Arquivo de etiquetas: Negativland

Stealing Orchestra – “Querida, Encolhi A Música!” (artigo de opinião e entrevista a propósito do lançamento de ‘The Incredible Shrinking Band’) + Residents (The) + Kubik + Mola Dudle + Negativland + Biota

(público >> y >> portugueses >> artigo de opinião)
26 Setembro 2003


Querida, encolhi a música!

Para os Stealing Orchestra um disco é um mundo de possibilidades. Com velhos discos e filmes montaram “The Incredible Shrinking Band”, que alargou o espectro sonoro da orquestra.



“The Incredible Shrinking Band”, segundo longa-duração dos Stealing Orchestra, depois de “Stereogamy” (e do EP “É Português? Não Gosto!”), rouba o que pode e onde pode. A começar pelo título, adaptado de um filme de série B, “The Incredible Shrinking Man” (Jack Arnold, 1957), hoje fita de culto.
A operação de encolhimento traduz-se graficamente numa capa a fazer lembrar os Negativland e materializa-se literalmente na faixa de encerramento, “Happy ending theme”, segmento sónico que em segundos condensa as restantes 14 faixas. O disco termina com uma mensagem subliminar na voz de um Wally ambíguo que cada um tentará identificar.
Pelo meio, os Stealing Orchestra, sob a alçada ideológica de João Mascarenhas, propõem as sonoridades mais estranhas, designadas por títulos não menos bizarros como “Que Deus te dê o dobro de tudo o que nos desejares”, “Tetris (beware boy, videogames are evil)”, “The darkside of a travesti”,”The living dead whistlig quartet”, “How to make a killer rat” e o inultrapassável “Sorry captain.but…shouldn’t we be thinking about cosmic hazards instead of destroying our spaceship and kitting the crew?”.
São ilustrações, pinturas de som equivalentes às colagens surrealistas que Armando Brás criou para o folheto, ilustrativos de uma insanidade controlada que remete os Stealing para uma linhagem de grupos que inclui os Residents, Biota, Renaldo and the Loaf, Yello, Startled Insects, Olívia Tremor Control ou os já citados Negativland, bem como Pascal Comelade ou artistas como Duchamp, Breton, Ernst, e Salvador Dali.

