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Eliza Carthy – Red Rice

05.06.1998
World
Arroz Com Bicho
Eliza Carthy
Red Rice (7)
2xCD Topic, distri. Megamúsica

Saudado pela crítica estrangeira, nomeadamente pela Folk Roots, como “subtilmente progressivo”, “com um sentido de perigo” e um “marco”, “Red Rice” é, quanto anós, uma desilusão. Compreende-se o cuidado. Eliza é filha e quem é (Martin Carthy e Norma Waterson), os seus anteriores trabalhos, nomeadamente com Nancy Kerr, “Shape of Scrape”, e o mais recente, com os Kings of Calicutt, eram bons, mas, acima de tudo, “Red Rice” é um daqueles objectos feitos, à partida, para impresionar.
O objecto em questão é uma embalagem composta por dois CD mas que não se pode considerar um duplo-álbum, apesar de, em termos gráficos, se ter procurado uma unidade de conceito. São antes dois álbuns que procuram apresentar duas facetas distintas da violinista, cada um com músicos e uma abordagem estética diferentes. “Rice”, onde Eliza aparece ruiva, é um álbum de música tradicional, no sentido académico do termo, puramente acústico, que não desce abaixo do nível atingido em “Heat, Light and Sound”. As “boxes” de Saul Rose, a guitarra acústica e o bouzouki de Ed Boyd, juntamente com os misteriosos Billericay e Thorngumbold Fontenot e as participações esporádicas de mais um elemento do clã Waterson, Eleanor Waterson, voz, e Lucy Adams, que faz um pezinho de “clog dancing” num dos temas, conferem a “Rice” um tom amigável, entre as danças “barn” e “morris”, demosntrações de violino (“Haddock and chips”) e desempenhos vocais que lembram, nalguns casos, Shirley Collins.
Mas é no reverso da medalha que as coisas se complicam. “Red” (com Eliza de madeixas louras) pretende ser o passo revolucionário que o álbum com os Kings of Calicutt já prenunciava, acabando, no entanto, por ser um inesperado trambolhão. Além do violino, Eliza toma a seu cargo o acordeão e os teclados, contando ainda com um grupo formado por Martin Green, no acordeão e piano, Barnaby Stradling, no baixo, percussão e Moog, Sam Thomas, na bateria, percussão e Moog, Olly Knight, na guitarra eléctrica e da dupla Shack & Paul, nas programações. Rory McLeod participa com a usa harmónica, como convidado, no título tema, um atropelo de “drum’n’bass” que sintetiza bem o espírito do álbum. Não é, no entanto, nos aspectos estilísticos que “Rice” falha, ainda que o tal “sentido de perigo” a que a Folk Roots se refere não chegue aos calcanhares, por exemplo, do radicalismo de um Martyn Bennett que em “Bothy Culture” assume na íntegra os riscos de uma “tecno folk” no mais puro espírito “rave”.
Em “Red” – que inclui versões de “Walk away”, de Ben Harper e do instrumental “The Stacking Reel”, de Kathryn Tickell – há um uso discreto, num par de temas, do “reggaes”, aflorações suaves de jazz, rock e “dub”, nada que não tenha sido tentado já noutras paragens com resultados bem mais satisfatórios, sobretudo na Escócia, por gente como os Shooglenifty, Burach, Tartan Amoebas ou Peatbog Faeries. O que deita tudo a perder não é tanto a “ousadia” em si, mas o modo hesitante como Eliza a põe em prática. Sente-se que a confiança não foi total, soando a música como experimentação pela experimentação, numa ânsia da autora em capitalizar sobre um estatuto de “inovadora” que lhe foi, talvez prematuramente, atribuído. Eliza Carthy terá sentido a pressão, obrigando-se (ou alguém que a terá obrigado…) a um trabalho cuja envergadura parece, para já, não estar à altura de poder responder. Percebe-se o desejo de ser diferente mas não com que finalidade. Por outras palavras, Eliza Carthy sai de um lugar para ir para lugar nenhum. Depois, se o objectivo era a transgressão e a subversão das regras, porquê gravar o disco tradicional, quando o efeito seria, em teoria, muito mais forte, se apenas se tivesse concentrado em “Red”. Há ainda outra coisa, esta mais grave. Em “Red” Eliza Carthy dá a imagem de uma cantora medíocre, sem colocação de voz, afinando com dificuldade, trémula, como que tolhida pelo medo. Só um estado de dúvida justifica que em “Rice” se transfigure ao ponto de parecer outra cantora, com a voz a afirmar-se orgulhosamente, sem rede, num tema como “Benjamin bowmaneer”. Até o violino cresce de forma assustadora, liberto do espartilho de linguagens rítmicas para as quais Eliza não estará, por enquanto, totalmente à vontade. É difícil dar uma só classificação a “Red Rice”. Atribuímos “8” a “Rice” e “5” a “Red”. A diferença entre arroz-doce e arroz com bicho.

