Gastr Del Sol – Camoufleur (conj.)

06.03.1998
Revolution no. 10
Gastr Del Sol
Camoufleur (9)
Domino, distri. Música Alternativa

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Tortoise
TNT (8)
City Slang, distri. Música Alternativa
Jim O’Rourke e John McEntire, respectivamente mentores dos projectos Gastr Del Sol e Tortoise, da cena pós-rock de Chicago, nunca esconderam as suas influências. Pelo contrário, assumiram-nas e integraram-nas numa música cuja originalidade é inquestionável.
O mais recente e, provavelmente, derradeiro trabalho dos Gastr Del Sol, já que JimO’Rourke deixou o grupo depois da gravação de “Camoufleur”, vem mesmo acompanhado por uma lista de influências prévias, musicais e não só, e por outra de “novas influências que se revelam”. Assim, a Derek Bailey, John Cage, John Fahey, algoritmos, e à “matéria dos pesadelos” anteriores, juntaram-se Brian Wilson, Scott Walker, o Vietname, e o “material suave dos sonhos”. Claro que nesta estratégia de desocultação está implícita uma carga de ironia e que sob a aparência de clarificação se esconde o seu oposto, na medida em que o óbvio e a citação directa (exceptuando, talvez, John Fahey, no álbum a solo de O’Rourke, “Bad Timing”) não fazem propriamente parte do léxico consciente dos Gastr Del Sol.
Retenha-se, contudo, a transição vocabular de “pesadelo” para “sonho” e a inclusão de Brian Wilson (já que Scott Walker facilmente se pode reivindicar como senhorio do obscurantismo…) no índice de influências. É que “Camoufleur”, ao contrário de anteriores trabalhos do grupo, bastante mais experimentais, pretende ser, nos seus movimentos tresloucados, um disco pop, da mesma maneira que os Faust (os quais, recorde-se, o próprio Jim O’Rourke relançou na estranha simbiose que é “Rien”) baralhavam este conceito, quando abriam o seu álbum de estreia com segmentos retorcidos da música dos Beatles e dos Stones para, mais à frente, se embebedarem com as harmonias vocais dos Beach Boys.
“Camoufleur” é, do princípio ao fim, um jogo de reconhecimentos e descolagens, de falsas pistas e de labirintos. Quando julgamos ter encontrado uma melodia estável, somos arrastados para o interior de um vórtice escuro de sons estranhos afastados de qualquer conceito próximo da pop. O álbum começa com “Seasons reverse”, algo semelhante à bossa nova como costuma ser recriada por Arto Lindsay, passa por uma espécie de ensaio vocal dos Beach Boys, em “Blues subtitled no sense of wonder”, e termina com “Bauchredner”, progressão minimalista de guitarra acústica que passa por uma cadência amrtelada de confluência entre Tony Conrad e os Neu!, para finalmente desembocar numa nuvem de sopros em suspensão em que se cruzam múltiplas melodias sobre as quais paira o vulto dos Faust. Pelo meio, o caminho está cheio de armadilhas e pontos de intersecção: guitarras processadas segundo as técnicas usadas por Klaus Schulze em “Black Dance”, órgãos de cinema, fanfarras chinesas (“Black Horse”), ruídos tridimensionais, enterros sucessivos de canções que a cada instante se reinventam, New Orleans, John Philip-Sousa e Canterbury passados pelo crivo de “Ruth Is Stranger Than Richard”, de Robert Wyatt (“Each Dream is an example”).
O círculo de Canterbury, depois do “krautrock”, parece ser, de resto, um territótio de crescente ocupação pelo pós-rock, ou “música intuitiva”, como alguns dos músicos implicados no movimento passaram a autocatalogar-se.
É o caso, também, dos Tortoise que no seu novo álbum apostaram numa sonoridade mais “light” que a dos dois primeiros álbuns, entrando mesmo em rota de colisão com algumas das premissas avançadas no anterior “Million Now Living Will Never Die”. E se referimos a influência da escola de Canterbury é porque encontramos em “TNT” um mesmo tipo de abordagem “leve” (nem que seja apenas na aparência) do som e porque um tema como “The suspension bridge at Igauzú falls” apresenta exactamente o mesmo tipo de progressões harmónicas empregues por grupos como os Hatfield and the North e National Health.
“TNT” nada tem de explosivo. Apenas o título-tema, remetendo não para o álbum anterior, mas para o disco de estreia do grupo, com o seu nevoeiro de guitarras desfocadas, se cola ao passado, apontando todo o resto para que “TNT” possa significar a sigla de “Tortoise or not Tortoise”. As influências são aqui mais visíveis à superfície do que nos Gastr Del Sol. O caso mais gritante é o de Steve Reich que se diria decalcado de álbuns como “Music for 18 Musicians” ou “Six Marimbas” em “Ten-day interval” e “Four-day interval”. “Swung from the gutters” lembra o progressivo “cool” do desconhecido (mas não para Jimi Hendrix…) teclista sueco, Bo Hansson. As guitarras planantes de “The Equator” não disfarçam a audição da fase recente da obra de Manuel Gottsching, ex-Ash Ra Temple. O contacto assíduo com os Stereolab faz-se sentir em “In Sarah, Mencken, Christ and Beethoven there were women and men” (curiosamente o título de um álbum de outro minimalista, Robert Ashley…). “I set my face to the hillside” é “easy listening” manchado pelas emoções estragadas de Pascal Comelade e, de novo, encaixando na maquinaria suave dos Stereolab. Ninguém julgue, porém, que “TNT” se resume a um livro de História. Cada tema é uma entidade mutante em permanente estado de inquietação, abrigando no seu seio as sementes do que poderiam ser múltiplas canções.
Jim O’Rourke e John McEntire, além de músicos, são melómanos, pessoas que gostam de ouvir música, que conhecem o passado e as suas várias linhas de evolução. É esta tensão, entre o antagonismo e a continuidade, que coloca quer os Gastr Del Sol quer os Tortoise na dianteira de um movimento que eles próprios iniciaram, grangeando-lhes, ao mesmo tempo, o estatuto de clássicos.
Para já, os primeiros souberam parar no preciso momento em que terão atingido o seu ponto mais alto, enquanto os segundos continuam a dar mostras de uma invejável capacidade de auto-regeneração. “Camoufleur” e “TNT” constituem a prova de que, afinal, o rock não está morto, mas tão-só a renascer com um corpo e uma alma novos. “Revolution no. 9”, dos Beatles, era o quê?

Coleccione Outros Cromos De “Música Intuitiva”
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