asilos. Vale tudo e vale a pena averiguar. Os Stealing Orchestra sacam aos discos e filmes de vários estilos e épocas aquilo que neles é passível de ser manipulado até adquirir a forma de música. Os resultados variam de faixa para faixa como as simetrias de um caleidoscópio: valsas à maneira dos Stranglers, surf music, easy listening, jogos de consola, eletrónica-champagne, uma citação intrusa dos Pink Floyd psicadélicos (não, eles nunca ouviram, juram, e nós fingimos acreditar…), excertos de emissões e estática de rádio, vozes camufladas e melodias umas vezes diabolicamente retalhadas outras de uma simplicidade desarmante. Para confundir ainda mais, não faltam “Os Caretos de Podence”, com emulações de gaita-de-foles sintética de folk mirandesa formatada em disquete.
Não há uma tradição, cá dentro como lá fora, para este “tipo” de música, pela razão de que a loucura, mesmo quando elevada a método (estético ou sociológico), é ferozmente individualista. Cada caso é um caso e entrar em cada um deles pode ser uma aventura imprevisível.
Claro, encontram-se na pop asilos bem demarcados. Se os Negativland abusam da colagem como dispositivo de sabotagem, não só estética como política, e os Olivia Tremor Control recorrem ao “corte e costura” como ferramenta de um novo Psicadelismo, já Pascal Comelade se perfila como genuíno “naif” para quem a música é, como nos Stealing Orchestra, uma miniaturização de géneros e mitologias enrolados no cilindro de um realejo. O autor de “El Cabaret Galactico” é, de resto, das poucas influências assumidas pelo grupo português.
Outros mestres-redutores, como os Residents (o seu álbum de 50 “jingles” de um minuto cada permanece como símbolo da publicidade filtrada pela esquizofrenia e pela perversão), inserem-se num projeto mais global de subversão que procura atingir o âmago da pop. Os Biota fazem o mesmo mas propagam a doença, infetando cada som com uma agonia. Idem em relação aos Startled Insects, com a diferença de que estes ousam interferir com os cânones da música de dança. Já os Renaldo and the Loaf são malucos a quem ofereceram instrumentos de música e um contrato de gravação e os Yello uma variação “light” dos Residents. Ponto assente: sem o trabalho pioneiro de Raymond Scott, o cientista e visionário louco de “Manhattan Reserach Inc.”, nenhum dos outros se atreveria a fazer o que fez e a expor as respetivas
taras em público.
De entre esta lista de ilustres anjos do bizarro (parafraseando o título de um conto de Edgar Allan Poe) é no mundo mais afastado do horizonte de referências dos Stealing Orchestra que se detetam enigmáticas coincidências. E que outro grupo pode estar mais afastado da normalidade do que os Biota, autores de “Almost Never”, “Tinct” e “Object Holder”, compêndios e rituais de passagem para o pesadelo? Como os Biota, os Stealing Orchestra constroem parte da sua estranheza através da justaposição de instrumentos acústicos, como o piano ou o acordeão, e programações eletrónicas, segundo a lógica de “cadavre-exquis” surrealista, que encadeia as imagens mais incongruentes. Desta conjunção de contrários resulta uma fenda entreaberta que faz desequilibrar, ou apagar, as mnemónicas a que se recorre para fazer a descodificação de uma particular organização mental/musical. Se os Biota filtram no estúdio sanfonas e saxofones até estes soarem como emanações tuberculosas de hinos sobrenaturais, os Stealing Orchestra sequenciam valsas e fragmentos de uma folk imaginária, ou nem por isso (como nuns “Caretos de Podence” cujo mistério se desvanece ao conhecermos as origens transmontanas de João Mascarenhas), cuja força advém, precisamente, da ausência ou deformação de contexto. Nos Stealing Orchestra nada encaixa numa explicação lógica e tudo se passa como as imagens de um sonho. E, no entanto, o filme que fazemos com elas fala uma linguagem que reconhecemos. Ou julgamos reconhecer.
E daí, talvez não, se pensarmos que “The Incredible Shrinking Band” demorou três anos e meio a gravar e que a organização destes O.V.N.I.s sonoros terá custado a João Mascarenhas mais do que uma noite sem dormir. Foi difícil encontrá-lo, porque encolheu até à escala de 1:260. Encontrámo-lo a praticar natação no interior de um dos sifões de água que matam a sede à Redação do PÚBLICO. Como é que lá foi parar, não quis dizer nem nós conseguimos imaginar. Mas não podíamos desperdiçar a oportunidade. Depois de se enxugar num pedaço de toalhete de papel e de escapar por um triz a ser espezinhado por um jornalista, prontificou-se a dar explicações. Já instalado no aconchego de uma caixa de fósforos, foi mesmo assim com alguma dificuldade que conseguimos ouvir com nitidez este “incredible shrinking man”. Segue-se a relação de algumas das verdades liliputianas que nos transmitiu.

