30.01.1998
Folk
O Sopro Da Deusa
A semana é dominada por Kathryn Tickell, autora de um dos melhores álbuns de 1997, “The Gathering”. O seu regresso foi rápido mas o registo alterou-se e, em vez do seu pequeno grupo, convocou um círculo alargado de amigos em “The Northumberland Collection”. Também convém começar a fixar o nome de Xosé Manuel Gudino. O seu disco de estreia, ainda sem distribuição nacional, dá a conhecer um revolucionário. Com ele e depois de Carlos Nunez, a gaita-de-foles atinge novos patamares de liberdade.
Lagos de águas profundas e castelos. Um rebanho dos típicos carneiros da região pasta num imenso mar de verde. Não se vislumbra um ser humano nos quilómetros em redor. Estamos em Northumberland, situada no Norte de Inglaterra, já não muito longe da Escócia. O silêncio é aos poucos preenchido pelo som de uma gaita-de-foles. É Kathryn Tickell que chega. A Meg Ryan da “folk”. A mulher dos nosos sonhos. Uma executante, uma sensibilidade, um corpo e um rosto capazes de nos fazer ter vontade de a pedir em casamento. Não há maneira d eescapar ao seu fascínio. Às primeiras notas de “Rothbury Hills”, a sonoridade envolvente e harmonicamente riquíssima das “Northumberland pipes” respondem como um cordeiro ao comando da bela. No tema seguinte é a vez de o violino se submeter ao seu domínio.
“The Northumberland Collection”, ao contrário de “The Gathering”, é um álbum de acentuado cariz étnico, concentrado numa região específica, em que é notória a ausência de concessões ao “mainstream”. Tudo aqui cria raízes, voando pela tradição mais autêntica. Carolyn Robson canta, em “Felton Lonnen”, uma versão pungente dos velhinhos High Level Ranters, banda da primeira geração do “folk revival” britânico. O seu congénere masculino, Terry Conway, não engana. “A capella”, em “Robin Spraggon’s old grey mare”, o seu “vibrato” subtil, as ornamentações complexas, a “patine” de muitos e bons e bebidos anos pertencem a alguém que faz parte da terra.
As “pipes” bastam-se a si próprias em “Whittingham green lane”, na leitura de um velho manuscrito, deslizando em “Sir John Fenwick’s the flower” como uma nuvem no céu. O uso das chaves de acompanhamento é notável. O sopro, de uma deusa. Kathryn leva-nos com ela. A “pipes” são a alma desta mulher. Já o escrevemos noutra ocasião, em mais nenhuma ou nenhum outro intérprete deste instrumento se encontra tanta sensualidade, como em Kathryn Tickell. Uma sensualidade à flor da pele. Ou será mais correcto dizer à flor do fole. Não contem a ninguém: “The Northumberland Collection” não figurará, provavelmente, na lista dos melhores do ano, como aconteceu, de forma exuberante, com “The Gathering”. Ninguém dá prémios a quem, como Kathryn Tickell, num acto de amor, faz ouvir a rabeca de Willie Taylor, um velho pastor retirado, em “Elsey’s waltz”. “The Nothumberland Collection” é tão puro como isto. Fique com ele quem o merecer. (Park, distri. Megamúsica, 10).
