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Värttinä – Entrevista – “Mulheres à beira de um ataque de júbilo”

Pop Rock

27 de Março de 1996

Mulheres à beira de um ataque de júbilo

No programa do Intercéltico deste ano destaca-se o nome das finlandesas Värttinä. Três álbuns, “Oi Dai”, “Seleniko” e “Aitara”, e concertos onde as tradições mais antigas se casam com a ousadia e uma presença jubilante em palco fizeram delas um dos grupos com maior aceitação no circuito “folk” actual. Como os Hedningarna, há dois anos, em Algés, vão fazer furor. O PÚBLICO entrevistou Sari Kaasinen, uma das quatro cantoras.


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Värttinä significa fuso. Sons que rodopiam, capazes tanto de pôr o corpo a girar como de espicaçar a imaginação. É impossível, diz-se, ficar indiferente às vozes destas quatro senhoras. Um concerto delas (e dos seus acompanhantes instrumentais, homens) dá garantias de festa.
PÚBLICO – Nos últimos anos tem-se assistido a uma vaga de grupos da Escandinávia. Hedningarna, Hoven Droven, Den Fule, Garmarna… As Värttinä sentem-se parte desse movimento?
SARI KAASINEN – Pode dizer-se que fomos um dos primeiros. Na mesma altura em que outros, tanto na Suécia, como os Hedningarna, como da Finlândia, se tornaram muito populares. Não se trata somente de um fenómeno comercial, pelo menos no nosso caso. Tenho feito música ao longo de toda a minha vida. É a minha vida. O meu estilo de vida. Algo que radica nas minhas origens. Hoje, é claro, o grupo também tem que pensar em termos comerciais, se quiser fazer digressões e gravar álbuns.
P. – O que fazia antes de pertencer às Värttinä?
R. – Estive sempre nas Värttinä! O grupo começou com a minha família. Eu, a minha irmã e a minha mãe. Quanto ao nome actual, surgiu em 1983.
P. – Na Finlândia, é por vezes ténue a diferença que separa um grupo rock de um grupo folk…
R. – Os grupos rock e folk começaram a absorver a influência folk só nos últimos dois ou três anos. Antes disso, ninguém queria tocar música folk. No nosso caso, alguns elementos tinham estado ligados a diferentes estilos de música, rock, pop, jazz… Tocamos um estilo que é o nosso, embora façamos algumas misturas.
P. – Com música irlandesa, por exemplo?
R. – O nosso violinista tocou muita música irlandesa.
P. – Costuma ouvir?
R. – Por vezes, sim. Gosto dos Four Men & A Dog, grupos desse género.
P. – Sei que toca kantele, embora no grupo se limite a cantar…
R. – Dou aulas de kantele. Continuo a tocar este instrumento, mas unicamente para meu prazer pessoal. Talvez volte a tocá-lo nas Värttinä um dia destes!…
P. – Numa entrevista que deu há quatro anos para a revista “Folk Roots” dizia que o grupo cantava “de uma perspectiva de poder”. Quer pormenorizar um pouco mais este aspecto?
R. – Referia-me às letras das nossas canções, que são muito fortes. Usamos um estilo de letras e de métrica muito, muito antigas. Mas também escrevemos as nossas próprias letras. É importante manter o contacto com esse lado mais antigo, saber o que estamos a cantar, quando cantamos sobre as nossas próprias vidas.