ideias em lata.
MÉTODO DE COMPOSIÇÃO: “Faço as bases, com samples, depois gravo para CD, passo aos outros músicos [Pedro Vidal, Fernando Sousa, Gustavo Costa] e discutimos o que se pode aumentar aqui ou colar ali. Finalmente trabalho outra vez os temas e dou-lhes as programações para trabalharem sozinhos”.
LOCAL DE TRABALHO: Em casa. “Às vezes não consigo dormir. Estou com um som na cabeça e não descanso enquanto não conseguir fazê-lo. Vou para o computador ver se sai alguma coisa. Se sai, continuo, se não…”
FONTES SAMPLADAS: Discos e filmes. “A mais descarada: os Bonzo Dog Doo Dah Band, em ‘Time travelling waltz’, cinco segundos de Brigitte Bardot, de “Tous les garçons”, num ‘pitch’ lento.”
AUDIÇÕES RECENTES: Robert Mitchum. Ouve pouca eletrónica. “Não gosto do som eletrónico”. Nos anos 80: Front 242, Skinny Puppy. Mais tarde: Portishead. Massive Attack, Aphex Twin…
SOFTWARE UTILIZADO: “Básico e primitivo. Já o uso há 11, 12 anos, um programa que cabe três vezes numa disquete, quando hoje é tudo ‘software’ em dois CD. Habituei-me. É como um gajo que toca guitarra e não quer mudar de instrumento”.
UM HERÓI: Raymond Scott. A fase do jazz. “Gosto de todos os discos que saem pela Basta, como os dos Beau Hunks”. “Adoro os anos 20”.
O LIXO E O LUXO: “Um sample não tem que ser lixo só porque é de um artista mais foleiro. Às vezes ouço bandas a dizer, orgulhosas, que samplam os Kraftwerk. É uma treta. O que é que interessa de onde vêm os sons? O que interessa é o que se faz com eles. Tanto pode ser Piazzolla como Quim Barreiros”. Critério: “Tem a ver com a preguiça. Uso os sons disponíveis, não tenho pachorra para arranjar mais. Na escola, quando me mandavam fazer uma redação, se não me dessem um tema, não era capaz. Com um tema, desenvolvia facilmente. Um ‘sample’ é como se fosse um tema”
MÚSICO OU NÃO-MÚSICO: “Não-músico. Não leio pautas. Músico é um gajo que tanto toca num projeto experimental como numa cena mais foleira, para ganhar dinheiro. É uma profissão”.
ECLETISMO: “Tanto podemos fazer misturas de uma banda de ‘dead metal’ como os Holocausto Canibal como de Kubik. Uma vez tentei fazer uma música pimba, para ver se era fácil. Não saía. Afinal não é assim tão fácil. Como não é fácil fazer electroclash ou hip-hop”
CONCERTOS: “Nunca vi ninguém fazer nada de jeito em palco com um computador, os tipos estão ali a fazer de conta que estão a tocar. Antigamente levava um até que me fartei. Gravo as programações todas em CD, fazemos ‘play’ e tocamos por cima, como uma orquestra que estivesse lá atrás”.
UM FINAL FELIZ: “‘Happy ending theme’ é o disco todo comprimido a andar para trás, como um grande loop. Não vou revelar o que a voz diz no final. Dá mais gozo pôr o disco a rodar ao contrário e tentar perceber. Esperemos que ninguém leve a mensagem a sério…”


anjos do bizarro

No corpo da hidra monstruosa que é a
música pop não faltam excrescências
que extravasam os limites impostos
pelo “mainstream”, ou seja, pela
“normalidade”. Os álbuns
seguintes, nacionais e
estrangeiros, são clássicos
da marginalidade
cultivada como estética, em
que as únicas regras são as
da loucura, do perigo e da
transgressão. E do humor,
tantas vezes separador entre
a patologia, a obra de arte e o
gratuito.


THE RESIDENTS
The Third Reich ‘n’ Roll

Ed. Euro Ralph

Quem são, de onde vêm, o que pretendem? Ninguém sabe. Agem como toupeiras a escavar os túneis que minam os alicerces da pop. Os “eyeballs” de fraque e cartola são os diletantes do horror em banda-desenhada, “compères” de uma alucinação sem fim que vem dos anos 70 e hoje se estende por videojogos para maiores de 21. “The Third Reich ‘n’ Roll”, de 1976, é uma das etapas mais bizarras deste percurso pelos subterrâneos da pop, dividida num par de aberrações onde são amolgados e cuspidos, numa avalanche de ruído e vozes de diabretes, “hits” pop dos anos 60 e 70: “Swastikas on parade” e “Hitler was a vegetarian”. Ou de como destapar o diabo e escancarar o carácter intrinsecamente totalitário da música de massas.

BIOTA
Object Holder

Ed. Recommended

Ao contrário dos Residentes, é conhecida a identidade dos Biota: uma equipa de músicos e artistas gráficos sediados em Fort Collins, EUA, preocupados com o “bombardeamento das crianças pela tecnologia” e empenhados na manipulação eletrónica, até à aniquilação, de instrumentos acústicos como a sanfona, trompete, teclados e, em “Object Holder”, da voz humana
Se os Residents são a subversão da pop os Biota transferem-na para um mundo de espectros. A música é um aglomerado tóxico de anti-matéria em metamorfose, miasmas desfocados de “world” inexistente, “free jazz” nas rotações e pelos músicos errados. Como num teste Rorschach é a nossa imaginação que faz nascer os monstros.

