Pop Rock >> Quarta-Feira, 23.09.1992
PERDER O MEDO AOS MONSTROS
Em Peter Gabriel tudo se mistura num cadinho em constante ebulição: os sons que aprendeu a escutar do mundo, a tecnologia sofisticada, as suas próprias emoções. Entre os temas tratados em “Us”, o seu mais recente álbum, editado em Portugal, contam-se o medo, as virtudes do vapor e a domesticação de monstros. Mais uma gama razoável de relações amorosas. Enquanto não nasce a “Gabrieland”, uma Disneylândia futurista para os artistas brincarem. O mundo real funde-se com a realidade virtual.

Há uma inquietação constante em Peter Gabriel, que determina cada um dos seus passos e serve de motor a cada novo projecto. Antigamente, chamavam a este tipo de homens “idealistas” – os que procuravam ver a realidade através do maior número possível de perspectivas e que acreditavam que qualquer sonho podia e devia ser posto em prática. Peter Gabriel é um destes homens. Desde os tempos em que, nos Genesis, procurou alargar as fronteiras do rock, até a mistura pancultural do seu novo álbum, “Us”, passando pela criação da editora Real World e pela organização do primeiro festival WOMAD, acreditou sempre que poderia ir mais longe, e que era possível transformar o sonho em realidade.
Durante os últimos cinco anos, Peter Gabriel submeteu-se ao crivo da terapia psicológica. Por culpa de um divórcio e das confusões sentimentais arranjadas com a actriz Rosanna Arquette. A terapia é uma espécie de escavação nos terrenos baldios da alma, que permite encontrar, presos à terra, jóias e esterco. Peter Gabriel escavou até libertar o monstro que hiberna em todos nós. Numa das faixas de “Us”, intitulada, “Digging the Dirt”, ele explica todo o processo e, ao mesmo tempo, sossega-nos quanto às consequências. Os monstros ou demónios, diz ele, perdem o seu poder, quando são trazidos das profundezas para a luz do dia.
O vídeo deste tema, realizado por John Downer, parece, no entanto, não confirmar esta opinião, e mostra o paciente num estranho desempenho, entre fruta podre, cadáveres em decomposição e larvas de borboleta. De resto, Peter Gabriel passara por um período mais desequilibrado, no qual manifestara a intenção de compor um álbum sobre temas como a morte, o assassínio e a pena capital.
Acabou por inflectir na direcção oposta e assinar um disco, “Us”, que ele define como de “canções de amor”. Estranhas formas de amor e estranhas canções. A união de sangue entre Adão e Eva no paraíso (“Blood of Eden”); a influência do vapor (“Steam, definida pelo seu autor como uma canção “quente e húmida”); o desejo de purificação pela água (“Washing of the water”); princesas que beijam sapos na esperança de encontrarem príncipes mais ou menos encantados (2Kiss that frog”); o mundo secreto dos objectos (“Secret world”), entre outras experiências religiosas, sexuais e emocionais, integram a lista de temas que tornam “Us” uma amálgama, por vezes confusa, de estímulos provenientes do mundo real (por vezes, demasiado real).
O som é fruto da ressaca – ainda não curada – dos excessos de “world music” cometidos em “Passion”, ou seja, instrumentos étnicos às centenas, convidados às dezenas, muitos ritmos electrónicos como condimento, e canções que reatam a tradição dos álbuns antigos de Peter Gabriel até “So”. Daniel Lanois, o produtor, porque suportou sobre os ombros a tarefa de evitar excessos em que o cantor tenderia por vezes a incorrer, mas francamente, não se nota.
Enquanto “Us” já iguala iu ultrapassa o número de vendas de “So” – e muito ajudaram a saldar dívidas contraídas com a organização do primeiro WOMAD, uma ideia pioneira que, na época, não encontrou grande aceitação – Peter Gabriel vai sonhando com a companhia de Laurie Anderson e Brian Eno, com a Gabrieland. Uma espécie de Disneylândia tecnológica de futuro, laboratório, igualmente galeria de arte e campo de ensaios – onde não faltariam máquinas indutoras de realidade virtual, o mais recente fascínio de Gabriel, para artistas, psicólogos e toda a espécie de “loucos” poderem concretizar as suas ideias ou simplesmente se divertirem. O local já existe: 12 hectares de terrenos em Barcelona esperam a chegada do novo mundo. Seja real ou virtual.