P. – Quando estão a cantar em dialectos antigos, para uma audiência estrangeira, não se importam que essa parte se perca?
R. – Mas as pessoas dizem que compreendem o que queremos dizer! Que temos uma linguagem corporal! A verdade é que não é muito importante que percebam as letras. Queremos sobretudo que as pessoas prestem atenção à totalidade do som.
P. – Não existe um ponto de vista feminista no tipo de letras que cantam?
R. – O tal estilo antigo em que cantamos certas canções chama-se “rontylska”. Ninguém sabe muito bem quando apareceu. A última vez que alguém ouviu cantar nesse estio, antes de nós, foi no princípio deste século. Escutámos velhas gravações antes de trazermos as canções “rontylska” para o nosso reportório. A região do país onde vivo, no Norte da Carélia, é precisamente um dos locais onde esse estilo apareceu. O que acontecia nestas canções é que, quando eram os homens a cantar, os assuntos giravam à volta de grandes caçadas, esse tipo de coisas, enquanto as mulheres cantavam sobre os seus próprios sentimentos. Era a única maneira que tinham, as canções para poderem dizer que estavam tristes ou apaixonadas. Talvez haja aqui, de facto, uma perspectiva feminista. Não havia nenhuma interferência do homem. Existem dezenas de milhares de canções com esse tipo de letras, reunidas em velhos livros. Foi daí que tirámos muitas ideias para contar as nossas próprias histórias.
P. – O último álbum do grupo, “Aitara”, tem uma vertente pop bastante mais acentuada que os anteriores.
R. – É verdade. O que acontece é que sempre que trabalhamos com novo material vamos para estúdio apenas com as canções de base e as letras. No caso de “Aitara”, não existiu qualquer ideia predeterminada para fazer um álbum pop, nem sequer falámos disso. Aconteceu os arranjos surgirem assim.
P. – Alguns ritmos são tão metronómicos que quase parecem ter sido feitos por uma caixa-de-ritmos…
R. – Não, foi tudo tocado por nós. Mas já não estou cem por cento certa disso, porque já mais do que uma pessoa me colocou essa questão… Deve ser porque o baterista toca tão bem que parece uma dessas tais caixas.
P. – Fale-nos um pouco da actividade da sua editora, Mipu Music.
R. – Somos uma companhia pequena. Editamos música das etnias “fino-úgricas”, ou grupos como as Angelin Tytöt, de quem produzi o primeiro álbum. Elas fazem com a música “sammi” o mesmo que nós com a música da Carélia. Respeitam a tradição delas e querem desenvolver um estilo pessoal.
P. – Prepararam algum espectáculo especial para o Intercéltico?
R. – Gostaria que as pessoas não criassem falsas expectativas. Não esperem nada de mais nem de menos. Talvez apresentemos algumas canções novas, ainda não sei. Quando cantamos, pretendemos acima de tudo criar uma relação com a audiência. Não se trata só de cantar e de tocar, mas de algo mais global, mais completo. Se o público se entusiasmar, pode ter a certeza de que também nos vamos entusiasmar. Tenho a certeza de que no Porto vai ser divertido.