NEGATIVLAND
Escape from Noise

Ed. Seeland

Os Negativland disparam aqui rajadas de colagem e eletrónica devedoras de Raymond Scott mas que antecipavam as atuais “funny electronics” alemãs, em canções que denunciam o ridículo e os podres do quotidiano da América. Pulveriza-se com veneno mata-ratos a mediocridade do rock “mainstream” (o verdadeiro “noise”), expõem-se os vícios do pai de família que vê às escondidas o canal Playboy ou, simplesmente, sintetiza-se o atual estado de coisas num título como “Methods of torture”. Entre os convidados, encontram-se “freaks” como Steve Fisk, Fred Frith, Mickey Hart e Jerry Garcia (Grafteful Dead), Henry Kaiser, Mother Mothersbaugh (Devo), Tom Herman (Pere Ubu), Alexander Hacke (Einsturzende Neubauten) e os…Residents.

MOLA DUDLE
Mobília

Ed. Anana

Os portugueses também sabem fazer esgares. Os Mola Dudle desarrumam a eletrónica de entretenimento para nos fazer tropeçar no espanto. Desarrumação com a aparência de caos, todavia encenada com uma exatidão matemática por Nanu e Miguel Cabral, os dois que arrastam a mobília e eletrodomésticos de museu pelo chão. “Found objects”, instrumentos convencionais manipulados até ao âmago da sua estrutura atómica, programações histéricas ou “easy listening” arrancadas aos cartazes da escola de circo da editora Storage Secret Sounds e vocalizações sem tino condensam uma música inteligente mas por enquanto capaz de divertir apenas aqueles ouvidos sem receio de gozar consigo mesmos. Vale a pena mobilar a música portuguesa desta maneira. Os Mola Dudle foram ao ponto de porem microfones nas mãos do caruncho.

KUBIK
Oblique Musique

Ed. Zounds

O que nos Mola Dudle soa a polimento dos móveis, em Kubik (Victor Afonso) é metal, cimento e objetos brutos. “Oblique Musique” insere-se numa escola de sons que remonta à música industrial, aproveita os ensinamentos do minimalismo e assimila métodos de colagem, quer da eletro-acústica e acusmática quer dos figurinos “prêt-a-porter” da pop, mas neste campo, como em tudo, vale a imaginação do autor. Kubik usa o sampler como artilharia pesada, avançando nas programações a bordo de um tanque e fazendo denotar granadas a cada intersecção de géneros como a música étnica, melopeias repetitivas e o catálogo geral de deformações causadas pela “industrial”. Admirável é o modo como Kubik sobrepõe citações e humor, tripas e automatismos, linguagem de máquinas e existencialismo humano, criando perspetivas mutáveis como uma gravura de Eischer.

Anúncios Desclassificados: Negativland – “Escape From Noise” + Residents – “Commercial Album” + Yasuaki Shimizu – “Music For Commercials”

Pop Rock

20 MARÇO 1991

ANÚNCIOS DESCLASSIFICADOS

Publicidade é manipulação. Lavagem ao cérebro com o detergente psíquico da moda. Os publicitários são como os glutões do anúncio – gostam de ver o mundo muito branco para poder redesenhá-lo segundo as exigências do mercado. Fazer publicidade é “dar música”. A maioria dos músicos não se faz rogada e aproveita: um “slogan”, um boneco colorido, um patrocínio dourado, sabem a mel quando a vida está difícil e o produto não vende. Mas há sempre os desmancha-prazeres, psicopatas disfarçados de artistas, que rasgam os cartazes, fazem estalar o verniz, cospem na sopa e batem na avó. Os Negativland e os Residents fazem gala de pertencer a este grupo vergonhoso.

Gravam discos que as massas ignoram e que ainda por cima destabilizam. Pauzinhos na engrenagem, sem marca registada, nem campanha de “marketing”, nem código de barras. Dedicam-se à sabotagem sistemática das regras do jogo, mas fingem que não.
Os Residents editaram, em 1980, um álbum com 40 temas, cada um com a duração exacta de um minuto, para servir de “jungles” publicitários. Um single com mais dois temas-minuto serve de bónus promocional. Chamaram ao disco “Commercial Album”. Por seu lado, os Negativland incluem na sua música fragmentos de anúncios, subvertendo-lhes o sentido, reduzindo a mensagem publicitária a pó que nem sequer serve para matar baratas. “Há alguma maneira de fugir ao ruído?” – perguntam, enquanto fazem explodir automóveis e enunciam em voz monocórdica a lista de vacuidades poluidoras dos tops americanos – Michael Jackson, Fleetwood mac, Hue Lewis and the News, Heart, Madonna e demais produtos de consumo imediato. Yasuaki Shimizu, mais clássico, não engana ninguém – música de qualidade para produtos de prestígio.