PORTAS E JANELAS
Pode dividir-se a discografia completa de Peter Gabriel em três fases: a primeira, partilhada com os restantes elementos dos Genesis, constitui um dos capítulos mais brilhantes da música progressiva dos anos 70. É a fase da valorização poética, do sonho e das grandes encenações, vocais e teatrais. A segunda, que vai do disco homónimo de 1977 até “So”, corresponde à visão solitária de um poeta que trocou, como fonte de inspiração, as fantasmagorias vitorianas pelo pesadelo urbano. Uma fase de dilaceração e, em simultâneo, de construção de uma personalidade nova. A terceira, com preâmbulo nos festivais WOMAD e na criação da editora Real World, mostra um Peter Gabriel liberto de si próprio e com o coração, os olhos e os ouvidos voltados para as músicas do mundo. Começou com “Passion” e encontrou um ponto de equilíbrio precário no novo “us”. Resta saber se tudo permanece em aberto ou se, pelo contrário, Peter Gabriel foi dar a um beco enfeitado de exotismos. Ele que um dia afirmou ser perito em abrir portas e janelas.
Peter Gabriel (1977)

Os Genesis tinham ficado para trás, mas as feridas não estavam totalmente saradas. “The Lamb Lies down on Broadway”, derradeira obra do quinteto, saíra na quase totalidade da pena do seu actor / vocalista. Era chegado o tempo de afirmação de uma personalidade… também de mudança para outras latitudes. O primeiro trabalho a solo marca a ruptura de Peter Gabriel com a viagem de contador de fábulas que os discos da banda punham em relevo. À poesia de canções como “Solsbury Hill” , “Humdrum” e “Down the dolce vita”, ainda não totalmente afastadas do veio Genesis, Gabriel contrapõe a violência ainda bastante controlada e sobretudo temática, de “Modern Love” e “Waiting for the big one”. “Moribund the Burguermeister” prenuncia, à distância de mais de uma década, o mergulho nas sonoridades world. “Here comes flood” é um hino apocalíptico que até hoje continua a queimar a memória. A guitarra de Robert Fripp ateia os primeiros incêndios.
Peter Gabriel 2 (1978)
O som torna-se mais agressivo. A magia do mundo de histórias e da Inglaterra vitoriana apaga-se em definitivo. Ficam as sombras e as ameaças. Peter Gabriel aprende cada vez mais depressa a tirar partido da paranoia. As capas dos discos acompanham o processo que em breve se mostraria ser de desagregação. Na do primeiro, o cantor parece fechado no interior de um automóvel, ao abrigo da chuva (do dilúvio). A imagem é de tristeza e abandono. Agora passa a ser de fúria. As mãos “rasgam”, do interior, a fotografia. O ar é demoníaco. Na contracapa, Peter Gabriel atravessa uma paisagem de lixo urbano. Tudo a preto e branco, como convém. “Mother of violence” e “Animal Magic” dão expressão a esse fogo. A essa quase luta pela sobrevivência. “Exposure”, recuperado posteriormente para o álbum do mesmo nome de Robert Fripp, e “White Shadow”, o tema mais perturbante, em que se torna nítida a influência das concepções musicais do antigo guitarrista dos King Crimson, balizam o caminho que viria a ser percorrido no álbum seguinte.
Peter Gabriel 3 (1980)
Até à data, o disco onde melhor se expressam as diversas divagações estéticas exploradas pelo ex-Genesis. Passando incólume pela avalancha punk, Peter Gabriel afirma orgulhosamente que sabe “qualquer coisa sobre abrir portas e janeasl”. “No self control”, “I don’t remember”, “And through the wire”, “Family snapsot” confirmam na verdade as suas reais capacidades de serralheiro. O som torna-se mais complexo, a par da violência, sempre crescente, e da teia intricada de sentidos sugerida pelos textos. Aproxima-se o ponto de combustão. E do não retorno. As preocupações sociais, que nos Genesis se ocultavam por detrás do humor “nonsense” e da simbologia surrealista, como acontecia em “Harold the barrel” (de “Nursery Cryme”) ou, de forma mais directa e interveniente, em “Get ‘em out by Friday” (“Foxtrot”), são atiradas para a primeira linha das inquietações do autor, na paródia ao eurovazio de “Games without frontiers” ou no manifesto anti-“apartheid”, “Biko”. O poder do batuque aumenta a intensidade – Gabriel dispensa a utilização de outros instrumentos de percussão para além dos tambores que aqui rivalizam com os prodígios do recém-descoberto Fairlight CMI, pai de todos os samplers. A capa apresenta o rosto do artista corrído e deformado por ácidos. O processo alquímico passava pela fase do “putrefacto”.
