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Tudo sobre a música dos anos 90 – 1996

Sons

31 de Dezembro 1999


Tudo sobre a música dos anos 90 – 1996


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“Born Slippy”, um tema dos Underworld, torna-se um hino da geração tecno, funcionando como pilha de energia para os milhares de participantes do festival Tribal Gathering, ao mesmo tempo que pôde ser ouvido nas salas de cinema, através da inclusão na banda sonora de “Trainspotting”. Se se considerar que, a par do sucesso nos “charts” britânicos deste tema (número dois no top), também “Setting sun” dos Chemical Brothers alcançou os lugares mais altos das listas, chegando ao primeiro lugar, bem se pode dizer que 1996 foi o ano da explosão da música de dança independente. Dois anos após a sua génese o “drum ‘n’ bass” atinge a (maior)idade do “mainstream”, às costas do sucesso de Goldie. Noel Gallagher, dos Oasis, gaba-se de ter comprado o seu primeiro Rolls-Royce e convida a imprensa internacional para uma conferência de imprensa em Edimburgo, na Escócia. Os Três Tenores, Luciano Pavarotti, Placido Domingo e José Carreras ponderam a possibilidade de gravar uma versão de ópera de “Wonderland” dos Oasis. Björk trabalha com algumas das estrelas de música de dança, os pioneiros do “drum ‘n’ bass” Black Dog, os veteranos da tecno LFO e Talvin Singh. Os Pulp conquistam o quinto prémio Mercury Music, com “Different Class”, melhor álbum do ano. Marilyn Manson lança o álbum “Antichrist Superstar” e torna-se o herege favorito da América.

Tupac Shakur, o famoso rapper da Costa Oeste americana, é baleado em Las Vegas ao volante do seu carro, quando regressava de um combate de boxe entre Mike Tyson e Bruce Sheldon, vindo a falecer a 13 de Setembro vítima de várias lesões pulmonares. Gary Stringer, vocalista dos Reef, leva 12 pontos numa mão depois de ter sido atingido por um copo num bar em Glastonbury. O baterista dos Smashing Pumpkins, Jimmy Chamberlain, foi apanhado pela polícia de Nova Iorque na posse de droga, na sequência da morte do teclista usado pela banda nas digressões ao vivo, Jonathan Melvoin. Melhor sorte teve David Gahan, vocalista dos Depeche Mode, ao ser ilibado de alegada posse de cocaína, após uma rusga realizada em Beverly Hills, na Califórnia. Já Mark Morrison, autor de “Return of the mack”, foi multado por posse ilegal de arma. No ano de consagração do pós-rock assistiu-se à ressurreição de uma das lendas do krautrock, os Faust, pela mão de Jim O’Rourke. Os niilistas germânicos comandados por “Zappi” Diermaier, lançaram o álbum “Rien” e puseram literalmente em fogo as salas por onde passaram, com shows de pirotecnia ameaçadores. Os Urusei Yatsura foram obrigados a mudar de nome devido a problemas de direitos de autor relativamente a uma banda desenhada “manga” japonesa. O Partido Trabalhista Inglês organiza uma série de noites de música de dança com o objectivo de angariar votos.

O “artista anteriormente conhecido como Prince” rescinde com a editora Warner, para onde gravara nos últimos dez anos, assinando um novo contrato de distribuição com a EMI. Os Elastica usam um sample dos Wire no seu álbum de estreia “Elastica”. Antes, o grupo fora acusado de plagiar uma canção dos Wire (“Three girl rumba”), no seu single “Connection”, com o diferendo a ser resolvido em tribunal com o pagamento de “royalties”.

Paul McCartney juntou-se ao poeta da “beat generation” Allen Ginsberg para a gravação de “Ballad of the skeletons”, num projecto que contou igualmente com Lenny Kaye, guitarrista da banda de Patti Smith, e o compositor minimalista Philip Glass. Mani, baixista dos Stone Roses, entra para os Primal Scream, enquanto o guitarrista e principal compositor da banda, John Squire, abandona para formar os Seahorses. Reunião dos Sex Pistols, com o baixista original Glen Matlock no lugar de Sid Vicious. Ninguém ligou peva e o punk provou estar definitivamente morto e enterrado. Siouxsie Sioux pensou o mesmo extinguindo os Siouxsie and the Banshees, ao fim de 20 anos de carreira.