NEGATIVLAND
Escape From Noise
Rec Rec

negativland

Os Negativland são os maiores inimigos da Coca-Cola, da Levi’s e dos mísseis Patriot. Só pelo nome se vê que são do contra. Vêm da contracosta americana. Voltam tudo de pernas para o ar. Até a fotografia da capa. Reduzem o mundo conceptual a um amontoado de significantes despojados da sua original função comunicativa. Música, marcas comerciais, política, televisão, a sociedade industrializada inteira, não passam de imagens (aparentemente) desconexas de um filme sem realizador nem enredo. Documentário apocalíptico que em 20 minutos pulveriza 20 séculos de cultura (da história da América tratam em questão de segundos). Tudo se concentra na vertigem do instante – paranóias, signos, sons das mais desvairadas proveniências, anunciam a ultrapassagem da “aldeia global” de que falava McLuhan. O mundo é uma anedota, um desenho animado cruel em que Jerry abocanha Tom e o Coiote arranca meticulosamente as penas de Bip-Bip. O conceito de publicidade torna-se sinónimo de totalitarismo, de agarra o Ocidente e espremê-lo com força até o despedaçar, fazer uma papa com os restos e chamar ao sucedâneo “BogbrotherBush”, em embalagem de sopa de letras instantânea, pronta a consumir.
Os Negativland são cínicos, como não poderia deixar de ser. Logo na abertura inventam um “spot” radiofónico, anunciando que o disco foi elaborado cientificamente em laboratório, seguindo à risca os requisitos necessários à fabricação de um “hit”, destinado a ser passado no éter. Curioso foi observar as reacções dos “media” a esse disco e ao seguinte, “Helter Stupid”, no qual levam ainda mais longe a manipulação dos canais de informação, inventando uma história de assassínio provocado pela audição da sua música – um adolescente escuta “Christianity is Stupid”, faixa do anterior “Escape From Noise” e, zás!, num acesso de loucura, mata a família toda à facada, rivalizando com o velho Jason nos seus delírios de “Friday, the 13th, night fever”. Sugere-se que a citada faixa contém mensagens satânicas que induziriam o auditor ao assassínio, não se sabe se como um das belas-artes. A (falsa) notícia explodiu como uma bomba. Os jornais e a rádio americanos caíram no logro e falaram sobre o caso, analisando-o em detalhe e acrescentando-lhe novos e sórdidos pormenores, de acordo com o célebre fenómeno conhecido por “bola de neve”. Mil vozes bradaram contra a música rock – mãe de todos os vícios e perversões. Que se prendesse a pandilha toda, condenando os Negativland à vergonha e humilhação no pelourinho da indignidade pública.
Depois, quando a verdade se soube, que se tratara apenas de uma “inocente” brincadeira, os rostos coraram, tossicou-se um pouco e voltaram-se os holofotes para o outro lado. Os Negativland conseguiam, por obra e graça de um simples disco, a proeza de desmontar, de forma extremamente inteligente, todo o universo mediático, servindo-se da publicidade para apontar o vazio que se instalou no interior da própria “verdade dos factos”.
“Escape From Noise” e “Helter Stupid” acertam em cheio no alvo. A indústria jamais lhes perdoará. Os retalhistas também não. Os “advertising men” muito menos. Em nenhum concurso Carlos Cruz atribuirá cabazes cheios de discos dos Negativland como prémio de consolação. O próximo álbum da tristemente célebre banda da contracosta americana e da “terra negativa” chamar-se-á, segundo tudo indica, “U2”. Nada escapa a estes brincalhões.