Eliza Carthy – Eliza Carthy & The Kings of Calicutt (conj.)

25.07.1997
Três Inglesas Românticas
A folk britânica está nas mãos de três mulheres. São inglesas e têm uma visão romântica da música tradicional, enquanto projecção de estados de alma subjectivos ou lugar onde as forças cósmicas confluem no indíviduo. A alegria, em eliza Carthy. A sensualidade, em Kathryn Tickell. A magia em Maddy Prior. Entre cada uma delas existe uma diferença de idades de mais ou menos dez anos, começando em eliza e acabando em Maddy. Aproxima-as a entrega à música que amam. E uma visão: de que a Tradição é algo sempre vivo e inacabado.

elizacarthyandthekingscallicutt

LINK (“the union chapel london”)
pwd: sharedmusic.net

Eliza Carthy é a mais nova das três. Filha de pai e mãe ilustres, Martin Carthy e Norma Waterson, gravou com eles um par de álbuns de luxo que vieram reorientar a “folk” inglesa no sentido de ajustamento ao veio mais sólido da tradição, “Waterson: Carthy” e “Common Tongue”.
Só que no seu novo álbum, “Eliza Carthy & The Kings of Calicutt”, a jovem Carthy decidiu romper com os progenitores, pondo os seus talentos de violinista e vocalista ao serviço de uma música com outro tipo de energia que deve tanto às danças “morris” como ao rock. A sua ligação aos Kings of Calicutt – quarteto de bateria, baixo, acordeão-vox e saltério-voz – corresponde, no fundo, a um fenómeno de retorno periódico dos “folkers” ingleses ao “folk rock”, dando razão aos que não encontram nas bases tradicionais material suficiente para uma progressão e manutenção, a longo prazo, no sentido da sua modernização. Exemplos não faltam: dos Fairport Convention aos Steeleye Span, dos Fotheringay aos Woods Band, dos Home Service aos Albion Band, dos New Celeste aos Pyewackett, dos Whippersnapper aos Blowzabella.
Com o quarteto, uma secção de sopros (na velha tradição dos Brass Monkey, Albion Band e Home Service, mas também da música do princípio do século, como foi recriada pelos New Victory Band) e o violinista convidado, John McCusker, dos Battlefield Band, o grupo recria de forma eficaz os “jigs” e demais danças da praxe, por vezes num registo próximo do “bluegrass”, resguardando-se os instrumentos solistas numa linguagem mais tradicional, enquanto a secção rítmica se socorre dos compassos rock. Como vocalista, Eliza continua a evoluir a passos largos. Ouçam, para comprovar, a profundidade a que já consegue chegar, em “Mother, go make my bed”. Imagine-se a música dos pais, sem o tom épico do pai e da tragédia da mãe, aumentada pela alegria juvenil de quem já reservou o seu lugar na História. (Topic, distri. Megamúsica, 8)