Peter Gabriel 4 (1982)
Regresso a casa, por ínvios caminhos. Não parece, mas é o álbum mais próximo dos Genesis, da primeira fase, evidentemente. Música progressiva, camuflada por uma utilização maciça de electrónica, em registo barroco e sobrexposição de imagens. Capa colorida por filtros e efeitos vídeo. Dentes que rangem. Dor. Poderia ser a continuação da “trip” de ácido de “The Lamb Lies down on Broadway”. “The family and the fishing net”, “Lay your hands on me” e, sobretudo, “Wallflower” não destoariam ao lado das boas canções dos Genesis. “I have the touch” e “Shock the monkey” usam e abusam dos ritmos electrónicos. “Rhythm of the heat”, “San Jacinto” e “Kiss of life” dos ritmos tribais. Faltava apenas ultrapassar a barreira do rock e do sucesso – o que Peter Gabriel conseguiu, no álbum seguinte – para se abrir de par em par a porta de acesso aos mundos do “mundo real”.
So (1986)
Entre os dois álbuns de estúdio, Peter Gabriel deixou registado o duplo “Plays live”, em cuja capa curiosamente aparece fotografado com o rosto pintado, ao estilo característico das antigas encenações nos Genesis. “So” é conciso, no título e nos sons. Mais directo e acessível do que qualquer dos discos anteriores, recupera a energia depurada do rock ‘n’ rol. “So” representa para Peter Gabriel o mesmo que “Nadir’s Big Chance” para Peter Hammill – a libertação e o exorcismo da tensão acumulada ao longo de vários anos de busca constante de novas formas musicais, a par de novos meios de expressão, poética e conceptual. O descanso do guerreiro. O disco alcança um sucesso sem precedentes. Nos Estados Unidos atinge o primeiro lugar do “top” de vendas, no Reino Unido sobe ao número quatro. “Sledgehammer”, editado em single, é ao mesmo tempo a síntese perfeita da nova orientação seguida por Gabriel e um dos vídeos mais inovadores da história do rock. Resultados compensadores para um trabalho cujo orçamento rondou as 120 mil libras e que demorou perto de 100 horas a gravar. Rentabilizam-no as presenças, entre outros convidados, do senegalês Youssou N´Dour e de Kate Bush, que ao lado de Gabriel contribui com a sua voz para um dos piores (e mais divulgados) temas do disco, “Don’t Give Up”.
Passion (1989)
Banda sonora da “Paixão” filmada por Scorceses. Primeiro volume da série Real World. O termo “world music” começou aqui. A música propriamente dita já existia há alguns milénios. Não havia era produtores interessados. “Passion” é tudo o que imaginamos a respeito de flautas de bambu, tambores do Mali e cânticos rituais das mais recônditas regiões do globo. Os sintetizadores são o catalisador que evita o choque de sensibilidades entre o Ocidente e o terceiro, quarto, quinto mundo e seguintes. “Passion” é um desfile de lugares-comuns onde a beleza é tudo menos natural. Bem mais genuíno, e sem a participação directa de Gabriel, é “Passion Sources”, o objecto intacto, não polido, o verdadeiro, o único, o inimitável “mundo real”. O álbum é também um galarim de músicos não ocidentais: Hosam Ramzy, Manu Katché, Shankar, Vatche Housepian, Mustafa Abded Aziz, Baaba Maal, Youssou N’Dour, Nusrat Fateh Ali Khan. E Jon Hassell que tem um pé de cada lado. Paixão, da que inflama sem remédio, é que não há muita.