Entrevista – Lisa Germano: “É A Criança Que Tenho Na Cabeça”

Pop Rock

16 de Outubro de 1996

“É a criança que tenho na cabeça”

“Excerpts from a Love Circus” é uma iniciação ao desencanto. Um álbum onde Lisa Germano fala de relações estragadas e experiências traumatizantes e onde deixou “Miamo-Tutti”, o “macho-cat”, a miar. Lisa, desiludida, mas não Lisa, a submissa. É a criança que existe em si, a ronronar. Num disco sobre coisas “tristes, trágicas e absurdas”.


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Em lugar de dissertar sobre música, Lisa Germano prefere expor os seus sentimentos. Num discurso que insiste na tónica dos amores não correspondidos e na necessidade de cortar com situações de impasse, capazes de arruinar, mais do que uma relação, uma vida inteira. “Sad Lisa”, a velha canção de Cat Stevens, define a sua maneira de reagir mas não a sua maneira de ser. “Love Circus” é uma arena de desenganos da qual é preciso escapar. Desabafou com o PÚBLICO as suas mágoas, as suas fraquezas, as suas convicções.
PÚBLICO – O que são as “relações disfuncionais” que vêm mencionadas nas notas de promoção de “Love Circus”?
LISA GERMANO – É o que fazemos quando não gostamos de nós próprios e procuramos pessoas para andarem à nossa volta mas que acabam por nos tratar mal. Algo que não funciona.
P. – As relações que teve foram todas desse tipo?
R. – Pelos menos todas sobre as quais escrevi…
P. – O problema é mais seu ou dos outros?
R. – Cheguei à conclusão que é mais meu. Pelas razões que me levaram a escolher determinadas pessoas para viver com elas, relações que não funcionaram. Poderia ter saído delas mas não o fiz… Deixei andar… Está tudo nas canções. Quem melhor as compreenderá são as pessoas que passaram pelo mesmo, pessoas que se foram abaixo.
P. – Continua à espera que um dia as coisas possam bater certo?
R. – Não sei… Penso que sim. Mas olho à minha volta e vejo uma quantidade de pessoas que vivem juntas e que não se amam. Algo deprimente de ver mas que existe.
P. – Ao ouvirmos os seus álbuns fica-se, por vezes, com a impressão de estarmos perante uma criança a debater-se com os seus medos?
R. – Sim, às vezes, quando ficamos demasiado confusos, voltamos para trás, até à infância. É a criança que temos na cabeça. E é essa criança que fica ferida e que precisa que as outras partes da cabeça tomem conta dela.
P. – Símbolos da infância são as bonecas que aparecem na capa de “Happiness” e “Geek the Girl”, ou a roda de crianças, em “Excerpts from a Love Circus”. Têm algum significado mais específico?
R. – Bom, o autor das capas deve ter sentido o mesmo, que é o meu lado de criança que escreve as canções. Acontece as pessoas virem ter comigo e acharem que estou bem, que não tenho nada o ar de estar lixada…
P. – O que tem a dizer sobre o facto de ter posto os seus gatos a miar nos discos, em particular Miamo-Tutti, que aparece em “Happiness” e neste novo álbum?
R. – Miamo-Tutti é o meu gato “mau”. Dorothy é a fêmea. Utilizei-os nos discos só por graça… Não, na verdade, fazem-me lembrar uma das minhas relações. Miamo-Tutti é o tipo de gato “macho” que anda fora durante dias deixando Dorothy sozinha, muito triste, à espera que ele regresse a casa, sem conseguir livrar-se dele. Converso muitas vezes com os meus gatos. Quando acabei de fazer o disco compreendi que eles faziam parte dele.
P. – Como é que fez as gravações?
R. – O meu co-produtor emprestou-me um gravador DAT que levava para casa, onde gravei grande parte das vocalizações do disco. Como tinha o microfone à mão…
P. – Já falou no seu lado infantil, mas há o outro, o perverso. Numa canção como “Forget it, It’s a mystery”, canta coisas como: “Odeio-te porque te amo, amo-te porque me odeio” e “Gostei de ti quando me magoavas”. Soa a masoquismo. Está a referir-se a amor ou a sexo?
