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Sei Miguel – “The Portuguese Man Of War” + Telectu – “Theremin Tao”

pop rock >> quarta-feira, 07.07.1993


Sei Miguel
The Portuguese Man Of War (4)
CD, edição de autor, distri. SPH/Extasis

Telectu
Theremin Tao (5)
CD SPH/Extasis



Novos trabalhos de duas bandas inglesas que procuram impor-se no mercado português, como se fosse um dos mais importantes a nível mundial, em termos de volume de vendas, sobretudo no campo das músicas experimentais, as preferidas das massas consumidaoras. “I Know Michael” (que alguém traduziu abusivamente para “Sei Miiguel”) é um trompetista admirador de Miles Davis, de quem procura reproduzir a pose e os sons até na forografia da capa conseguiu dar ares do mestre, não disfarçando embora uma sombra de expressão à Michael Jackson, “The Portugues Man of War” )o “portuguese” é uma concessão óbvia no tal processo de penetração de mercado) divide-se numa série de apontamentos abstractos, onde cada músico parece ter gravadp sem ouvir os restantes. O baixo e as percussões falam alto dem terem nada para dizer. Interessantes são, apesar de tudo, os trabalhos no trombone de Fala Miriam e as deambulações autistas do trompetista, muito ao estilo “a morte do jazz”, que, paradoxalmente, investem numa certa tradição que remonta aos primórdios desta linguagem.
“Theremin Tao” é mais subtil na exibição das origens anglófonas dos músicos. As notas explicativas da capa investem mesmo na desestruturação da linguagem inglesa, fruto decerto de um estudo aturado das suas possibilidades fonéticas e semânticas. É assim que se escreve “aesthetic” ou, num genial trabalho de adaptação ao jeito português, “magnificated” em vez de “magnified”, particípio passado do hipotético verbo “to magnificate”, que por enquanto não existe mas que os ingleses, com o seu conhecido pragmatismo, hão-de acabar por inventar.
A música, sendo embora alheia ao gosto lusitano, não deixa de ter as suas virtudes. Poucas, em comparação com o álbum anterior da dupla, “Evil Metal”. “Theremin Tao”, colagem do nome do inventor de um dos primeiros instrumentos electrónicos com o “tao” oriental (que, por acaso, também é o nome de um gato) faz uma viagem ao passado, partindo do catálogo de 20 minutos de sons computorizados do primeiro tema para, em progressão decrescente, recuar até 19XX?????. Dá ideia de que se pretendeu recontextualizar e reabilitar temas que, por si sós, não passariam de esboços, à sombra dos feitos de “Evil Metal”. A se assim, o objectivo não foi conseguido, diluindo-se o impacte inicial na inconsequência dos temas seguintes.

Telectu – “Evil Metal”

Pop Rock >> Quarta-Feira, 30.09.1992


TELECTU
Evil Metal
CD, Área Total



Desde os primeiros acordes da guitarra frippiana de Vítor Rua e os ambientes carregados de tensão criados por Jorge Lima Barreto nas suas “workstations”, é notório que, desta feita, os Telectu acertaram em cheio, conseguindo uma obra de síntese entre as diversas enunciações musicais que foram ordenando al longo dos anos. “Evil Metal” é, até à data, o melhor disco da banda – sem grandes conceitos a sustentá-lo e evidenciando a preocupação de apenas fazer música pela música. O resultado é uma obra imaginativa, dividida em doze peças numeradas, nas quais Rua e Barreto criam um híbrido musical possuidor de uma lógica própria e coerente. Desapareceram as concepções circulares do minimalismo, dando lugar a estruturas mais lineares que incorporam estilhaços e clonagens do jazz, da “new music” filiada na escola “brutalista” de David Fulton, David Linton ou Elliott Sharp, do rock sinfónico (o espectro dos King Crimson, omnipresente na guitarra de Rua) ou do ambientalismo étnico transfigurado por inflexões demoníacas, exemplificado no longo tema número nove – uma falsa praga de ácido e metais retorcidos, que faz jus ao título do álbum. Elliott Sharp, presente nos dois temas finais, acaba por passar despercebido. (8)

Vários – “Festa Do ‘Avante!’ 91 – A Música Em Comício”

Secção Cultura Segunda-Feira, 09.09.1991


Festa Do “Avante!” 91
A Música Em Comício


Na Festa do “Avante!” é sempre assim todos os anos: bons nomes em cartaz, actuações invariavelmente prejudicadas por deficiências e o desconforto inerentes ao gigantismo do evento. Sabe-se que é assim, mas vai-se na mesma. Festa é festa, como se costuma dizer. O contingente “folk” foi refrigério no banho de poeira.

