Não é “pós-rock”, mas “low rock”, como Mark Sandman gosta de chamar à música dos Morphine. Chamem-lhe o que quiserem. A dose de Morphine que o trio formado por Sandman, Dana Colley e Bill Conway vem injectando desde “Good” nas veias da música pop atinge aqui o seu “flash” mais intenso. Os Morphine assimilaram, intuitivamente ou dos compêndios, não importa, a tradição das franjas mais fumarentas e polposas dos “blues”, do “rhythm’n’blues”, do “cabaret” e do “jazz” mais cambaleantes, baixaram-lhes as rotações e deitaram-lhes picante para cima. A cabeça não tem direito a nada. O corpo é que paga, obrigado a pegar ou largar esta energia que parece brotar do baixo-ventre, canalizada pelo sax barítono, cada vez mais visceral, de Dana Colley e as cordas, do baixo ou da “tritar”, de Mark Sandman. Mais ainda do que nos álbuns anteriores, “Good”, “Cure for Pain” e “Yes”, “Like Swimming” atira pelas colunas um som quase palpável resultante de uma produção que, mais do que nunca, privilegiou o espaço e as dinâmicas, sem se esquecer de abrir as portas aos sintetizadores e outros artefactos electrónicos, que agora ganham uma maior margem de manobra. Parece simples o modo como o grupo põe em prática a sua teoria de “mais subtracção e menos produção”, mas nesta aparente simplicidade esconde-se um trabalho de escultura sonora que neste álbum adquire uma concisão quase maníaca. É o “swing” aliado ao espectáculo de variedades e ao exotismo, num comboio dos duros com a mesma força e eficácia de um terrorista como Clint Ruin-Jim Foetus, mas sem o demonismo e infiltrado por uma descomunal carga de sensualidade. É como nadar n um mar de energia ou numa piscina de fogo. Uma facada nas costas dos narcodependentes anónimos.
“Low rock” é como Mark Sandman, baixista e “tritarista” dos Morphine, define o som do novo álbum do grupo, “Like Swimming”. Sem fado, mas com mais espaço e dedicatória à música egípcia. E um uso intensivo dos sintetizadores, só porque estavam ali mesmo à mão no estúdio. O regresso a Portugal está marcado para o princípio de Maio.
Depois de “Good”, “Cure for Pain” e “Yes”, o novo álbum dos Morphine, “Like Swimming”, exibe, em simultâneo, as marcas de uma ainda maior contenção e o desejo de experimentar novas paletas sonoras. Mara Mark Sandman, como o próprio explicou ao PÚBLICO, trata-se tão-só de tirar máximo partido das circunstâncias e de aproximar a dinâmica dos espectáculos à alquimia dos discos.
PÚBLICO – Sobre o novo disco já afirmou que tem “mais subtracção do que produção”. Mas a verdade é que enriqueceram o som com instrumentos como sintetizadores, sequenciadores, órgão electrónico…
MARK SANDMAN – Digamos que acontecem menos coisas ao mesmo tempo. Há mais espaço. Um espaço que funciona como se fosse outro instrumento. Os outros discos já tinham sintetizadores, só que, desta vez, todos esses instrumentos que já usamos desde o início foram misturados mais alto. De resto, o método de gravação foi o mesmo, de maneira a que as canções possam ser tocadas ao vivo.
P. – O que é exactamente a “tritar” que surge na ficha técnica?
R. – É uma invenção minha. Tem uma corda de baixo e duas de guitarra.
P. – A necessidade de um som diferente?
R. – É mais uma questão de ser mais fácil de tocar do que um instrumento normal.
P. – Para os Morphine a técnica é absolutamente secundária?
R. – Sim, a esse nível sentimo-nos completamente perdidos [risos]. Nós tentamos, mas… Eu não tenho técnica do baixo de quatro cordas. Não consigo tocar. Toco uma canção e as mãos já não conseguem…
P. – Apesar disso, o som de baixo dos Morphine faz, por vezes, lembrar um contrabaixo…
R. – Mas convidámos para este disco um amigo que toca contrabaixo, na primeira canção e em “Empty box”. E, em “Hanging on a curtain”, o que parece ser um contrabaixo é, na verdade, um “mellotron”.