R. – Pode soar dessa maneira, de facto, para quem não passou por essas situações. A questão é como é que se pode viver com alguém que nos magoa e nos trata mal? É porque devemos estar muito apaixonados. Não podemos estar sempre a deitar as culpas para cima dos outros, quando a verdade é que nunca aprendemos nada. Essa canção é uma espécie de confissão. De resto, não separo amor e sexo. Não se deveria fazer o segundo sem existir o primeiro, quero dizer, podemos fazê-lo, mas é cinco milhões de vezes mais comovente quando se ama alguém.
P. – É o oposto de Liz Phair, por exemplo, quando numa das suas canções fala das vantagens de determinadas posições, que permitem ter o acto sexual ao mesmo tempo que se vê televisão…
R. – Sim, ela é mais descarada, move-se noutros quadrantes. As minhas canções são mais sobre a pessoa cruel que dá cabo da via dos outros.
P. – A pureza e a experiência são incompatíveis?
R. – Uma boa pergunta! As experiências que vamos tendo tornam-nos mais cautelosos, põem-nos na defensiva, a não acreditar. Mas talvez que, a longo prazo, ela nos ensine a encontrar a pureza. Talvez a experiência sirva para nos extirpar do que está errado, fazendo-nos ver onde está o erro, para da próxima vez estarmos mais atentos.
P. – “Lovesick” fala de terror e de medo, de um psicopata que diz amá-la e você fica paralisada à espera que algo terrível aconteça. Há algum trauma de infância por trás?
R. – Aconteceu de facto uma situação de alguém que me perseguiu, não sei se era ou não um psicopata, mas foi algo assustador, alguém a entrar pela minha casa dentro. Basicamente, o tema de “Lovesick” é semelhante ao de “Forget it, it’s a mystery”: pensar que se encontrou a nossa alma gémea e essa alma gémea nem sequer gostar de nós. No fundo, a outra pessoa tem o mesmo problema, de não conseguir abandonar a relação. A vida a dois torna-se miserável. Um “amor” doentio.
P. – Continua a acreditar na existência dessa alma gémea?
R. – Não… Actualmente acredito que há uma quantidade de almas gémeas. E ilusões. Quando escrevi “tu não és a minha Yoko Ono”, referia-me a alguém que me dizia que eu não era forte, que não correspondia à ideia que fazia de mim. Eu tinha posto esse alguém num pedestal, sem sequer me aperceber disso.
P. – O facto de ser uma cantora de rock e levar um determinado estilo de vida torna as coisas mais difíceis?
R. – Nunca tive esse problema. Não sou nenhuma estrela. Penso que essa imagem não funcionaria comigo, não tenho esse tipo de personalidade. Limito-me a escrever sobre coisas genuínas, sobre sentimentos. Acontece, apenas, que por vezes me perco no meio deles…
P. – O título do álbum, “Love Circus”, sugere espectáculo, um jogo, alguém que perde a alguém que ganha… Uma questão de poder?
R. – Não… Este álbum é apenas sobre coisas que não fazem sentido, como num circo… O primeiro título que pensei dar-lhe foi “Guillotine” [guilhotina], sobre uma pessoa que é cortada. Depois fui-me apercebendo de que se tratava mais de um circo de relações forçadas entre as pessoas. E da necessidade de cortar a direito através delas, de ver o seu lado absurdo, caso se queira mudar alguma coisa. Este disco é sobre coisas tristes, trágicas e absurdas. Um disco realmente muito, mas mesmo muito triste.
P. – Lembra-se de uma canção antiga de Cat Stevens, Sad Lisa”?
R. – Sim, costumava ouvi-la quando era uma rapariguinha [risos].
P. – “Excerpts from a Love Circus” é um álbum de canções de ódio?
R. – Comecei realmente por sentir ódio, mas isso não me levava a lado nenhum. Não valia a pena estar constantemente a gritar: “Odeio-te! Odeio-te! Odeio-te!” Senti a necessidade de compreender as razões desse ódio e partir para outra, tentar aprender a lição. No fundo, a minha música é uma tentativa de encontrar soluções para os meus problemas. As pessoas dizem que ninguém consegue fazer isso através da música, mas penso que, no meu caso, o processo resulta. A música pode ser uma cura. No meu caso é uma catarse que me ajuda a ver as coisas numa perspectiva correcta.
P. – O que é que odeia e ama com mais intensidade?
R. – Odeio que as pessoas tenham tanto trabalho para gostarem de si próprias e acabem por se deixar cair em situações às quais ficam amarradas para o resto da vida. Isso lixa-me completamente. E amo a vida. O simples acto de viver.