Maddy Prior, essa já ocupa o seu há muito tempo. Para esta cantora carismática, o tempo tem sido repartido, nos últimos tempos, pelo seu grupo de sempre, os Steeleye Span, as aventuras pela Música Antiga, com os Carnival Band, e álbuns a solo, com ou sem a participação do seu marido, Rick Kemp, também elemento dos Steeleye Span. Depois do fabuloso “Year”, a voz que compartilha com June Tabor os louros de melhor cantora folk inglesa actual regressa com “Flesh And Blood”, que inclui, uma vez mais, um longo tema conceptual, neste caso a suite “Dramatis Personae”, composta de parceria com o marido.
É menor a tensão criativa que pulsava em “Year”. A voz opera prodígios, como sempre, mas sente-se que a altura é de descompressão, de pausa num período de intensa actividade na carreira da cantora. Entram no reportório uma composição de Todd Rundgren e outra do clássico Sibelius, entre três tradicionais e um tema do grupo (Nick Holland, teclados, Troy Donockley, “uillean pipes”, guitarras, “whistles” e cistre, Terl Briant, bateria e percussão, e Andy Crowdy, baixo). Sem sobressaltos, mas também sem grandes rasgos. Um prazer, a abertura de “uillean pipes” na “Finlandia” de Sibelius. Certas facilidades rítmicas, nos restantes temas (aos quais falta, desta vez, a força dos Steeleye Span, que também usaram e abusaram do rock…) eram dispensáveis.
“Dramatis Personae”, com os seus sete segmentos unificados pelo conceito da personalidade e o recurso ao esoterismo e à topografia mágico-biológico dos “chakras” (centros nervosos etéreos), constrói-se em torno de um piano clássico, com assento na “new age”, numa peça que só por simpatia podemos associar à “folk”. Para abreviar, estamos em presença da melhor “folk progressiva”, com mudanças constantes, predominância dos teclados e alternância entre momentos épicos e contemplativos, um pouco à maneira dos Renaissance. Bom álbum, embora inferior ao anterior, “Year”. (Park, distri. Megamúsica, 7)

Quem não se debate com problemas de qualquer espécie é Kathryn Tickell. É bonita, toca “Northumbrian pipes” como se fosse o instrumento mais sensual do planeta e “The Gathering” é daqueles álbuns que faz correr água na boca de princípio ao fim.
As “pipes” provocam arrepios logo a abrir, com “Raincheck”. Não poderiam soar desta forma nas mãos e no coração de um homem. Apetece apertar, beijar quem assim faz da música algo tão próximo do Paraíso sobre a Terra, perdoe-se-me o tom, talvez demasiado literal, da linguagem. É que “The Gathering” pertence àquela categoria de discos onde a análise sucumbe e os sentidos se deleitam. Quanto a técnica, ouçam o tema seguinte, “Lads of Alnwick”, e estamos conversados. O mesmo se podendo dizer, no difícil registo dos compassos lentos e interiorizados, de “Redesdale”.
Na segunda parte do disco, o violino de Kathryn adquire maior predominância, num ábum que ainda por cima é abençoado pelo ecletismo, seja na valsa “cajun”, “La betaille dans la pétit arbre”, seja em dois duetos alucinates com a harmónica de Brendan Power. Quem ainda chora a saída do grupo da acordeonista Karen Tweed pode ir secando as lágrimas – “The Gathering” é um dos grandes discos deste ano. (Park, distri. Megamúsica, 9)

25.07.1997
Nota: Duas correcções relativas às reedições da semana passada. “Space Cabaret”, dos CMU, foi editado em 1973 e não em 1983, como por lapso se escreveu. E não foi Shirley Collins quem participou no álbum “Bells, Boots & Shambles”, dos Spirogyra, mas sim a sua irmã Dolly Collins, responsável pelos arranjos de um dos temas.