P. – “Mellotron” que foi um dos primeiros instrumentos electrónicos a ser utilizado nos anos 60 e, sobretudo, nos 70, pela escola progressiva. O termo “progressivo” assusta-o?
R. – “Progressivo” tem sido um termo cuja definição está constantemente a mudar. Como o “jazz” ou “alternativo”.
P. – “Like Swimming” demonstra um gosto, por vezes subliminar, pelos blues e pelo jazz. São dois universos determinantes no som dos Morphine?
R. – Ouço de tudo. Gosto de um tipo particular de blues, do início dos anos 50, os discos de Muddy Waters dessa época. Há um disco dele fabuloso, sem bateria, somente contrabaixo e “slide guitar”, com mais dinâmica do que qualquer energia rock dos dias de hoje. E muito mais dramático.
P. – Também aparecem em “Like Swimming” ambientes fumarentos, de bares em horas de fecho, um pouco ao modo de Tom Waits…
R. – Em certas canções há, de facto, muito esse ambiente “smoky”, do qual, sobretudo, os escritores gostam muito de falar.
P. – Como é que os Morphine trabalham em estúdio? Sente-se que os processos devem ser diferentes do habitual.
R. – Para a gravação de “Like Swimming”, usámos um gravador de 24 pistas, o que é vulgar nestas situações. Tentámos tocar o mais que pudemos ao vivo no estúdio. Nalguns casos, tivemos de acrescentar sons por cima. Costumamos trabalhar em estúdio bastante depressa, porque as canções vêm quase todas já rodadas dos espectáculos ao vivo. Mas acontece que acabamos por usar bastantes “overdubs”, por uma razão muito simples. É que depois de gravarmos a banda a tocar em conjunto, sobram ainda uma quantidade de pistas vazias. Nessa discutimos entre nós e incluímos toda a espécie de efeitos bizarros, utilizando tudo o que temos à disposição no estúdio. Daí a tal inclusão dos sintetizadores ou do “mellotron” nas misturas de “Like Swimming”, só porque, na altura, estavam ali…
P. – O que, ao vivo, é impossível de fazer. São uma banda diferente, nos concertos?
R. – Ao vivo, temos de fazer com que a coisa funcione só com três pessoas. Penso que soamos melhor ao vivo, o que, para mim, é óptimo, na medida em que aço que os nossos discos já são óptimos!… Já agora, tivemos uma quantidade de pedidos de entrevistas em Portugal, o que nos espantou, tratando-se de um país tão pequeno. Talvez cinco vezes mais do que as que tivemos em Inglaterra… Porquê? O grupo tem obtido uma reacção espantosa em Portugal. Posso dizer que a minha estadia aqui, quando o grupo veio cá tocar, influenciou totalmente a minha maneira de compor. Talvez fosse por causa de todas as sardinhas que comi, não sei!…
P. – A propósito disso, declarou no passado que iria usar um fado neste disco. Não cumpriu a promessa…
R. – Não usei, de facto, nenhum fado, mas isso não significa que a influência não esteja presente… O que talvez explique a boa reacção dos portugueses aos nossos discos…
P. – Também falou numa orquestra egípcia…
R. – Bem, mas isso aparece no tema instrumental de abertura, “Lilah”. Fizemos uma versão mais produzida, com vozes, e uma utilização intensiva de um naipe de cordas, mas não ficou pronta a tempo de entrar no álbum. Acontece que tenho vindo a interessar-me a fundo pela música egípcia, nos últimos anos. Descobri uma das superestrelas da música egípcia, Oum Kalsum [ou Kalthoum, por coincidência, uma das vozes preferidas por Amália Rodrigues]. Gravou cerca de 300 álbuns. E há um número enorme de bandas, uma cena pop egípcia com uma quantidade de estilos diferentes.