Entrevista: Roger Eno – “Um Mar Que Lhe Deu”

Pop Rock

9 de Outubro de 1996

Irmãos Eno em acção. Roger lança álbum de canções sobre o mar. Brian escreve um diário.

UM MAR QUE LHE DEU

“Swimming”, o novo álbum de Roger Eno, tira o retrato a paisagens sonoras de praias solitárias e ventosas. Histórias de enforcamentos e cantos de embalar, pedaços de esquecimento trazidos pela brisa até à costa. Um álbum de atmosferas marítimas que não se envergonha de citar o irmão mais velho do seu autor, Brian Eno. E de aproveitar as lições da poesia e do cinema.


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Embora igualmente seduzido pelo conceito de “atmosfera”, Roger Eno demarca-se cada vez mais do abstraccionismo do seu irmão, Brian Eno, ganhando uma autoconfiança que, inclusive, o levou a incluir no novo álbum um tema directamente influenciado por este. Mas as semelhanças param aqui. Se Brian é um cirurgião do imaginário e do tempo, Roger Eno viaja através dos elementos e de locais reais como um fotógrafo em busca de uma essência perdida. Tem por hábito tocar piano de frente para um quadro.
PÚBLICO – Em “Swimming” integrou, pela primeira vez, temas tradicionais. Que tipo de relação tem com este género de música?
ROGER ENO – Sempre me interessei pela música tradicional, sobretudo por ser tão personalizada e natural. Além disso, aprecio a maneira como, ao longo dos anos, a mesma canção se metamorfoseia em múltiplas variações, num processo contínuo de subtis transformações. Grande parte da música tradicional é muito poderosa do ponto de vista melódico, o que constitui, ao mesmo tempo, a sua força e uma limitação, se quisermos trabalhá-la ao nível dos arranjos. Frequentemente é tão autónoma que qualquer enfeite ou adição sobre a base melódica se torna supérflua. Todavia, este género de material pode ser trabalhado do ponto de vista da harmonia e da atmosfera e foi o que procurei fazer em “Swimming”.
P. – O primeiro tema, “The Paddington frisk”, não aparece creditado como tradicional, embora soe como tal…
R. – “The Paddington frisk” é uma brincadeira bastante mórbida. A frase “dançar o Paddington frisk” é um eufemismo de “enforcamento”, e “frisk” (“pulo”, “cambalhota”) o esticão do corpo dos condenados quando ficavam pendurados na forca. Compus, com alguma perversidade, uma melodia extremamente alegre para um sentimento de pavor.
P. – “The boatman” foi composto sobre um tema antigo, que nunca chegou a gravar, “The seaside”. Qual foi o contexto original em que o escreveu?
R. – “The seaside” era uma peço simples de piano que costumava tocar em concerto, servindo de base a uma improvisação, um excursão de dez minutos com destino sempre incerto. Um dos meus métodos de trabalho é escolher o nome de uma peça antes mesmo de a escrever, ou de improvisar, funcionando o título como uma espécie de guia para um estado de espírito ou uma atmosfera particulares que, por sua vez, conduzem a evolução da música.
P. – A canção seguinte, “Slow river”, lembra bastante temas do seu irmão, em álbuns como “Taking Tiger Mountain (By Strategy)” ou “Before and after Science”…
R. – Quando escrevi essa canção apercebi-me, de facto, da sua semelhança com dos trabalhos mais antigos de Brian, e de que as pessoas se iriam igualmente aperceber disso. Mas, por uma questão de honestidade, achei que devia incluí-la, sendo aliás uma das minhas preferidas do álbum. De resto, cheguei a pensar dedicá-la a Brian.
P. – Em “Swimming”, fez tudo sozinho, da produção, ao canto, passando pela produção e execução instrumental. É um álbum demasiado pessoal para incluir outras pessoas?
R. – Digamos que não necessitei do “input” de outrem. Pretendi desviar-me da instrumentação mais tradicional, optando por instrumentos que, regra geral, tenho negligenciado – guitarra, bajo, acordeão, etc. -, de maneira a dar um sabor completamente diferente ao álbum. Foi um prazer andar a esgravatar nos armários à procura de sons.
P. – Durante o processo de criação sentiu-se mais como um pianista, um arquitecto de texturas ambientais, um fotógrafo de sons ou um “simples” escritor de canções?