“UNITED COLOURS OF GABRIEL”
PETER GABRIEL
CD / MC / 2xLP, Real World, distri. Edisom
Em termos conceptuais “Us” apresenta diversas pistas e coincidência interessantes. Peter Gabriel é, antes de mais, um homem de ideias, de projectos. A música vem depois, como complemento. “Us” aborda, segundo o seu autor, o problema da “união” – de dois seres, dos sexos, de culturas afastadas, das relações humanas em geral – a diferentes profundidades e com índices de êxito variáveis. Isto numa altura em que o ex-Genesis se libertara do fantasma do divórcio com Jill Moore, com quem mantivera uma relação de váriosa anos, e da relação extra-conjugal com a actriz Rosanne Arquette. O tema da união aparece logo mencionado, de forma oblíqua, na capa, com a imagem de um Petr Gabriel azul perseguindo uma figura fantasmagórica de mulher. A “outra” ou a sua própria polaridade feminina, que os antigos filósofos herméticos desiganavam por “alma” e os latinos por “anima”? O fundo aparece pintado de vermelho-rubi, cor que em termos simbólicos, alquímicos, simboliza a última fase da obra, correspondente à união final, às núpcias e ao renascimento do andrógino original.
“Us” é “nós” ou sigla acidental de “United states”? Estados Unidos, estados de união, com quê e com quem? A música, os textos, as próprias explicações do autor permitem algumas respostas.
Em termos musicais “Us” pode definir-se como um compromisso entre a visão “personalista” de toda a discografia de Gabriel até “So” e a “overdose” de sonoridaees “world” de “Passion”: ritmos tribais, instrumentos exóticos rebuscados de vários pontos do globo, electrónica em dilúvio constante e as vocalizações inconfundíveis de um Peter Gabriel que parece ter ficado refém de um número restrito de fórmulas já antes exploradas. Temas há que remetem para outros mais antigos: “Come talk to me” está na mesma linha de “I have the touch” (do álbum nº 4), “Steam” é a continuação de “Sledgehammer” (de “So”), “Only us” entronca no grupo de “Family & the snapshot” (do terceiro álbum) e assim sucessivamente, num repisar de esquemas conhecidos.
Outro esquema que se repete é a utilização de uma convidada feminina. Depois de Kate Bush chegou a vez de Sinead O’Connor acrescentar um pouco de sal vocal a temas como “Come talk to me” e “Blood of Eden”. São possíveis aproximações divertidas. “Blood of Eden” junta o violino de Shankar, a voz da vocalista careca e versos como “I feel the man in the woman and the woman in the man” (força, união!) numa espécie de “world gospel” com sabor a Paul Simon e a meninos de Deus, num registo idêntico ao dos piores horrores vocais de “Passion”. Também não deixam de ser engraçados os ocasionais pontos de encontro, ao nível das vocalizações, de Gabriel com Phil Collins, em “Love to be loved” num arranjo etéreo a que não é alheia a presença de Brian Eno, ou com Roger Waters (de “The Wall”), em “Washing off the water”, tema não muito distante de “Here comes the flood”.
“Digging in the dirt”, single lançado previamente no mercado, explora o lado negro da personalidade e lá está Peter Hammill dando o seu apoio vocal sob a forma discreta de um eco gutural, ele que sempre foi paleólogo e escafandrista das regiões interiores. “Steam”, o tal prolongamento de “Sledgehammer” é violento q.b., entre falsetos de angústica e uma secção de metais que recria os bons velhos tempos em que a Stax tinha “soul”. Neste e noutros temas, David Rhodes mostra-se um exímio guitarrista. “Only us” pisca o olho ao psicadelismo. “Fouteen black paintings” é étnico até à saturação e “Kiss that frog”, efabulação psicológica sobre a puberdade feminina, inclui alusões (Gabriel chama-lhe “subtexto”) sexuais. Finalmente, “Secret world” é maquinal à maneira dos Kraftwerk, melódico à maneira de Eno dos tempos de “Taking Tiger Mountain” e tão secreto como uma “canção de amor”. “Us” pode considerar-se, todo ele, de resto, um disco de canções de amor.
Registe-se por último – entre a miríade de músicos convidados dos quatro cantos do “mundo real”, os ilustres Sinead O’Connor, Eno, Peter Hammill e Shankar, ou os “session men” de nomeada que são Manu Katche, David Rhodes, Richard Blair, David Botrill e Tony Levin – as presenças inesperadas de Caroline Lavelle, no violoncelo, do grupo irlandês Touchstone, do mago das misturas William Orbit, mentor do projecto The Orb, ou do ex-Led Zeppelin John Paul Jones que depois da participação no novo trabalho de Brian Eno, “Nerve Net”, volta a figurar numa ficha técnica de prestígio.
“Us” é um por todos e todos por um. A união faz a força. (7)