P. – Reconhece que não é vulgar um músico de rock interessar-se por esse tipo de sons?
R. – Na verdade, não ouço muita música pop quando estou em casa. É como ler um livro, não estou constantemente a ler livros, uns a seguir aos outros. Mas nessas ocasiões, ou quando estou a conduzir, ouço sempre discos que nunca, mas nunca, passam na rádio. Além de Oum Kalsum, música irlandesa, músicos irlandeses qjue tocam em todo o lado e vão para casa gravar discos e tocar durante horas e horas sem parar. Pessoas que aprenderam por elas próprias, cujo único prazer é tocar, sem se preocuparem em ser “pop stars”.
P. – Os Morphine também seguem os seus próprios métodos. Por exemplo, nas digressões, recusam-se a fazer as primeiras partes de outros artistas. Por alguma razão em especial?
R. – É muito mais divertido assim. Queremos que as pessoas venham para ver e ouvir os Morphine e não outra banda qualquer.
P. – O termo “post rock” diz-lhe alguma coisa?
R. – Absolutamente nada. O termo que se aplica a nós é “low rock”.
P. – Os Morphine vão voltar a actuar em Portugal proximamente?
R. – Sim, no próximo dia 1 de Maio, no Coliseu, em Lisboa. Só falta a editora confirmar.
Para quem gosta dos Morphine mas confessa estar já um pouco enfastiado com o estilo, demasiado balizado, do grupo, este poderá ser o álbum de reconciliação. Não que a música seja substancialmente diferente da dos álbuns anteriores ao ponto de justificar uma nova abordagem, mas a verdade é que “B-sides and Otherwise” (B-sides” como “Besides”, para dar “Além disso e de outra maneira”) revela algumas facetas menos conhecidas dos Morphine, comparadas com a estética mais condensada dos seus álbuns oficiais.
Constituído por “singles”, sessões ao vivo na rádio e contribuições para bandas-sonoras e colectâneas (“Kerouac: Kicks Joy Darkness” e “Outstandinngly Ignited”), “B-Sides and Otherwise” começa por contradizer esta aparente dissidência, no modo como o sax de Dana Colley introduz logo de início as coordenadas habituais do grupo, em “I Have a Lucky Day” e “All Wrong”, lufadas de ar quente emitidas por uma turbina, embora neste último tema, gravado ao vivo em estúdio, seja óbvio que o saxofonista se sentiu mais liberto para discorrer num registo próximo da pura improvisação jazzística.
O campo sonoro alarga-se em “Bo’s Veranda”, da banda-sonora de “Get Shorty”, para os lados da guitarra de Bill Frisell e da “Downtown” em geral. “Mile High”, de outra banda-sonora, “Things to do in Denver when you´re dead”, é terrível e desavergonhadamente “funky”, enquanto “Down love’s tributaries” (CD single retirado das sessões de “Cure for Pain”) articula a equação da electrónica com os “blues”. “Kerouac” é uma homenagem em forma de declamação a um dos papas de “beat genaration” e “Sundayafternoonweightlessness” e “Virgin Bride” (tema-bónus da versão australiana de “Like Swimming”) aproximam-se, respectivamente, dos universos de John Lurie e Nick Cave, para nos dois derradeiros temas, “Mail” e “My Brain”, os Morphine se voltarem para formas paramusicais onde as vozes, de novo em tom de dclamação e filtradas por processos electrónicos, adquirem um outro tipo de proeminência. Registe-se ainda a inclusão de “pulled over the car”, da versão japonesa de “Yes”, e o CD single “Super Sex”. Consumada a dieta, os ouvidos de novo arejados, aguarda-se ansiosamente a próxima onda incandescente de “low rock”.