Os Delfins celebram dez anos de carreira pondo pela primeira vez um álbum seu, “O Caminho da Felicidade”, no primeiro lugar do top de vendas nacional. O greco-americano Darin Pappas participa em “So get up” dos Underground Sound of Lisbon e assina “Flowers and the Color of Paint” dos Ithaka, um dos álbuns do ano.

Além de Tupac Shakur desapareceram neste ano Chris Acland, baterista dos Lush, que se enforcou na sequência de uma depressão. Chas Chandler, dos Animals, morre de ataque cardíaco.

Bloco pós-operatório

Chicago, nos Estados Unidos, Bristol, em Inglaterra, e Dusseldorf, na Alemanha, foram as principais sedes de um movimento iniciado no ano anterior que reivindicou de novo o adjectivo “arty” para a música popular, propondo uma reconversão e actualização da estética e da tecnologia electrónica (Moogs, A.R.P.s, Korgs e Mellotrons…) do krautrock e do Progressivo dos anos 70, em moldes que procuravam romper com os parâmetros rock mais “mainstream”. De um lote imenso de bandas com designações bizarras (Black Swan Nettwork, Stars of the Lid, The Sea and the Cake) emergiram os alemães Kreidler, To Rococo Rot e Mouse on Mars, os norte-americanos de Chicago Trans AM, Tortoise e Gastr del Sol e os ingleses Labradford e Stereolab. Todos eles, nos respectivos enunciados musicais, recuperaram uma complexidade rítmica que tanto ia beber ao tribalismo dos Can como inquietar-se nas convulsões do free jazz cósmico de Sun Ra ou do free rock dos Henry Cow e dos Faust, ou ainda, no sentido da simplificação totalitária, deslizar no asfalto e no metal embalados na batida metronómica (“motorika”) dos Neu!. A bossa-nova (Jobim, João Gilberto, Astrud Gilberto), a “kozsmisch musik” (Tangerine Dream, Klaus Schulze), o easy-listening (Esquivel, Bacharach), o minimalismo (Reich, Glass) e a música industrial (Throbbing Gristle, Severed Heads, Test Dept.) foram outras das modalidades do passado que os pós-rockers reformularam, conferindo-lhe a distanciação e uma urgência própria dos anos 90. Mas o pós-rock não descurou o prazer da melodia e neste aspecto revelou-se fundamental a herança de um grupo do krautrock que veio substituir os Kraftwerk enquanto influência dominante da década que se apresta a findar: Os Cluster, de Dieter Moebius e Joachim Roedelius, cujo álbum “Zuckerzeit” (1974) cresceu até se tornar numa espécie de bíblia do movimento. O pós-rock revelou ainda dois gurus: Jim O’Rourke e John McEntire. O primeiro ajudou a ressuscitar os Faust, John Fahey e Van Dyke Parks e re-semeou as sementes das flores de Canterbury, o segundo voltou a engrenar o bólide da “motorika” quando não estava a farejar a maresia emanada da bossa-nova. Há quem lhes agradeça e quem não lhes perdoe…



1999 – TOPS INDIVIDUAIS

Sons

24 de Dezembro 1999


1999 – TOPS INDIVIDUAIS

FERNANDO MAGALHÃES


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1 – Mr. Bungle “California”
2 – Meira Asher – “Spears into Hooks”
3 – Mouse on Mars “Niun Niggung”
4 – To Rococo Rot “The Amateur View”
5 – Tone Rec “Coucy-Pack”
6 – Fridge “Eph”
7 – Olivia Tremor Control “Black Foliage, Animation Music, Vol.1”
8 – XTC “Apple Venus, Vol.1”
9 – Richard Thompson “Mock Tudor”
10 – Tom Waits “Mule Variations”
11 – Trans AM “Futureworld”
12 – Pansonic “A”
13 – Edward Ka-Spel “The Blue Room”
14 – Holosud “Fijnewas Afpompen”
15 – Labradford “E Luxo So”

