
Ricardo Rocha, na guitarra portuguesa, José Elmiro Nunes, na guitarra de fado, e Paulo Paz, no contrabaixo, acompanham Mafalda Arnauth. Nada de inovações instrumentais, nenhum violino, nem um piano para amostra, apenas os instrumentos tradicionais do fado. Por aqui, pelo fado, as mudanças terão que surgir sempre de dentro, da capacidade da personalidade de quem canta se moldar às curvas do tempo. E é assim que Mafalda Arnauth acha que deve ser. A contestação na contra-corrente do escândalo e do folclore que outros fazem gala em exibir. Mafalda, a contestatária. Com classe e devoção.

Novo Fado?
E é assim que outras das vozes femininas do fado surgidas nos últimos tempos – para além de Arnauth, também Cristina Branco, Ana Sofia Varela, Joana Amendoeira ou Cátia Guerreiro – têm procedido, deste modo garantindo, sem cair no paradoxo, a renovação deste género musical que apenas o é enquanto existir uma certa forma de ser-se e sentir-se português. Não há “novo fado”, mas novas (e novos) fadistas, outras formas, renovadas mas sempre ancoradas na saudade (sem ela o fado é sombra sem corpo), de o (re)descobrir e cantar.
Todas elas insuflaram na alma do fado a sua própria alma. Vozes e sensibilidades diferentes a explodirem num céu que, depois da morte de Amália, se desanuviou, mostrando quão imenso era e ocupado estava. Porque Amália era toda ela o céu. A estrela que ocupava todo o espaço e tudo ofuscava. Extinta essa luz, outras lentamente se foram e vão acendendo e é o seu brilho que cada vez mais se vai firmando. “Novas Amálias” não há nem poderá haver. E o fado está agora mais dividido.
“com o desaparecimento real de Amália Rodrigues as pessoas deram-se conta que estavam a perder as suas raízes. E aconteceu a descoberta que se lá fora lhe prestavam tanta atenção era porque algo lhes estava a escapar. Após a sua morte apareceram boas vozes, mas só o tempo definirá a sua qualidade ou não, consoante a sua receptividade por parte do público”.
Porque os tempos agora são outros e as distâncias maiores, torna-se difícil, senão impossível, juntar estas vozes num qualquer movimento ou estética organizada. Hoje Mafalda Arnauth, Cristina Branco ou Ana Sofia Varela são mais facilmente divulgadas e ouvidas no estrangeiro do que qualquer fadista nas décadas de Amália. “Não é como antigamente, quando as fadistas se juntavam nas casas de fado”.
Mas talvez o mais importante não seja essa partilha. E aquilo que une, afinal, todas estas vozes que reivindicam o futuro do fado pode ser sintetizado nas palavras de Mafalda Arnauth: “Embora cada uma trabalhe na sua própria realidade, toda a gente tem a preocupação de fazer sempre o seu melhor”.

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