Xosé Manuel Budino coloca-se no outro lado da respiração das gaitas-de-foles. Como no disco de Kathryn, o cartão de visita é apresentado pela gaita logo no primeiro e título-tema do álbum, “Paralaia”. Mas, ao contrário da inglesa, o álbum de estreia deste galego está a berto a todo o tipo de contaminações e experimentações. Budino, como há anos vem fazendo o mago Carlos Nunez, expande as possibilidades e os limites da gaita galega. A música segue a reboque desta inquietação. O tom de modernidade geral do disco é quebrado pela vocalização “a capella” de Mercedes Péon, em “Cantar de Santa Sabina” para, logo a seguir, o grupo explodir num “swing” que dança sem preconceitos entre a Galiza céltica e as areias do deserto árabe, num “Aire do cruceiro”. Já agora, e para que ninguém julgue que Budino é peixe miúdo, entre os acompanhantes desta sua primeira aventura a solo, incluem-se os bretões Jacky Molard e Soig Siberil, do grupo-instituição Gwerz, e o expoente da “trikitixa” (acordeão) basca, Kepa Junkera. Em “Rapa bestas”, o jovem Budino mostra, como Carlos Nunez (ou nos enganamos muito ou estará para aía a rebentar uma guerra de ciúmes…), que os seus talentos também se estendem ao “whistle”. E às “uillean pipes”, em “Marcha de breixo”, um trio “irlandês” formado por um galego e dois bretões, Mollard e Siberil… “Lóstregos” e as metamorfoses brilhantes de “A fonte da pedra” atrevem-se pelos caminhos do rock mas tomara aos hesitantes e divididos regionalistas da folk galega terem a certeza e a segurança deste desvio. O “folk rock Gudino” é qualquer coisa de novo e de irresístivel. Sem fronteiras nem barreiras. Na despedida, “Santa Compana”, Gudino monta uma harmonização a três de gaitas afinadas em dó, ré e sol. “Aparecendo entre as magias que sussurram uma misteriosa história da gaita-de-foles, nasce um canto longínquo, um canto de reivindicações que cresce no tempo.” Têm a palavra os senhores distribuidores. (Belobelo, 9).
Dick Gaughan, mítica voz das terras altas, juntou-se às hostes da Greentrax, cada vez mais o centro nevrálgico onde confluem o antigo e o novo, o mais tradicional e o mais inovador da “folk” na Escócia. “Sail On” reúne onze canções gravadas em Edimburgo em sessões que contaram com a participação de Patsy Seddon e Mary McMaster, as duas harpistas das Sileas, o importante, mas pouco conhecido, Bobby Eaglesham, um antigo elemento dos meteóricos Five Hand Reel. O mestre actualizou-se, à semelhança do seu congénere irlandês Christy Moore, de Pat Kilbride e de Brian McNeill. Em mais do que uma ocasião emerge de “Sail On” o espírito de Richard Thompson e dos Fairport Convention, com quem Gaughan parece manter fortes ligações, quer ao nível da percepção rítmica da música quer das próprias vocalizações. Os 11 minutos de “The sist (Highland) division’s farewell to Sicily”, com poema de Hamish Hendersom, repõem Gaughan numa nota mais tradicionalista, dando corpo a uma antiga “obsesão” sua por esta canção, neste caso com a conivência da harpa de Mary McMaster. Um álbum a ouvir, por vezes ligeiro, na ancestral tradição dos contadores de histórias atentos aos desígnios do tempo. (Greentrax, distri. MC – Mundo da Canção, 7)
Na mesma tradição dos que não perdem um bom assunto de conversa nem dispensam ter uma palavra a dizer sobre os males que afligem o mundo e os seus em particular, está o australiano, de cepa escocesa, Eric Bogle. “Small Miracles” é um álbum de canções directas e de apelo melódico fácil. Uma gaita-de-foles recorda as origens desta música feita para se rir e chorar na companhia de novos amigos, a recordar os velhos amigos que ficaram do outro lado do mundo. Ainda um disco de audição obrigatória para os que têm Christy Moore como herói. (Greentrax, distri. MC – Mundo da Canção, 7)
“The Emigrant & The Exile”, projecto de confluência das culturas escocesa e australiana, partilhado por Eric Bogle com John Munro, não se afasta muito do que atrás foi dito sobre “Small Miracles”, com a diferença de que, pelo menos em teoria, poderia ser mais gratificante ao nível instrumental, já que conta com as contribuições de Dougie Pincock e Brian McNeill, dois ex- Batllefield Band, e de Phil Cunningham, dos Silly Wizard. Música de pontes. Música de amor e trabalho. Música para fazer esquecer a distância. Música pop, de intervenção suave, a fazer lembrar os anos 60, Dylan, Paxton e Baez… (Greentrax, distri. MC – Mundo da Canção, 6).
Nota: O álbum “Milladoiro”, ao contrário do que se escreveu na semana passada, não é o primeiro disco do grupo mas sim um disco de parceria de Anton Seoane e Rodrigo Romani que posteriormente, e aproveitando o nome, viriam a formar os Milladoiro.