Há duas maneiras de apreciar a Festa do “Avante!. Impressiona, por um lado, a reconhecida capacidade de organização e mobilização dos comunistas portugueses. Montar uma cidade descartável não é fácil e o milagre é alcançado todos os anos. De resto, o partido é especialista em milagres. Por outro lado, essa mesma cidade, erguida com o objectivo de proporcionar a fruição, seja ela estética, ideológica ou gastronómica, ao apostar na massificação acaba por deixar em muitos um sabor a frustração.
Evidentemente, há quem tenha opinião contrária e aprecie. Para os da casa está sempre tudo bem. Festejar é, como no resto, nivelar por baixo. Quem também gosta muito, numa população de circunstância, é aquela camada de “jovens” para quem o paraíso consiste em emborcar quilolitros de seja o que for com álcool na composição, rebolar na terra, sozinho ou às voltas com o parceiro(a) e, com sorte, culminar a aventura no hospital mais próximo. Na Quinta da Atalaia, foi um rodopio de ambulâncias para cá e para lá a transportar os despojos humanos resultantes dos êxtases instantâneos. Em qualquer dos casos, do militante fanático ao “freak” andrajoso, a festa funciona ao nível da alucinação.

O Inferno São Os Outros

Para complicar, o programa das actividades culturais (e em particular as muitas músicas que são o mel da festa) costuma ser aliciante. São as circunstâncias que fazem o inferno. O anjibho incauto atraído pela promessa de boa música sofre a bom sofrer, numa correria de poeira e encontrões, para finalmente ver recompensado o esforço com mais poeira, parasitagens extra-musicais de toda a espécie (deficiências técnicas, atropelos à higiene mais elementar, interferências humanas provocadas por gritos e choros de crianças ou militâncias mais inflamadas, vómitos à tangente, numa massa envolta na bruma poeirenta que transforma o cenário numa variante proletária de “Mad Max…) ou o desespero terminal de não conseguir chegar a tempo ao espectáculo ansiado, devido ao desfasamento e atrasos de horário.
Saíram-se bem os Pop Dell’Arte que na sexta à noite se embrenharam num delírio psicadélico “kitsch” apoiado por um eficaz show de luzes psicoalucinantes de tendência dadaísta. João Peste contorceu-se vocalmente a contento, emitou a Piaf, fez inveja a Vítor “Goodbye Maria Ivone” Peter e embasbacou meio povo presente em mil e uma provocações inteligentes.
Provocantes e inteligentes foram ainda os Telectu que, depois de Elliott Sharp, voltaram a escolher o parceiro certo – desta feita o percussionista Chris Cutler – para mostrar que por cá a vanguarda também mexe. Espaço para a improvisação e para o diálogo entre músicos de diferente formação e sensibilidade. Num instante o caos, no outro a convergência. Jorge Lima Barreto, em tom de contenção, sugeriu ambientes e avançou pistas. Vítor Rua provou até que ponto é bom guitarrista, sobretudo quando se esquece dos botões e pedais de efeitos, como aconteceu no encore final. Chris Cutler construiu, destuiu, brincou, ordenou e explodiu em compasos ora binários ora impossivelmente complexos. Experiência radical.

Uma Fada Entre A Poeira

Quem sofreu mais foram os representantes da “folk”. Prejudicados por investidas sistemáticas de “feedback” e pela indiferença de um público na maioria já em avançado estado de decrepitude física e moral, os Boys of the Lough mostraram no palco grande, com a dignidade que se impunha, os mistérios da música irlandesa, a que poucos terão sido sensíveis, distraídos da hora mágica do pôr-do-sol.
No auditório “1º de Maio” (uma tenda de circo montada sobre a terra) a harpista Savourna Stevenson fez esquecer o mundo exterior e material. Nem o ruído insistente de um baixo tonitruante e monocórdico do grupo de arraial do lado conseguiu vencer a atmosfera intimista criada pela fada. Fada sensual, diga-se de passagem, mini-saia negra recuada em volta da madeira central do instrumento, acrescentando outras divagações ao sonho do espírito. Acompanhada em dois temas pelo violinista dos Boys of the Lough, Aly Bain, Savourna Stevenson alternou temas swingantes com tradicionais do seu mais recente disco “Tweed Journey “ou a revisitação de um tema de Duke Ellington. Brilhante, num barracão ou num palácio.
À noite, os Oyster Band enlouqueceram por completo uma assistência (em parte já recuperada da ressaca vespertina) que não se fartou de dançar e formar rodas ao som da “Punk Folk” da banda britânica. Alheados da agitação geral, dois jovens jogavam às cartas no escuro entre pernas, sentados no chão… Folia somente perturbada pela presença emblemática da vocalista June Tabor que, sem voz, e desfasada do grupo, arrefeceu os entusiasmos e conseguiu assassinar o clássico dos Velvet Underground “All Tomorrow’s parties”, fazendo Nico revolver-se no túmulo. Rainha de outros reinos, June Tabor, ao contrário do que aconteceu no “Folk Tejo”, não deslumbrou.
Do reino da poeira, terra e confusão fica a recordação de umas febras com sabor a plástico rotuladas de “cozinha típica”, as imagens apocalípticas do império das latas de cerveja amontoadas rivalizando com os corpos empilhados e o comentário sabedor de alguém ao passar no palco onde actuava um “ensemble” de contrabaixos: “olha um violino!”. É assim na Festa do “Avante!”, os olhos só vêem aquilo que sabem ou querem ver…