R. – Gosto de uma dessas definições, “fotógrafo de sons”, é bastante apropriada para o que tentei encontrar. De facto, um dos títulos provisórios para o álbum era “Postcards” [“postais”], funcionando cada tema como um instantâneo de um determinado momento. Era isto que tinha em mente quando pus a hipótese de dedicar cada um dos temas a um amigo particular, como se lhe estivesse a enviar um postal. Tentei retratar lugares e estados de espírito… Sim, “fotógrafo de sons” parece-me bastante bem.
P. – de que maneira o lugar onde vive, Woodbridge, no Suffolk, o afectou na composição do álbum?
R. – Um dos aspectos notáveis de se viver num lugar que se conhece bem é a descoberta constante de coisas que antes passavam despercebidas, detalhes, o modo como a luz altera o aspecto de uma rua, adornos num tecto nos quais nunca se tinha reparado… Procuro sobrepor diferentes camadas que estimulem constantemente a curiosidade, de maneira a que cada tema pareça sempre diferente a cada nova audição.
P. – A praia de Dunwich também teve alguma importância no processo. É, aliás, a mesma praia que já inspirara o seu irmão a escrever “Dunwich beach, Autumn 1960”, um canção do álbum “On Land”. É um lugar com uma mística especial?
R. – Dunwich é uma povoação perdida na costa leste de Inglaterra, com uma atmosfera de desolação, constantemente assolada pelos elementos. Afecta-nos de uma maneira especial. Sussurra-nos sobre o efémero, de glórias passadas, de coisas vagamente recordadas… Notam-se constantemente mudanças. Marcas de terra que foram apagadas… Como se, estranhamente, nos encontrássemos num lugar diferente…
P. – “Swimming” evoca igualmente Paris e o Sena, no Outono, fazendo lembrar o interlúdio musical de “Diva”, do realizador francês Jean-Jacques Beineix. Os filmes constituem, para si, uma fonte de inspiração?
R. – Esse filme, “Diva”, serviu de inspiração a “Grey promenade”, um apeça do meu primeiro álbum “Voices”…
P. – E a pintura?
R. – É, sem dúvida, uma grande fonte de inspiração, bem como a poesia. Um dos métodos que uso para improvisar é colocar um quadro no suporte das partituras do piano, tentando retratar a sua atmosfera pictórica em termos musicais. É um processo que pode ajudar a romper padrões vulgares de interpretação. A partir destas improvisações, aproveito alguns bocados e construo com eles novas peças.
P. – Em que língua cantou “Amukidi” e “Hewendaway”?
R. – Estava a cantar para as minhas filhas adormecerem, sem querer construí uma “lullaby” [canção de embalar], tanto a melodia como palavras em sentido. Gravei-a e tornou-se “Hewendaway”. A seguir, o meu produtor quis ouvir como é que ficava ao contrário. Trocou a onda sonora no computador e foi assim que nasceu “Amukidi”. A ideia funcionou e, a partir dela, fiz um arranjo ligeiramente diferente.
P. – Quais são as suas referências literárias?
R. – Dos escritores, Italo Calvino e Grahame Swift são os meus favoritos, também Flann O’ Brien. Regra geral, leio antologias de poesia e aprecio demasiados poetas para os mencionar todos aqui, desde obras anglo-saxónicas de autores anónimos a muitos ainda vivos.
P. – Além do que já mencionou, de que é que necessita para criar uma atmosfera musical específica, no caso de “Swimming”, relacionada com a água e com o mar?
R. – No caso de “Swimming”, viajei ao longo da costa, durante uns quatro meses, para me embeber dos ambientes dos diversos locais. O processo funcionou, penso, pelo menos nalguns temas. Uma vez que apanhava a ideia do percurso que tencionava seguir, continuava na mesma direcção, recolhendo outras ideias pelo caminho. Como um limpador de praias…
P. – “Where the road leads to nowhere” tem uma história. Pode fazer um resumo para os leitores?
R. – Mesmo a norte de Dunwich, fica Covehithe, outra cidade “perdida”. Construíram lá uma estrada que deveria ligar-se a outra localidade mas que, de repente, termina abruptamente numa falésia, apontando para o céu, sobre a praia. É uma imagem que desencadeia uma reacção poética forte e que tinha de ser aproveitada.
P. – “The parting glass” é o lugar, na alma humana, onde o vinho se confunde com a água?
R. – É um dos meus temas favoritos, com palavras e melodia directos e emotivos mas, para falar verdade, não misturo água no meu vinho…