Do “melting pot” efervescente dos Mr. Bungle ao silêncio apaziguador dos Labradford, passando pelo diabolismo de Meira Asher e a energia em bruto dos Pansonic, 1999 mergulhou nos abismos. Colorido pelo psicadelismo de Edward Ka-Spel ou a Pop animada dos Olivia Tremor Control. E ao lado da dança digital dos Mouse on Mars ainda há quem respire classicismo. Com o optimismo dos XTC ou o pessimismo de Richard Thompson, a Pop insiste em querer aprisionar a eternidade numa canção. Enquanto o rock continua a ser pós.



1999 – Os melhores álbuns do ano

Sons

24 de Dezembro 1999
POPROCK


1999 – Os melhores álbuns do ano

MR. BUNGLE
California
Warner Bros., distri. Warner Music

Fantasia


mb

“California” dos Mr. Bungle é a bíblia maldita da pop do final deste mundo e do princípio de outro. E Mike Patton o profeta e porta-voz (e que voz!) do espectáculo total. “California” ouve-se – ou será melhor dizer sente-se? – como uma vertigem. Há neste álbum, como já havia, embora numa escala menos convulsiva, no anterior “Disco Volante”, uma vontade de abraçar o universo inteiro da pop, de espremer as suas potencialidades, de corromper e estimular as suas múltiplas linguagens. Que os Mr. Bungle tenham operado o milagre a bordo de um foguetão e, mesmo assim, conseguindo escalpelizar e reconverter cada detalhe da história da pop dos últimos 32 anos (começando por 1967…) é algo de espantoso e digno de colocar “California” na lista, não só dos melhores discos deste ano, como na dos melhores da década.
“California” não mistura nem cola nada, atenção, como fizeram no passado Zappa, John Zorn ou os Negativland, antes sintetiza uma multiplicidade de imaginários e escolas musicais. São várias histórias, assumidas e assimiladas por inteiro, aquelas que os Mr. Bungle ensinam com o descaramento de agitadores profissionais, o nonsense de sátiros iluminados e a precisão de geómetras.
Os fantasmas dos Beatles, Beach Boys, Kim Fowley, Residents, Bowie, Sparks, Queen, Gong, Frank Zappa, Zorn, Clint Ruin, Phil Spector, Lalo Schiffrin, Presley, Yello, Zombies, surf music, easy listening, cha cha cha, folk cigano, flamenco, doo-wop, música árabe, baile musette, jazz, electrónica, contemporânea, sucedem-se a anulam-se numa sequência estonteante em que cada nota, cada palavra, cada melodia e cada conceito convergem na arte maior que consiste em transformar o tempo na transcendência e as referências que a memória retém em algo de novo nunca antes imaginado. Claro que Patton e os seus sequazes observarão de longe, com um sorriso, o circo de monstros e fantasias que eles próprios criaram. Criada a obra, cabe-nos a nós colonizá-la.
“California” perturba e desatina como um poltergeist. Queima como um vulcão. Encanta como uma caixa-de-música. Diverte como uma feira. Aterroriza como um palhaço alienígena com cara de mau. Faz-nos sentir perdidos à procura de palavras que definam o indefinível. Em última análise, aprisiona-nos na vontade de ouvir uma e outra e outra vez até passarmos a fazer parte definitivamente de um mundo sem fronteiras onde, como num desenho animado (a obra-prima “Fantasia”, de Walt Disney, será o melhor exemplo…), tudo, mas rigorosamente tudo, pode acontecer.
Como escrevemos no nosso primeiro e deslumbrado contacto com este álbum, “California” é o fantasma-clown do “Smile” que Brian Wilson jamais se atreveu a sonhar e a ironia mais lúcida e deslumbrante desde que os Mothers of Invention afirmaram que “We’re only in it for the Money”. Não se sabe que droga é que os Mr. Bungle tomaram nem isso interessa, mas “California” vai com certeza crescer na próxima década como um cogumelo destinado a fazer alucinar as gerações futuras.