Carlos Paredes – “Recital De Carlos Paredes, No S. Luiz, Em Lisboa – O Silêncio Convulsivo”

Cultura >> Domingo, 22.03.1992


Recital De Carlos Paredes, No S. Luiz, Em Lisboa
O Silêncio Convulsivo


Lisboa homenageou ontem, no Teatro S. Luiz, o mestre da guitarra portuguesa. Carlos Paredes, como de costume, quase não deu por isso. Não vale a pena insistir, mas é verdade: a guitarra de Paredes somos todos nós.



Um concerto de Carlos Paredes é sempre motivo de júbilo e de uma certa vergonha. O júbilo de nos deixarmos levar pelo sonho que temos de nós próprios, de sermos portugueses de verdade e não os “cadáveres adiados” de que falava o poeta. E a vergonha de nos termos acomodado e habituado a que ele, Paredes, estivesse sempre à nossa mão, disponível, com a sua guitarra e com uma modéstia que nos convinha, para nos confortar da nossa mediocridade.
A música de Paredes vem de longe e do fundo, da História e das cordas de uma guitarra que, nos seus dedos, se transforma no instrumento mais completo do mundo. Assim foi nas noites de sexta-feira e sábado, no Teatro S. Luiz em Lisboa. Assim será a 25 no Rivoli do Porto.
Na sexta-feira, numa espécie de gala tardia, nem sequer faltaram Mário Soares, o hino nacional e convidados especiais. E a televisão, que gravou o acontecimento em sistema de alta definição para posterior emissão europeia.
Acompanhado por Luísa Amaro, Paredes arrancou com “Sede” para uma primeira sequência que incluiu os inéditos “Arcos de jardim” e “Cantiga para minha mãe”.

A Perna Esquerda

Primeira convidada da noite, Natália Casanova surgiu deslumbrante, sobretudo a sua perna esquerda, emergindo gloriosa da longa racha aberta no vestido negro. Pena foi que a voz da cantora dos Diva ter entrado antes de tempo na “Cantiga de Maio”, de José Afonso. Apoiada por um contra-tenor não identificado, de figura andrógina mas possuidor de excelentes recursos vocais, Natália acabou por emprestar à canção uma razoável dose de emoção e sensualidade.
Fernando Alvim, antigo companheiro de Paredes, secundou o guitarrista em “Variações em Ré menor” e “Divertimento”, antes do regresso de Luísa Amaro numa inesquecível “Dança de Camponeses”. A primeira parte do recital encerrou com um “pas de deux” coreografado pelos bailarinos Ofélia Cardoso e Francisco Pedro segundo a estética do “pulinho a compasso”: um pulinho por cada semínima, dois por colcheia e assim por diante, em progressão geométrica, não há que enganar.
Cumpridos os rituais de exposição social do intervalo (muito actor e músico presente, muita sociedade, muito vestido curto), de novo a música, com Paredes a dar o mote de “Porto Santo” para o pianista Mário Laginha improvisar no que foi um dos momentos mais altos do espectáculo.
Depois, de novo Luísa Amaro como acompanhante, em mais dois inéditos, “Mar Goês” e “Titi” e nas notas por todos ansiadas de “Verdes Anos”, as que melhor traduzem o silêncio convulsivo que vai na nossa maneira de sermos portugueses.
Fracassado, foi o encontro com Rui Veloso, a quem Carlos Paredes pediu desculpa por alguma eventual “asneira”. O diálogo instrumental não chegou a acontecer. As duas guitarras pouco tinham a dizer uma à outra. Carlos Paredes apagou-se, dando lugar a Rui Veloso que, sozinho, interpretou “Porto Sentido”.

Pelo contrário, a participação de Paulo Curado, na flauta, em “Mudar de Vida”, resultou em pleno, talvez porque o tema, gravado para o filme de Paulo Rocha e incluído no álbum “Movimento Perpétuo”, fora escrito para este instrumento.
As “Variações de Artur Paredes” fecharam a sequência oficial do programa. A sala aplaudiu de pé. Carlos Paredes levantou-se, esbarrou contra uma câmara de televisão, vagueou perdido pelo palco e agradeceu de forma desajeitada. O público pediu mais e Paredes, como sempre, fez-lhe a vontade. Pela primeira vez ficou completamente só, no centro do palco, dobrado sobre a guitarra, a confundir-nos, a emocionar-nos. Mas o guitarrista surpreendeu tudo e todos em alguns segundos de uma “brincadeira” (“os meus amigos vão-se rir de certeza”), antes de se despedir com uma nota de ironia – numa peça, inspirada em Camilo, que traduz em música os “discursos vazios e balofos com que certos senhores nos pretendem enganar” e assinada com um “tenho dito” bem-humorado.
Para todos, para cada um diferentemente, a música e a vida de Carlos Paredes servem de lição. Que poucos souberam ou quiseram estudar e aprender.

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