RESIDENTS
Commercial Album
Ralph Rec

residents

Um minuto para publicitar a disformidade. Sessenta segundos de bizarria – o tempo exacto que cada uma das estranhas “canções” da banda mais esquisita do universo leva para dizer, alto e bom som, que “loucura é felicidade”, a “juventude é muito louca” e “compre já antes que esgote”. As regras são outras. A lógica seguida parece-se mais com aquela desses outros residentes, ali para os lados da Avenida do Brasil – fragmentada, imprevisível, por vezes perturbante e assustadora. São “jingles” publicitários – garantem os Residents –, mas como é que se pode acreditar nas palavras de alguém que gosta de se disfarçar de camarão, como é caso destes facínoras? Que crédito se pode dar a indivíduos que gravaram um disco com temas dos Beatles e dos Rolling Stones e lhe chamaram “The Third Reich’n’roll”? Será possível levar a sério um grupelho de pataratas com pretensões a intelectuais, que afirmam querer editar até ao final deste século uma série de álbuns com interpretações demenciais da música dos grandes compositores americanos deste século? Não, meus amigos, não se pode dar corda nem ouvidos a energúmenos desta laia, sob pena de ruírem de vez os alicerces culturais que sustentam a nossa civilização.
Do início da década de 70, altura em que irromperam na cena um de toda a cena musical, até hoje, continua desconhecida a verdadeira identidade dos membros da banda. É o mistério mais bem guardado de toda a história da música rock. Qual publicidade? As massas querem é rostos sorridentes, corpos de fazer sonhar, frases bombásticas, remédios contra a caspa, sapatos voadores, de preferência tudo junto. Algumas das canções-minuto deste disco têm títulos que são autênticas marcas comerciais: “Love is…”, “Secrets” ou “Moisture”, por exemplo, poderiam perfeitamente passar por nomes de perfumes. Outros, como “Perfect love”, “Loss of innocence”, “Possessions”, “Handful of desire” ou o magnífico “Act of being polite”, são ideais para preservativos. Já “Give it to someone else” ou “Ups and downs” soariam como menos próprios para idênticos fins. O pior são os medonhos “The nameless souls”, “Die in terror”, “Tragic bells” ou “The coming of the crow” – insecticidas, talvez… Chris Cutler, Fred Frith e Snakefinger são alguns dos anunciantes deste disco.

YASUAKI SHIMIZU
Music for Commercials
Made to Measure

yasuaki

O japonês Yasuaki Shimizu, como todos os japoneses, prefere a subtileza e a discrição – compôs música computorizada para anúncios televisivos da Knorr, Seiko, Sharp, Suntory, Honda, Bridgestone, etc., deu-lhes uma embalagem de luxo e apresentou a lista de supermercado como “produto artístico de qualidade” – táctica eminentemente nipónica, de reconversão, polimento tecnológico e deslocação do conteúdo ideológico original, para posterior exportação. Aqui a diferença está no fino sentido de humor e na asserção de que a Arte pode (e deve) ser conivente com a publicidade. Ao contrário dos Negativland e dos Residents, Shizimu fala a sério, ou pelo menos parece. Interessante a possibilidade de ouvir, sentado confortavelmente numa poltrona e a fumar cachimbo, o som de anúncios, sem imagens, num sofisticado leitor de compactos. Não menos interessante seria observar o fenómeno equivalente, em termos visuais – por exemplo, um “spot” das baterias Tudor, realizado por Manuel de Oliveira, ou as senhoras da Planta a dizer de sua justiça diante da câmara de Greenaway. Oshima e Almodôvar não poderiam, como é óbvio, filmar nada.

negativland – escape from noise – aqui
residents – commercial album – aqui
yasuaki shimizu – music for commercials – aqui



10 Mais de 1997

26.12.1997
10 Mais de 1997

kreidler_weekend

LINK (Kreidler – “Weekend”)

Fuschimuschi Math-Ice – “Short Stories”
Negativland – “Idepsipe”
Steve Roach, Stephen Kent, Kenneth Newby – “Halcyon Days”
Peter Hammill – “Everyone You Hold”
Kreidler – “Weekend”
Legendary Pink Dots – “Hallway Of The Gods”
Art Zoyd – “Haxan”
Hans-Joachim Roedelius – “Sinfonia Contempora No. 1”
Paul Simon – “Songs from ‘The Capeman’”
La! Neu? – “Düsseldorf”